quinta-feira, 27 de março de 2025

40 anos de democracia: Os desaparecidos da ditadura

Durante 21 anos — de 1964 a 1985 —, o Brasil viveu sob um regime ditatorial organizado pelas Forças Armadas. Uma era marcada pela normalização da tortura a opositores políticos, censuras e práticas de terrorismo de Estado. Um período onde apenas a oposição consentida poderia existir, limitada ao antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) — partido que inspirou a criação do MDB de hoje em dia.

Fernando Santa Cruz e Jayme Miranda, cujas histórias o Correio traz, foram dois dos milhares de militantes que desapareceram lutando contra a repressão.

A batalha pelo reconhecimento dos desaparecidos retornou aos holofotes com o lançamento do filme Ainda Estou Aqui, que conta a história da família de Rubens Paiva durante o regime, e ganhou um Oscar.

·        Casa da Morte

Fernando Augusto de Santa Cruz era servidor público e estudante de direito na Universidade Federal Fluminense (UFF) no início dos anos 1970, como conta seu filho, Felipe Santa Cruz. Junto de sua família, Fernando estava inconformado com a ditadura e se juntou à resistência contra o regime por meio da Juventude Católica, mas nunca apoiou a luta armada, ao contrário do que foi dito por Jair Bolsonaro em 2019.

No carnaval de 1974, em 23 de fevereiro, o estudante saiu de Copacabana, no Rio de Janeiro, para encontrar Eduardo Collier, um amigo ligado à resistência. Fernando, que já sabia do risco, deixou avisado à família que se não retornasse até as 18h, seria porque teria sido pego pelos militares. A família nunca mais o viu.

"Minha avó sempre morou na mesma casa enquanto teve forças, esperando meu pai voltar. Acho que a dor de cada um é diferente. Minha família liderou o comitê de anistia, meus tios, a própria luta da OAB pela anistia. Sempre tivemos uma atuação politicamente articulada na resistência, e, claro, sempre houve dor. A dor nunca é indissociável da própria luta política", observa Felipe.

O filho de Fernando conta que existem depoimentos da época, prestados pelo ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/ES) Claudio Guerra, confirmando os assassinatos de Santa Cruz e Collier. Ambos teriam sido levados para a Casa da Morte de Petrópolis, assassinados e depois tiveram seus corpos incinerados em uma usina — pertencente a um senador da Arena, partido que apoiava o regime — em Campos dos Goytacazes.

·        Tortura

O advogado e jornalista maceioense Jayme Amorim de Miranda, secretário de organização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), vivia no Rio de Janeiro desde 1965 com a esposa, Elza, e seus quatro filhos, porém, clandestinamente. O militante precisou fugir de Alagoas devido à perseguição que sofria, já tendo sido preso por nove meses em sua cidade natal.

Em 4 de fevereiro de 1975, segundo relatos de Thyago Miranda, neto de Jayme, o pecebista foi informado de que a gráfica do partido, onde ele trabalhava, havia explodido. Ele foi ao local para tentar recuperar documentos da oposição clandestina, com o intuito de fugir do país, quando foi capturado pelos militares. Jayme Miranda nunca mais voltou para casa, e seus restos mortais nunca foram encontrados.

Thyago comenta que, apesar de constantemente escrever cartas ao presidente Ernesto Geisel e buscar ajuda na Ordem dos Advogados do Brasil, Elza não possuía nenhuma informação sobre o paradeiro de Jayme. Apenas em 1992, em uma entrevista do ex-agente Marival Chaves para a revista Veja, que a família ouviu, pela primeira vez, o que havia acontecido com Miranda.

"(Segundo Marival Chaves) Jayme foi levado do Rio de Janeiro a São Paulo, para uma antiga boate chamada Querosene, onde foi torturado por 20 dias. Como ele se negava a falar, os torturadores o queimaram e depois o mataram com uma injeção utilizada para matar cavalos. O corpo foi esquartejado e jogado no rio em Avaré, mas a cidade do assassinato foi Itapevi", contou o neto do militante.

A história foi confirmada pelo jornalista Marcelo Godoy, em seu livro Cachorros, publicado em 2024. O livro trouxe, ainda, mais detalhes desconhecidos pela família. Segundo a apuração do jornalista, Jayme foi traído por Severino Theodoro de Mello, um infiltrado no Comitê Central do PCB — que recebia pagamentos do Exército e foi responsável, também, pela queda de vários membros do Comitê.

·        Pressão internacional

O doutor em história e professor da Universidade de Brasília (UnB) Mateus Gamba relembra que a estratégia do regime era sempre a de negar os desaparecimentos, alegando, em alguns casos, que essas pessoas haviam sido mortas por seus próprios companheiros, em supostos atos de “justiçamento”.

“À medida que os desaparecimentos se acumulavam, a pressão internacional sobre o Brasil aumentava. Familiares de vítimas buscaram organismos internacionais para denunciar as violações de direitos humanos. O governo militar, pressionado, ora negava qualquer responsabilidade, ora alegava que os desaparecidos haviam abandonado suas famílias para ingressar em grupos clandestinos”, ressalta o professor.

O discurso oficial, afirmou Gamba, tentava deslegitimar os opositores, rotulando-os como terroristas. Assim, o regime justificava as prisões arbitrárias e execuções sumárias. Esse argumento, segundo o historiador, pode ser visto até hoje em alguns setores, minimizando ou negando os atos cometidos durante a ditadura. “Os militares no Brasil nunca pediram desculpas às suas vítimas”, lamenta.

·        Lei dos Mortos e Desaparecidos

Os desaparecidos só tiveram suas mortes confirmadas em 1995, a partir da Lei nº 9.140 (Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos), quando foi criada a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A comissão tinha o objetivo de reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas, em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas.

Relatório Final de Atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de 2022, afirma que, inicialmente, a lei reconheceu 135 pessoas como mortas e desaparecidas por razões políticas. Nas duas décadas seguintes, mais 288 pessoas foram reconhecidas pela comissão.

Anos mais tarde, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em novembro de 2011, comprovou a morte e o desaparecimento de 434 pessoas durante todo o regime ditatorial, mas, segundo Luciana Lombardo, chefe de divisão do Memórias Reveladas — projeto do Arquivo Nacional que reúne e divulga documentos sobre a ditadura militar no Brasil —, a própria CNV estima mais de 10 mil vítimas da ditadura “sem medo de exagerar, e ainda é uma subnotificação”.

“Os 434 são os casos que estão oficialmente reconhecidos, o que não quer dizer que a própria CNV não tenha descoberto, nas suas pesquisas com a Comissão Camponesa da Verdade, por exemplo, que a estimativa é de mais de 1,3 mil camponeses mortos e desaparecidos. Junto aos pesquisadores dos povos indígenas, a estimativa é de mais de 8,3 mil indígenas desaparecidos. Então, essa conta não representa o universo total das vítimas da ditadura e dos desaparecimentos forçados no Brasil”, relata Luciana.

A especialista afirma que essas mortes eram frequentemente vistas como parte da violência cotidiana no Brasil, mas que são, sim, vítimas da ditadura. Ela complementa que, em relação ao número consolidado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, o dado mais recente é de 434 mortos, segundo o relatório do CNV de 2014, mas que “isso não significa que não haja outras vítimas”.

·        Memória e justiça

O cientista social e doutorando em história da ditadura pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Yagoo Moura destaca que antes de os militares deixarem o poder em 1985, eles criaram condições para não serem responsabilizados pelas práticas de violação aos direitos humanos cometidas durante os 21 anos de ditadura.

Em 1979, observa Moura, foi criada a Lei da Anistia, em meio a uma mobilização social em prol da anistia dos perseguidos políticos, que contava com organizações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) — que, de início, apoiou os militares, mas, depois, tornou-se opositora do regime — e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Porém, o historiador aponta que a resposta do regime foi uma “autoanistia, uma forma de se eximir das responsabilidades dos atos praticados”.

Ele explica que o que a Lei de Anistia prevê é perdoar crimes políticos e crimes conexos a estes. “A interpretação dada para salvaguardar os militares foi de que o crime conexo era o seguinte, o sujeito cometeu um crime político, qualquer que fosse ele. Ele era preso, torturado e morto. Então, quem torturou, matou e desapareceu com esse preso está anistiado, porque é um crime conexo. Essa é a interpretação que se deu e que foi validada durante o regime democrático. O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, para não soar mal na caserna, foi por manter esse entendimento, que contraria todos os tratados internacionais sobre direitos humanos”, analisa.

Mateus Gamba acrescenta que, apesar de a Lei da Anistia ter favorecido os militares, ela trouxe, em um primeiro momento, a libertação de presos políticos cujos crimes estavam relacionados à opinião e opositores exilados.

Gamba concorda que a decisão do STF, em 2010, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, representou “um grande retrocesso para a Justiça de transição no Brasil”, impedindo a responsabilização criminal dos agentes do Estado envolvidos em torturas, assassinato e desaparecimentos forçados.

Ele afirma que, no Brasil, há avanços em termos de memória e verdade, mas não em justiça. Até hoje, pontua, os responsáveis por crimes cometidos na ditadura não foram punidos, mas recentemente, voltou-se a discutir a possibilidade de responsabilizar criminalmente aqueles que cometeram desaparecimentos forçados.

“A justificativa jurídica para isso é que o desaparecimento é um crime continuado, ou seja, persiste até que o paradeiro da vítima seja esclarecido”, ressalta o historiador, em referência ao Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1501674, com relatoria do ministro Flávio Dino, no STF, que visa analisar se a Lei da Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar e que permanecem até hoje sem solução.

¨      Anistia e negacionismo histórico. Por Lucas Pedretti

Há poucos dias, este jornal publicou artigo em que um general do Exército defendia a anistia como um instrumento político e jurídico fundamental na história brasileira. A partir de exemplos históricos que demonstrariam como as sucessivas anistias teriam aberto caminho para uma solução pacífica dos conflitos, o general defendeu, então, a anistia aos acusados pelo 8 de Janeiro.

O texto não surpreende. Afinal, anistias foram instrumentos historicamente usados por oficiais militares para garantir a própria impunidade. Também produziram o esquecimento coletivo e a própria naturalização de seus crimes. Aliás, o mesmo general, ministro da Saúde de Bolsonaro, até hoje não foi responsabilizado pela tragédia que vivemos naqueles anos, a despeito de ter sido indiciado pela CPI da Covid do Senado Federal.

O mantra da caserna de um Duque de Caxias "pacificador" ignora uma folha corrida de massacres, da Guerra do Paraguai às rebeliões regenciais. O espírito de "reconciliação" de Caxias talvez só tenha existido frente aos escravocratas que lideraram a Farroupilha, destinando aos Lanceiros Negros o Massacre de Porongos. Ali, sua ação contrastou com a resposta dada pelo militar às revoltas populares como a Cabanagem e a Balaiada, que resultou em dezenas de milhares de mortos.

A ideia de que a repressão à "Intentona" Comunista de 1935 foi a forma de "evitar um maior esgarçamento do tecido social" chega a ser inacreditável. Em 1937, uma grande fake news produzida por um tal capitão Mourão (não o amigo do general, mas Olímpio Mourão Filho) fomentou o anticomunismo do Exército para legitimar o golpe e a ditadura do Estado Novo, com brutal repressão. A anistia veio quase uma década depois, não sem antes deixar um enorme saldo de torturados e mortos. O exemplo também ignora que o Partido Comunista ficou proscrito por quase todo o século 20. Será que o general aceitaria igual destino para seu atual partido, em nome da "reconciliação nacional"?

Por fim, a ideia de que a anistia de 1979 foi ampla, geral e irrestrita é uma falsificação histórica das mais grosseiras. Essa foi a palavra de ordem construída pela sociedade civil a partir de meados dos anos 1970, por meio da qual os Comitês Brasileiros pela Anistia demandavam não apenas a volta dos exilados e a liberdade dos presos políticos, mas também memória, verdade, reparação e, principalmente, justiça em relação aos mortos e desaparecidos. Figueiredo, o último dos generais ditadores, veio à público repetidas vezes afirmar que os militares jamais aceitariam uma anistia ampla, geral e irrestrita. Mas, ao notar que a luta crescia na sociedade, a ditadura mudou de estratégia. Ao invés de recusar a demanda, ela impôs os próprios termos para a anistia, invertendo completamente os sentidos daquela bandeira popular. 

A anistia ampla, geral e irrestrita, que deveria ser sinônimo de memória e justiça, passou a ser a anistia do "esquecimento" e da "reconciliação", que eram, na verdade, sinônimos de impunidade. De fato, esse é o sentido fundamental da lei imposta pelo regime em 1979, por meio de um Congresso ainda sob seu estrito controle: garantir que os torturadores e assassinos de Rubens Paiva e de milhares de outros brasileiros saíssem impunes pelos crimes que cometeram, ao mesmo tempo em que mantinha excluídos dos benefícios diversos militantes ainda presos.

O negacionismo que já conhecíamos em relação às vacinas transforma-se em negacionismo histórico. E reforça o diagnóstico de que nas escolas militares se ensina mitologia ao invés de historiografia. Em verdade, esse negacionismo serve para esconder que anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o caminho para que golpistas voltassem a atentar contra a democracia. Caso militares golpistas tivessem sido responsabilizados na primeira metade do século 20, possivelmente não teríamos vivido uma ditadura de mais de 20 anos.

E caso os responsáveis por essa ditadura não tivessem sido anistiados em 1979, o deputado federal cujo ídolo é um torturador dificilmente teria chegado à Presidência da República. Assim, poderíamos ter evitado muitos episódios que, ao longo dos últimos anos, demonstraram que a farda tem sido vista, pelos próprios militares, como uma garantia de não responsabilização.

Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada histórica. Ou rompemos com o ciclo de impunidade que marca nossa história ou estaremos permanentemente ameaçados pelo risco do retorno ao autoritarismo, com a ascensão de torturadores e negacionistas ao poder.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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