Cruz
e Souza, o gênio máximo do simbolismo brasileiro
Há 127
anos, em 19 de março de 1898, falecia o poeta catarinense Cruz e Sousa. Ele
morreu aos 36 anos de idade, vitimado pela tuberculose. Malgrado sua vida curta
e atribulada, Cruz e Sousa tornou-se o principal expoente do simbolismo no
Brasil, dando enorme contribuição para as inovações estilísticas no uso poético
da língua portuguesa, aliando o lirismo imagístico ao uso primoroso da
aliteração, da metáfora e da sinestesia.
Cruz e
Sousa foi um dos primeiros autores negros a ingressar nos cânones literários
nacionais, produzindo obras de grande originalidade libertária, abrangendo
sobretudo o misticismo e a angústia existencial. Ele também teve importante
atuação como jornalista e foi um aguerrido militante da causa abolicionista.
- A juventude de
Cruz e Sousa
João da
Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861, em Nossa Senhora do Desterro
(atual Florianópolis), filho do pedreiro Guilherme da Cruz e da lavadeira
Carolina Eva da Conceição, ambos escravizados alforriados que trabalhavam para
marechal Guilherme Xavier de Sousa.
Impossibilitada
de ter filhos, a esposa do marechal, Clarinda Fagundes, afeiçoou-se ao menino,
assumindo sua tutela e encarregando-se de custear sua educação. Aos nove anos
de idade, Cruz e Sousa já compunha e recitava poemas.
Continua
após o anúncio
Entre
1871 e 1875, o jovem estudou no Ateneu Provincial Catarinense, onde cursou
francês, inglês, latim, grego, matemática e ciências naturais. Nessa
instituição, ele foi aluno do naturalista alemão Fritz Müller, um dos
principais colaboradores de Charles Darwin.
Em uma
carta enviada ao seu irmão em 1876, Müller elogiou efusivamente a inteligência
de Cruz e Sousa, apontando-o como uma evidência que contrariava as teorias
racistas sobre a alegada superioridade intelectual ingênita dos brancos.
Com a
morte do marechal, as condições de vida de Cruz e Sousa tornaram-se mais
difíceis. Após concluir os estudos no Ateneu, ele se dedicou ao magistério e
publicou alguns poemas nos jornais da província. Em 1881, em parceria com
Virgílio Várzea e Manuel dos Santos Lostada, fundou o jornal literário “Colombo“,
perfilado ao parnasianismo.
- Jornalista e
militante abolicionista
Nesse
mesmo ano, Cruz e Sousa começou a trabalhar como secretário na Companhia
Dramática Julieta dos Santos, com a qual realizou um périplo pelo Brasil,
viajando do Amazonas ao Rio Grande do Sul. A experiência lhe propiciou um
contato ainda mais intenso com o flagelo da escravidão, impelindo-o à defesa
vocal da causa abolicionista.
Continua
após o anúncio
Ao
longo de três anos, Cruz e Sousa uma série de conferências sediadas nas
capitais brasileiras, defendendo o fim da escravidão. Também tomou parte da
campanha antiescravagista promovida pela sociedade carnavalesca “Diabo a
Quatro”.
O ideal
antiescravagista norteou a atuação de Cruz e Sousa no jornalismo. Escreveu para
a “Tribuna Popular“, um dos mais importantes diários catarinenses,
ajudando a consolidar sua linha editorial republicana e abolicionista. Também
dirigiu o semanário ilustrado “O Moleque“, imprimindo um forte viés de
crítica política e social, causando grande desconforto nos círculos abastados
da província.
A
oposição que sofria dos setores mais reacionários era enormemente intensificada
pelo preconceito racial. Em 1883, o escritor foi nomeado promotor de Laguna,
mas foi impedido de assumir o cargo devido à reação truculenta dos chefes
políticos locais, indignados com a possibilidade de um negro assumir a função.
Apesar
do ambiente de discriminação, Cruz e Sousa tornou-se um dos mais destacados
intelectuais catarinenses. Interessou-se por autores como Charles Baudelaire,
Leconte de Lisle, Giacomo Leopardi, Guerra Junqueiro e Antero de Quental e
ajudou a fundar o grupo “Ideia Nova”, que se dedicou a difundir o conhecimento
sobre as vanguardas literárias europeias.
Continua
após o anúncio
- A carreira
literária
Em
1885, Cruz e Sousa publicou, em conjunto com Virgílio Várzea, seu primeiro
livro — “Tropos e Fantasias“, uma coletânea de poemas em prosa. Ainda
imbuída de influxo naturalista, a obra anteciparia diversas características que
se fariam presentes na sua produção posterior, incluindo o vocabulário
requintado, o gosto pelo experimentalismo e a importância conferida ao ritmo.
