“Ser Navajo
é ser mais americano que americano”: indígenas e o ato antimigração de Trump
À medida que o Serviço de
Imigração e Controle de Alfândegas dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês)
intensifica seus esforços para apreender e deportar imigrantes indocumentados
em todo o país, cresce entre comunidades indígenas que vivem em áreas urbanas a
preocupação com relatos de pessoas detidas no Arizona, estado no sul dos EUA,
que faz fronteira com o México. Desde que o presidente dos EUA, Donald
Trump, assinou um decreto para aumentar as operações do ICE, líderes do povo
indígena Navajo têm recebido relatos de que membros estão sendo detidos,
aumentando as incertezas sobre as implicações dessas ações para suas
comunidades.
“Agora sabemos que indígenas
Navajo e membros de outros povos estão sendo detidos na cidade de Phoenix e em
outras cidades pelo ICE”, disse a porta-voz do Conselho da Nação Navajo,
Crystalyne Curley, durante uma reunião no dia 23 de janeiro. “Os relatos que
recebemos indicam que precisamos coordenar uma operação ou algum tipo de
resposta para ajudar a Nação Navajo.”
Na reunião, líderes Navajo
relataram ter recebido telefonemas e mensagens de texto de indígenas que vivem
em áreas urbanas e que foram parados, interrogados ou detidos pelo ICE. Esses
relatos geraram indignação entre os membros do Conselho da Nação Navajo e
motivaram uma discussão durante uma reunião do Comitê Naabik’íyáti’, um dos
cinco comitês da Nação Navajo.
“Essas operações geraram um
medo significativo, especialmente entre indígenas de áreas urbanas que
enfrentam desafios com a documentação”, afirmou o Conselho da Nação Navajo em
comunicado à imprensa. Durante a reunião, não foi divulgado o número exato de
pessoas Navajo detidas.
Por que isso importa?
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Os Navajo são uma das maiores populações indígenas
nos EUA, e a Nação Navajo é a maior reconhecida no país, com quase 400 mil
pessoas.
A senadora pelo estado do
Arizona Theresa Hatathlie participou virtualmente da reunião e compartilhou um
relatório e suas preocupações. Hatathlie representa o distrito legislativo que
abrange a Nação Navajo.
Ela informou ao conselho que
recebeu uma ligação sobre um caso envolvendo oito cidadãos Navajo que foram
detidos por horas, sem acesso a telefones celulares e sem possibilidade de
entrar em contato com suas famílias ou povos. Ela não revelou as identidades e
disse aos membros do conselho que são necessários protocolos de emergência,
pois muitos membros já enfrentam dificuldades para obter a documentação
adequada, o que pode piorar com as operações do ICE.
“Apesar de possuírem
Certificados de Sangue Indígena (CIBs) e carteiras de identidade emitidas pelo
Estado, várias pessoas foram detidas ou interrogadas por agentes do ICE, que
não reconhecem esses documentos como prova válida de cidadania”, afirmou o
Conselho da Nação Navajo em comunicado.
A porta-voz do conselho,
Crystalyne Curley, pediu assistência imediata ao presidente da Nação Navajo,
Buu Nygren.
“Nossa gente está entrando em contato conosco
diretamente, e suas necessidades são urgentes. Precisamos agir rapidamente para
garantir sua segurança e bem-estar”, ela alertou.
Curley afirmou que os Navajo
dependem da comunidade para encontrar soluções e que a resposta de Nygren à
questão tem sido insuficiente.
“Precisamos de registros
claros e sistemas de rastreamento para compreender a extensão desses problemas.
Não podemos esperar por outro incidente. Precisamos de protocolos de emergência
agora”, disse Curley.
Nygren disse ao Arizona Mirror que seu gabinete tem
ouvido as preocupações que chegam a ele e que circulam nas redes sociais sobre
indígenas em áreas urbanas potencialmente detidos pelo ICE. No entanto, ele
afirmou que seu gabinete não conseguiu verificar ou localizar um cidadão Navajo
que tenha sido detido.
“Ser indígena, ser Navajo,
significa ser mais americano do que ser americano. Precisamos de respeito do
governo federal”, disse o presidente da Nação Navajo.
Nygren afirmou que sua
equipe entrou em contato com os governadores do Arizona e do estado do Novo
México, bem como com todas as autoridades estaduais e federais de segurança
pública, o ICE e outros departamentos, para informar que o povo está atento.
“Não vamos recuar quando se
trata dos nossos cidadãos. Nossa equipe está focada, e queremos garantir que o
povo Navajo esteja informado.”
O gabinete de Nygren
compartilhou um guia nas redes sociais para que os Navajos que vivem em áreas
urbanas possam se orientar caso sejam abordados por agentes de imigração.
O guia inclui dicas de como
não resistir, documentar o encontro, relatar o incidente e, se detido ou preso,
exercer o direito de permanecer em silêncio e de falar com um advogado.
Além das entidades estaduais
e federais, Nygren afirmou que seu gabinete entrou em contato também com
comunidades que vivem ao longo da fronteira com o México, pois elas têm mais
experiência em lidar com essas situações.
“O conselho que nos deram
foi ter a identidade em mãos e ser respeitoso”, disse ele, acrescentando que os
líderes relataram que não houve nenhuma atividade incomum em suas comunidades.
“Há alguns dias, eu não
imaginava que estaria discutindo uma situação dessas”, comentou.
Apesar da preocupação
crescente, Nygren afirmou que seu gabinete não emitirá uma ordem executiva
relacionada ao caso até que seja verificado algum incidente envolvendo uma
pessoa Navajo.
“No momento, não há uma
única pessoa detida que me faça considerar isso”, disse Nygren, acrescentando
que seu gabinete está se preparando e elaborando um plano a ser implementado.
Essa abordagem enfureceu os
delegados do Conselho da Nação Navajo durante a reunião do Comitê
Naabik’íyáti’, e eles criticaram a decisão de esperar até que casos sejam
verificados.
“Se alguém fosse detido
agora, nossa mensagem para eles seria que terão que esperar,” disse a delegada
Eugenia Charles-Newton durante a reunião.
“Nossa gente tem medo de
viajar, se expressar ou interagir com as forças de segurança devido à ameaça de
retaliação”, afirmou Charles-Newton.
Os líderes do Comitê
Naabik’íyáti’ se comprometeram a impulsionar uma legislação de emergência para
apoiar pessoas impactadas pelas operações e garantir acesso rápido a documentos
de identificação para os cidadãos Navajo.
“É inaceitável que nosso
povo seja detido porque seus documentos não são reconhecidos. