40
anos de democracia: Os desaparecidos da ditadura
Durante
21 anos — de 1964 a 1985 —, o Brasil viveu sob um regime ditatorial organizado
pelas Forças Armadas. Uma era marcada pela normalização da tortura a opositores
políticos, censuras e práticas de terrorismo de Estado. Um período onde apenas
a oposição consentida poderia existir, limitada ao antigo Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) — partido que inspirou a criação do MDB de hoje em dia.
Fernando
Santa Cruz e Jayme Miranda, cujas histórias o Correio traz, foram dois dos
milhares de militantes que desapareceram lutando contra a repressão.
A
batalha pelo reconhecimento dos desaparecidos retornou aos holofotes com o
lançamento do filme Ainda Estou Aqui, que conta a história da família de Rubens
Paiva durante o regime, e ganhou um Oscar.
·
Casa da Morte
Fernando
Augusto de Santa Cruz era servidor público e estudante de direito na
Universidade Federal Fluminense (UFF) no início dos anos 1970, como conta seu
filho, Felipe Santa Cruz. Junto de sua família, Fernando estava inconformado
com a ditadura e se juntou à resistência contra o regime por meio da Juventude
Católica, mas nunca apoiou a luta armada, ao contrário do que foi dito por Jair
Bolsonaro em 2019.
No
carnaval de 1974, em 23 de fevereiro, o estudante saiu de Copacabana, no Rio de
Janeiro, para encontrar Eduardo Collier, um amigo ligado à resistência.
Fernando, que já sabia do risco, deixou avisado à família que se não retornasse
até as 18h, seria porque teria sido pego pelos militares. A família nunca mais
o viu.
"Minha
avó sempre morou na mesma casa enquanto teve forças, esperando meu pai voltar.
Acho que a dor de cada um é diferente. Minha família liderou o comitê de
anistia, meus tios, a própria luta da OAB pela anistia. Sempre tivemos uma
atuação politicamente articulada na resistência, e, claro, sempre houve dor. A
dor nunca é indissociável da própria luta política", observa Felipe.
O filho
de Fernando conta que existem depoimentos da época, prestados pelo ex-delegado
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/ES) Claudio Guerra,
confirmando os assassinatos de Santa Cruz e Collier. Ambos teriam sido levados
para a Casa da Morte de Petrópolis, assassinados e depois tiveram seus corpos
incinerados em uma usina — pertencente a um senador da Arena, partido que
apoiava o regime — em Campos dos Goytacazes.
·
Tortura
O
advogado e jornalista maceioense Jayme Amorim de Miranda, secretário de
organização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), vivia no Rio de Janeiro
desde 1965 com a esposa, Elza, e seus quatro filhos, porém, clandestinamente. O
militante precisou fugir de Alagoas devido à perseguição que sofria, já tendo
sido preso por nove meses em sua cidade natal.
Em 4 de
fevereiro de 1975, segundo relatos de Thyago Miranda, neto de Jayme, o
pecebista foi informado de que a gráfica do partido, onde ele trabalhava, havia
explodido. Ele foi ao local para tentar recuperar documentos da oposição
clandestina, com o intuito de fugir do país, quando foi capturado pelos
militares. Jayme Miranda nunca mais voltou para casa, e seus restos mortais
nunca foram encontrados.
Thyago
comenta que, apesar de constantemente escrever cartas ao presidente Ernesto
Geisel e buscar ajuda na Ordem dos Advogados do Brasil, Elza não possuía
nenhuma informação sobre o paradeiro de Jayme. Apenas em 1992, em uma
entrevista do ex-agente Marival Chaves para a revista Veja, que a
família ouviu, pela primeira vez, o que havia acontecido com Miranda.
"(Segundo
Marival Chaves) Jayme foi levado do Rio de Janeiro a São Paulo, para uma antiga
boate chamada Querosene, onde foi torturado por 20 dias. Como ele se negava a
falar, os torturadores o queimaram e depois o mataram com uma injeção utilizada
para matar cavalos. O corpo foi esquartejado e jogado no rio em Avaré, mas a
cidade do assassinato foi Itapevi", contou o neto do militante.
A
história foi confirmada pelo jornalista Marcelo Godoy, em seu livro Cachorros,
publicado em 2024. O livro trouxe, ainda, mais detalhes desconhecidos pela
família. Segundo a apuração do jornalista, Jayme foi traído por Severino
Theodoro de Mello, um infiltrado no Comitê Central do PCB — que recebia
pagamentos do Exército e foi responsável, também, pela queda de vários membros
do Comitê.
·
Pressão internacional
O
doutor em história e professor da Universidade de Brasília (UnB) Mateus Gamba
relembra que a estratégia do regime era sempre a de negar os desaparecimentos,
alegando, em alguns casos, que essas pessoas haviam sido mortas por seus
próprios companheiros, em supostos atos de “justiçamento”.
“À
medida que os desaparecimentos se acumulavam, a pressão internacional sobre o
Brasil aumentava. Familiares de vítimas buscaram organismos internacionais para
denunciar as violações de direitos humanos. O governo militar, pressionado, ora
negava qualquer responsabilidade, ora alegava que os desaparecidos haviam
abandonado suas famílias para ingressar em grupos clandestinos”, ressalta o
professor.
O
discurso oficial, afirmou Gamba, tentava deslegitimar os opositores,
rotulando-os como terroristas. Assim, o regime justificava as prisões
arbitrárias e execuções sumárias. Esse argumento, segundo o historiador, pode
ser visto até hoje em alguns setores, minimizando ou negando os atos cometidos
durante a ditadura. “Os militares no Brasil nunca pediram desculpas às suas
vítimas”, lamenta.
·
Lei dos Mortos e Desaparecidos
Os
desaparecidos só tiveram suas mortes confirmadas em 1995, a partir da Lei nº
9.140 (Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos), quando foi criada a Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A comissão tinha o
objetivo de reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas, em razão de
participação ou acusação de participação em atividades políticas.
O Relatório
Final de Atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos,
de 2022, afirma que, inicialmente, a lei reconheceu 135 pessoas como mortas e
desaparecidas por razões políticas. Nas duas décadas seguintes, mais 288
pessoas foram reconhecidas pela comissão.
Anos
mais tarde, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em novembro de 2011,
comprovou a morte e o desaparecimento de 434 pessoas durante todo o regime
ditatorial, mas, segundo Luciana Lombardo, chefe de divisão do Memórias
Reveladas — projeto do Arquivo Nacional que reúne e divulga documentos sobre a
ditadura militar no Brasil —, a própria CNV estima mais de 10 mil vítimas da
ditadura “sem medo de exagerar, e ainda é uma subnotificação”.
“Os 434
são os casos que estão oficialmente reconhecidos, o que não quer dizer que a
própria CNV não tenha descoberto, nas suas pesquisas com a Comissão Camponesa
da Verdade, por exemplo, que a estimativa é de mais de 1,3 mil camponeses
mortos e desaparecidos. Junto aos pesquisadores dos povos indígenas, a
estimativa é de mais de 8,3 mil indígenas desaparecidos. Então, essa conta não
representa o universo total das vítimas da ditadura e dos desaparecimentos
forçados no Brasil”, relata Luciana.
A
especialista afirma que essas mortes eram frequentemente vistas como parte da
violência cotidiana no Brasil, mas que são, sim, vítimas da ditadura. Ela
complementa que, em relação ao número consolidado pela Comissão de Mortos e
Desaparecidos, o dado mais recente é de 434 mortos, segundo o relatório do CNV
de 2014, mas que “isso não significa que não haja outras vítimas”.
·
Memória e justiça
O
cientista social e doutorando em história da ditadura pela Fundação Getulio
Vargas (FGV) Yagoo Moura destaca que antes de os militares deixarem o poder em
1985, eles criaram condições para não serem responsabilizados pelas práticas de
violação aos direitos humanos cometidas durante os 21 anos de ditadura.
Em
1979, observa Moura, foi criada a Lei da Anistia, em meio a uma mobilização
social em prol da anistia dos perseguidos políticos, que contava com
organizações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) — que, de
início, apoiou os militares, mas, depois, tornou-se opositora do regime — e a
Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Porém, o historiador aponta que a
resposta do regime foi uma “autoanistia, uma forma de se eximir das
responsabilidades dos atos praticados”.
Ele
explica que o que a Lei de Anistia prevê é perdoar crimes políticos e crimes
conexos a estes. “A interpretação dada para salvaguardar os militares foi
de que o crime conexo era o seguinte, o sujeito cometeu um crime político,
qualquer que fosse ele. Ele era preso, torturado e morto. Então, quem torturou,
matou e desapareceu com esse preso está anistiado, porque é um crime conexo.
Essa é a interpretação que se deu e que foi validada durante o regime
democrático. O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, para
não soar mal na caserna, foi por manter esse entendimento, que contraria todos
os tratados internacionais sobre direitos humanos”, analisa.
Mateus
Gamba acrescenta que, apesar de a Lei da Anistia ter favorecido os militares,
ela trouxe, em um primeiro momento, a libertação de presos políticos cujos
crimes estavam relacionados à opinião e opositores exilados.
Gamba
concorda que a decisão do STF, em 2010, no julgamento da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, representou “um grande
retrocesso para a Justiça de transição no Brasil”, impedindo a
responsabilização criminal dos agentes do Estado envolvidos em torturas,
assassinato e desaparecimentos forçados.
Ele
afirma que, no Brasil, há avanços em termos de memória e verdade, mas não em
justiça. Até hoje, pontua, os responsáveis por crimes cometidos na ditadura não
foram punidos, mas recentemente, voltou-se a discutir a possibilidade de
responsabilizar criminalmente aqueles que cometeram desaparecimentos forçados.
“A
justificativa jurídica para isso é que o desaparecimento é um crime continuado,
ou seja, persiste até que o paradeiro da vítima seja esclarecido”, ressalta o
historiador, em referência ao Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1501674,
com relatoria do ministro Flávio Dino, no STF, que visa analisar se a Lei da
Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura
militar e que permanecem até hoje sem solução.
¨
Anistia e negacionismo histórico. Por Lucas Pedretti
Há
poucos dias, este jornal publicou artigo em que um general do Exército defendia
a anistia como um instrumento político e jurídico fundamental na história
brasileira. A partir de exemplos históricos que demonstrariam como as
sucessivas anistias teriam aberto caminho para uma solução pacífica dos
conflitos, o general defendeu, então, a anistia aos acusados pelo 8 de Janeiro.
O texto
não surpreende. Afinal, anistias foram instrumentos historicamente usados por
oficiais militares para garantir a própria impunidade. Também produziram o
esquecimento coletivo e a própria naturalização de seus crimes. Aliás, o mesmo
general, ministro da Saúde de Bolsonaro, até hoje não foi responsabilizado pela
tragédia que vivemos naqueles anos, a despeito de ter sido indiciado pela CPI
da Covid do Senado Federal.
O
mantra da caserna de um Duque de Caxias "pacificador" ignora uma
folha corrida de massacres, da Guerra do Paraguai às rebeliões regenciais. O
espírito de "reconciliação" de Caxias talvez só tenha existido frente
aos escravocratas que lideraram a Farroupilha, destinando aos Lanceiros Negros
o Massacre de Porongos. Ali, sua ação contrastou com a resposta dada pelo
militar às revoltas populares como a Cabanagem e a Balaiada, que resultou em
dezenas de milhares de mortos.
A ideia
de que a repressão à "Intentona" Comunista de 1935 foi a forma de
"evitar um maior esgarçamento do tecido social" chega a ser
inacreditável. Em 1937, uma grande fake news produzida por um tal capitão
Mourão (não o amigo do general, mas Olímpio Mourão Filho) fomentou o
anticomunismo do Exército para legitimar o golpe e a ditadura do Estado Novo,
com brutal repressão. A anistia veio quase uma década depois, não sem antes
deixar um enorme saldo de torturados e mortos. O exemplo também ignora que o
Partido Comunista ficou proscrito por quase todo o século 20. Será que o
general aceitaria igual destino para seu atual partido, em nome da
"reconciliação nacional"?
Por
fim, a ideia de que a anistia de 1979 foi ampla, geral e irrestrita é uma
falsificação histórica das mais grosseiras. Essa foi a palavra de ordem
construída pela sociedade civil a partir de meados dos anos 1970, por meio da
qual os Comitês Brasileiros pela Anistia demandavam não apenas a volta dos
exilados e a liberdade dos presos políticos, mas também memória, verdade,
reparação e, principalmente, justiça em relação aos mortos e desaparecidos.
Figueiredo, o último dos generais ditadores, veio à público repetidas vezes
afirmar que os militares jamais aceitariam uma anistia ampla, geral e
irrestrita. Mas, ao notar que a luta crescia na sociedade, a ditadura mudou de
estratégia. Ao invés de recusar a demanda, ela impôs os próprios termos para a
anistia, invertendo completamente os sentidos daquela bandeira popular.
A
anistia ampla, geral e irrestrita, que deveria ser sinônimo de memória e
justiça, passou a ser a anistia do "esquecimento" e da
"reconciliação", que eram, na verdade, sinônimos de impunidade. De
fato, esse é o sentido fundamental da lei imposta pelo regime em 1979, por meio
de um Congresso ainda sob seu estrito controle: garantir que os torturadores e
assassinos de Rubens Paiva e de milhares de outros brasileiros saíssem impunes
pelos crimes que cometeram, ao mesmo tempo em que mantinha excluídos dos benefícios
diversos militantes ainda presos.
O negacionismo
que já conhecíamos em relação às vacinas transforma-se em negacionismo
histórico. E reforça o diagnóstico de que nas escolas militares se ensina
mitologia ao invés de historiografia. Em verdade, esse negacionismo serve para
esconder que anistias tiveram como efeito, ao longo da história, deixar livre o
caminho para que golpistas voltassem a atentar contra a democracia. Caso
militares golpistas tivessem sido responsabilizados na primeira metade do
século 20, possivelmente não teríamos vivido uma ditadura de mais de 20 anos.
E caso
os responsáveis por essa ditadura não tivessem sido anistiados em 1979, o
deputado federal cujo ídolo é um torturador dificilmente teria chegado à
Presidência da República. Assim, poderíamos ter evitado muitos episódios que,
ao longo dos últimos anos, demonstraram que a farda tem sido vista, pelos
próprios militares, como uma garantia de não responsabilização.
Estamos,
portanto, diante de uma encruzilhada histórica. Ou rompemos com o ciclo de
impunidade que marca nossa história ou estaremos permanentemente ameaçados pelo
risco do retorno ao autoritarismo, com a ascensão de torturadores e
negacionistas ao poder.
Fonte:
Correio Braziliense
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