Três
anos depois, aceitando o convite de Oscar Rosas, Cruz e Sousa viajou ao Rio de
Janeiro, em busca de um ambiente menos hostil e mais propício ao ofício de
escritor. Na antiga capital, ele conheceu Luís Delfino e fez amizade com Nestor
Vítor, que se tornaria importante divulgador de sua obra. Permaneceu na cidade
por oito meses, mas viu-se obrigado a retornar a Desterro por não conseguir
emprego.
Em
1890, Cruz e Sousa instalou definitivamente no Rio de Janeiro, onde passou a
trabalhar como arquivista da Central do Brasil. Colaborou com diversos
periódicos, incluindo as revistas “Ilustrada” e “Novidades“. No
ano seguinte, publicou nos jornais “Folha Popular” e “O Tempo” os
primeiros artigos-manifestos do simbolismo, assumindo o papel de principal
difusor da estética simbolista-decadentista.
Em
1893, Cruz e Sousa publicou os livros “Missal” (sob influência da prosa
baudelairiana) e “Broquéis” (coligindo poemas em verso), que se
tornariam marcos da literatura nacional e o consagrariam como maior
representante do simbolismo no Brasil.
Inovadoras,
as obras combinavam características simbolistas, como a preocupação com a
musicalidade e a temática metafórica e transcendental, com traços parnasianos,
sobretudo o preciosismo sintático e a sofisticação lexical.
A
despeito da qualidade literária de suas obras, Cruz e Sousa não conheceria o
sucesso em vida. O escritor seguiria produzindo poemas de inspiração
simbolista, abandonando progressivamente o formalismo estético em favor da expressão
poética e da musicalidade, versando sobre temas como o misticismo, o
individualismo, os estados da alma, a noite e o mistério.
- Os últimos anos
Ainda
em 1893, Cruz e Sousa se casou com Gavita Rosa Gonçalves, também descendente de
escravizados. O matrimônio gerou quatro filhos: Raul, Guilherme, Reinaldo e
João. Dependendo de empregos mal remunerados, a família teve de lidar com
severas privações financeiras.
A
situação se agravaria a partir de 1894, quando Cruz e Sousa contraiu
tuberculose em função das péssimas condições de trabalho na Central do Brasil.
Gavita, por sua vez, desenvolveu graves distúrbios mentais após o nascimento do
segundo filho.
A
discriminação racial, a pobreza, a melancolia, a morte e a indignação seriam
temas presentes nos últimos poemas de Cruz e Sousa. Em “Emparedado“, o
escritor expressa sua “completa, lógica e inevitável revolta” com os obstáculos
interpostos por uma sociedade racista, cruel e injusta, descritos como uma
“parede horrendamente incomensurável de egoísmos e preconceitos”.
Em
1897, o escritor concluiu o livro de prosa poética “Evocações“, mas o
agravamento da doença o impediu de publicar a obra. Cruz e Sousa se mudou para
Curral Novo, em Minas Gerais, na esperança de que as condições climáticas mais
favoráveis ajudassem em sua recuperação.
A
tentativa foi em vão. Cruz e Sousa faleceria em 19 de março de 1898, com apenas
36 anos de idade. Sua família teve a mesma sina. Todos os quatro filhos
morreram de tuberculose antes de atingirem a maioridade. Testemunhando o
destino trágico dos filhos, Gavita enlouqueceu e, em 1901, também sucumbiu à
moléstia.
- A consagração
após a morte
José do
Patrocínio arcou com as despesas do funeral do escritor, sepultado no Cemitério
São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro. Seus escritos foram reunidos por
amigos e postumamente publicados: “Evocações“, lançado no ano de sua
morte, “Faróis“, publicado dois anos depois, e “Últimos Sonetos“,
lançado em 1905.
Três
coletâneas contendo alguns poemas inéditos de Cruz e Sousa foram lançadas em
1961, por ocasião do centenário de nascimento do autor: “Outras Evocações“,
“O Livro Derradeiro” e “Dispersos“.
Todas
essas obras transparecem o que Ivone Daré Rabello chamou de “respostas líricas
do excluído” — poemas que sintetizam os dilemas e os infortúnios advindos do
jugo de uma sociedade escravocrata que jamais o aceitou. Como observou Ronald
de Carvalho, “não há quase um verso seu em que não haja um grito contra a
opressão do ambiente que o cercava”.
Em
2007, os restos mortais do escritor foram trasladados para Florianópolis e
depositados no Palácio Cruz e Sousa, antiga sede do governo catarinense. Ele é
o patrono da cadeira nº. 15 da Academia Catarinense de Letras.
Por seu
extraordinário talento literário e enormes contribuições para a cultura
brasileira, Cruz e Sousa recebeu a alcunha de “Dante Negro”. É considerado por
muitos críticos como o maior poeta brasileiro do século XIX e frequentemente
listado como um dos maiores nomes do simbolismo, ao lado de Stéphane Mallarmé e
Stefan George.
Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi
Nenhum comentário:
Postar um comentário