Existem
ultraprocessados “menos piores”?
Poderia
ser um debate saudável em vários sentidos. Bom para a ciência. Bom,
diretamente, para a saúde das pessoas. Reportagens sobre a existência de
“ultraprocessados menos piores” foram se multiplicando nos últimos meses. Matérias e artigos no New York
Times, no Washington
Post, no The Atlantic, no UOL…
Será
que todos os ultraprocessados são tão ruins?
Afinal,
todo ultraprocessado é ruim?
Quão
ruim é um ultraprocessado?
As
perguntas oscilam em torno de um mesmo tom. Afinal, será que no meio de uma
inundação de produtos péssimos, a gente consegue encontrar categorias
particularmente benéficas ou, ao menos, razoáveis? Tem como salvar alguém nesse
navio?
A
exemplo dos produtos que buscam discutir, esses textos parecem muito diversos
entre si, mas não são. O que está em jogo é a tentativa de transmitir uma
mensagem de que está tudo bem. De que quase nada precisa mudar no nosso sistema
alimentar.
Ao
mesmo tempo, o surgimento desse debate é sinal de que não dá para ignorar o
elefante na sala. Sinal de que o avanço das evidências científicas mostrando a
ligação entre ultraprocessados e impactos terríveis para a saúde soterrou o
negacionismo raiz, tão forte lá no comecinho da década.
Todo o
zumzumzum busca endereçar uma questão legítima: e agora? Se sabemos que os
ultraprocessados são um problema dos grandes, o que fazer? É o próprio aumento
da percepção pública negativa sobre esses produtos que dá combustível a essa
discussão. Mas, na minha opinião, ficar buscando atenuantes não resolve – e
pode atrapalhar.
- Entre o
conformismo e o negacionismo soft
Via de
regra, os pesquisadores responsáveis por artigos que estimularam essa discussão
poderiam ser divididos em duas vertentes. Aqueles que admitem que os
ultraprocessados existem – e são um problema –, mas não concebem que a
alimentação humana possa prescindir desses produtos. E aqueles que migraram do
negacionismo raiz para um negacionismo soft.
É
possível notar que, por bem intencionados que sejam os integrantes do primeiro
grupo, muitas vezes eles estão oferecendo uma nova rota de fuga à acomodação
dos interesses corporativos. E esse é um aspecto inescapável da discussão:
desde a criação da Classificação NOVA, e com força crescente à medida que a
teoria avançava, as críticas estiveram entrelaçadas aos interesses de
corporações.
Uma
brevíssima recapitulação: integrantes do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em
Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo, criaram há 15 anos uma
classificação que divide os alimentos de acordo com o grau e o propósito do
processamento.
Em vez
de se concentrar na tradicional divisão por nutrientes, eles sugeriram olhar
para aquilo que poderia estar mudando num país como o Brasil, onde os casos de
doenças crônicas (diabetes, hipertensão, enfermidades cardiovasculares) vinham
crescendo. Foi com base nisso que criaram quatro grupos. O mais inovador e
estridente deles é o grupo 4, dos ultraprocessados.
O termo
“alimentos processados” existia desde os anos 1960 para agrupar tudo o que era
industrializado. Mas, vendo que o grau e o propósito do processamento de um
macarrão era bem diferente do que acontecia com um Miojo, eles separaram o joio
do trigo. Ou melhor: os alimentos processados desses outros. E criaram o termo
ultraprocessados.
Ultraprocessados
podem ser comidas e bebidas. Não são propriamente alimentos, mas formulações de
substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos integrais. Essas
fórmulas incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados
ou concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada,
amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.
Nos
primeiros anos, basicamente os integrantes do Nupens testaram a teoria. Mas o
crescimento do volume de evidências foi chamando a atenção de outros
pesquisadores ao redor do mundo: os ultraprocessados talvez fossem a resposta
que se procurava há décadas para o agravamento das condições de saúde em
virtualmente qualquer lugar do planeta. O vetor por trás do crescimento dos
índices de diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Afinal, dos três
primeiros grupos os humanos já vinham se alimentando há muito tempo, sem
grandes problemas.
Nessa
etapa, as críticas mais duras eram francamente negacionistas – e desqualificadas. A grande maioria
dos pesquisadores era direta ou indiretamente vinculada à indústria. Essa é uma
mudança interessante: buscamos por eventuais conflitos de interesses de alguns
dos pesquisadores mais mencionados em reportagens. Existem, mas não são tão numerosos
quanto na fase anterior.
Aparentemente,
o que nutre as críticas deles à NOVA é uma visão de mundo de que não devemos
empreender grandes mudanças. Tudo se resolve colocando o espinafre para
fazer amizade com o Doritos.
Boa
parte das evidências mais fortes em torno da NOVA foi produzida ao longo dos
últimos cinco anos, e é nesse período que o tema ganha tração na opinião
pública nos países do Norte. Começam, então, a surgir críticas mais diversas.
Algumas delas tentam melhorar a NOVA ou lidar com angústias reais. Afinal, se
num país como os Estados Unidos há quem tire 80% das calorias diárias desse
tipo de produto, a mensagem de que eles são inerentemente nocivos pode ser
desesperadora. O que essa pessoa comerá daqui por diante?
- Sorvete e
salsicha são irmãos
Imagine
que a sua tarefa seja encontrar políticos do Centrão “menos piores”. Entre Hugo
Motta e Gilberto Kassab, Arthur Lira e Eduardo Cunha, você enxerga uma grande
diferença? Claro que entre centenas de parlamentares haverá nuances. Pessoas
mais cordiais, pessoas mais sedentas por dinheiro, pessoas mais ávidas por
cargos. Mas, a menos que você seja o ministro de articulação política do
governo Lula, essas diferenças importam pouco ou nada.
Você
poderia alegar que essa analogia padece de uma falha monumental: humanos –
especialmente políticos do baixo clero – não são alimentos. Bom,
ultraprocessados também não. Ultraprocessados são um corpo estranho dentro do
sistema alimentar, criado à base de muito dinheiro público desviado da
finalidade real de produção de alimentos. Exatamente como o Centrão, são uma
captura de dinheiro.
Uma boa
parte da construção da existência de “ultraprocessados menos piores” se baseia
no lugar comum de que o grupo 4 da NOVA é muito vasto. De jeito nenhum um
sorvete e um Miojo podem ser comparados. Reconhecer esse argumento seria negar
justamente a genialidade dos cientistas brasileiros. Não era trivial
enxergar semelhanças entre um biscoito doce e uma salsicha. Mas, ao final,
todos eles seguem uma fórmula batida.
A
engenhosidade da NOVA consiste em evidenciar que as corporações alimentícias de
qualquer subsetor desenvolveram um método de produção que se assenta sobre a
substituição de ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes que só se
transformam em algo palatável, com cheiro e com estrutura porque se somam a
aditivos.
É
compreensível querer entender se há categorias menos piores de
ultraprocessados. Isso talvez faça uma diferença no dia a dia das pessoas. Por
exemplo, ir até a prateleira do pão de forma sem medo de escolher uma grande
tragédia seria bom.
Nesse
sentido, é verdade que existem ultraprocessados menos piores. Um alimento que
tenha como primeiro item da lista de ingredientes aquilo que seria o seu
equivalente em uma lista de ingredientes caseira ou menos processada oferece um
bom indício de algo que pode ser menos pior. Mas isso, ainda assim, seria
insuficiente. O próprio pão de forma oferece algumas reflexões nesse
sentido.
Normalmente,
farinha de trigo será o primeiro ingrediente, e esse também será o primeiro
ingrediente de um pão feito em casa. Isso me faz pensar em quão rebaixada é a
nossa expectativa em relação aos ultraprocessados: só de usar algo banal, como
farinha de trigo, já parece ótimo.
Mas,
daí por diante, as quantidades e os tipos de gorduras, o uso ou não de ovos e
leites, e especialmente a quantidade de aditivos podem fazer desse pão algo bem
diferente. Para além da análise nutricional, interessa ver que há, no caso do
pão de forma abaixo, uma estratégia corporativa que busca enganar as pessoas.
Se nos centramos numa discussão meramente no nível dos nutrientes, estamos
tirando de foco o fato de o ultraprocessado ser, política e ideologicamente,
uma enganação.
- Lista de
ingredientes
Farinha
de trigo fortificada com ferro e ácido fólico, açúcar, óleo vegetal de soja,
glúten, vinagre, sal, emulsificantes: mono e diglicerídeos de ácidos graxos,
estearoil-2-lactil lactato de cálcio e polisorbato 80, conservadores:
propionato de cálcio e ácido sórbico, melhoradores de farinha: fosfato
monocálcico, cloreto de amônio e ácido ascórbico e acidulante ácido cítrico e
espessante carboximetilcelulose sódica
Em um
artigo que será publicado em breve, Carlos Monteiro, autor principal da NOVA e
ex-coordenador do Nupens, elenca perigos na mensagem sobre “ultraprocessados
menos piores”. Ele dialoga com a crítica muito comum de que, ao colocar todos
esses produtos no mesmo balaio, podemos estar tirando das pessoas nutrientes
importantes.
“Para
isentar esses ultraprocessados das listas daqueles cujo consumo deve ser
reduzido, é necessário ter evidência de que sejam tão saudáveis quanto as
versões caseiras ou menos processadas. Atualmente, essa evidência não existe.
Uns poucos estudos que tentaram isolar o efeito de produtos densos em
nutrientes dos padrões dietéticos de ultraprocessados usaram modelos analíticos
que compararam eles com a média da dieta, excluindo ultraprocessados, sem
correspondência com versões caseiras ou alternativas processadas ou minimamente
processadas”, reflete o pesquisador.
- Os vilões de
sempre
O estudo disparador da
recente série de reportagens sobre ultraprocessados menos piores foi conduzido
nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, conhecidos pela sigla em
inglês NIH. Basicamente, os pesquisadores cruzaram toda a evidência disponível
sobre ultraprocessados e saúde do coração. Olhando apenas para doenças
cardiovasculares, a conclusão é de que a evidência disponível permite dizer que
dois grupos de ultraprocessados em particular (refrigerantes e carnes) estão
ligados a um maior risco.
A
maneira como a pesquisa foi divulgada deu lastro a que se pense que essas duas
categorias – e apenas elas – são particularmente nocivas. Ah, vá. Então, todo
esse carnaval em torno dos ultraprocessados só para chegar à mesma conclusão de
sempre? É do senso comum que refrigerantes fazem mal à saúde. E há pelo menos
uma década há consenso em torno dos problemas causados pelos
embutidos, como salsichas, bacon e presunto. Não precisávamos da NOVA,
então?
Calma
que não é bem assim. Primeiro, no estudo em questão, um único desfecho em saúde
apresentou resultados sólidos. Doenças cardiovasculares são, sem dúvida, uma
preocupação das maiores quando se fala em alimentação. Mas sabemos da
associação entre ultraprocessados e 32 condições diferentes de saúde.
Além
disso, para algumas categorias de ultraprocessados, a evidência científica
disponível em torno de determinadas condições de saúde é pequena. E é difícil
de medir. Os refrigerantes são os vilões habituais, em parte, porque é mais
fácil produzir evidência. Primeiro, nós não temos muitas categorias de bebidas.
Segundo, o consumo de refrigerantes ao longo da segunda metade do século
passado foi o que cresceu a olhos vistos.
Terceiro,
a gama de alimentos sólidos é muito maior, ou seja, não é trivial isolar
determinados fatores. É inviável fazer com que mil pessoas comam apenas Miojo
durante uma década para depois tirar conclusões. Porém, o estudo clínico que
temos, ao manter um grupo reduzido de pessoas confinado durante quatro semanas,
chegou a resultados alarmantes quanto aos problemas causados pelos
ultraprocessados – como um todo, e não como uma categoria isolada.
- Nas mãos dos
especialistas
Uma
reportagem do UOL nos ensina que as “opções melhores são
aquelas que possuem uma lista de ingredientes menor ou que não contêm aditivos
químicos, conservantes ou corantes artificiais em excesso”. Bingo! Achamos os
ultraprocessados do bem? Não. Achamos os processados. Todos os exemplos
listados pelo texto são tipicamente processados.
O mesmo
acontece em uma reportagem publicada em janeiro no The Washington Post.
O jornal anuncia orgulhosamente ter testado dez categorias de ultraprocessados
para descobrir quais são as menos piores. Adivinha. Sim, os menos piores são,
de novo, produtos processados. Faltou aos repórteres entender que um
ultraprocessado feito de ingredientes integrais e sem aditivos não é um
ultraprocessado. Em resumo, essa discussão não precisaria nem
existir.
As
reportagens sobre ultraprocessados menos piores repetem quase sempre a mesma
dinâmica. São entrevistados dois pesquisadores: um francamente crítico à NOVA,
outro ligeiramente crítico (uma pessoa que está buscando refinar a teoria ou a
nossa compreensão sobre a teoria). Uma brincadeira típica de bad cop,
good cop que busca afastar a reportagem em questão dos artigos de
primeira hora contra a NOVA, abertamente negacionistas.
Ainda
assim, essa abordagem tenta restituir a primazia dos especialistas sobre as
escolhas alimentares de todo mundo. São eles que devem nos orientar. Leiam os
rótulos! Não caiam em pegadinhas! Tentem comer algumas frutas e verduras! Esse
é mais um ponto contrário à essência da NOVA e, mais importante, à essência do
Guia Alimentar para a População Brasileira, que busca devolver às pessoas a
autonomia em torno do que devem comer.
Para
isso, aposta-se em romper com a abordagem reducionista em torno dos nutrientes
– o chamado “nutricionismo”, fusão de nutrição
com reducionismo. Uma das reclamações frequentes nessas reportagens é de que a
NOVA passa à margem dos nutrientes. A julgar por essa visão, deveríamos todos
continuar enlouquecidos contando calorias, carboidratos e proteínas, independente
do produto que seja o carreador desses nutrientes.
Devemos
passar horas lendo rótulo por rótulo. De novo, a discussão se resume à
prateleira do supermercado. A uma perspectiva individual de que “bom, se eu
resolver minha parte do BO, os outros que se virem”. Resumindo, a
abordagem sobre “ultraprocessados menos piores” se baseia em premissas
reacionárias.
“Se
você come regularmente alimentos ultraprocessados nas refeições — como uma
barra de frutas embalada no café da manhã ou uma refeição congelada no jantar —
continue fazendo isso”, diz uma reportagem do The New York Times.
“Mas adicione uma fruta ou vegetal ao seu prato. Pode ser uma maçã no café da
manhã ou um pouco de brócolis no jantar.”
Em
resumo, a proposta feita pelo McDonald’s vinte anos atrás segue vigente:
coloque uma maçã ao lado do Big Mac para expiar sua culpa. A questão é que não
somos crianças. Podemos perfeitamente lidar com a ideia de deixar de comer uma
lasanha congelada da Sadia no jantar. E comer frutas porque são gostosas, e não
porque precisam ser uma companhia desagradável para um congelado
qualquer.
Todo
esse somatório de abordagens nos conduz ao incômodo maior, pelo menos da minha
parte, com essa discussão sobre ultraprocessados menos piores: o conformismo.
Esse é um tema que, como tantos outros no século 21, nos coloca diante de uma
enorme encruzilhada. Escolher a rota das pequenas mudanças não altera o status
quo, o que pode até ser bom do ponto de vista do conforto de sociedades que
ao longo de décadas se acostumaram a comer o que não é comida. Podemos trocar o
Arthur Lira pelo Hugo Motta. Claramente não é o suficiente.
- Não é normal
defender que a gente continue comendo o que faz mal
Isso soa
particularmente sinistro quando se trata de crianças, que, segundo um corpo
crescente de evidências científicas, podem sofrer com dependência de
ultraprocessados. Nós defenderíamos que as crianças continuem fumando vape,
desde que somem a isso uma maçã? Ou que coloquem uma folha de alface dentro do
copo de rum?
Essa
mensagem conformista retira pressão dos atores que criaram o problema. Estamos
absolvendo as corporações que têm sistematicamente defendido que seus produtos
são melhores, mais gostosos e irresistíveis. As forças econômicas que foram,
dia após dia, trocando ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes.
Que somaram milhares de aditivos às nossas dietas sem pedir autorização.
Unicamente
na base do “nós somos especialistas e sabemos o que estamos fazendo”.
De
fato, existe algo que apenas as corporações podem fazer: contar qual a função
de cada um desses milhares de aditivos agregados aos produtos. Essa, sim, seria
uma boa maneira de transformar o mundo dos ultraprocessados. Se retirarmos os
aditivos que entram em um produto para conferir sabor, cor e cheiro, ou seja,
para tapeação, teremos um consumo alimentar muito mais próximo do desejável. Os
ultraprocessados passariam a ser os processados de sempre, e aí, sim, talvez
pudéssemos discutir quais são melhores e piores. Enquanto isso, no final das
contas, um ultraprocessado é só um ultraprocessado.
Fonte:
Por João Perez, em O Joio e o Trigo
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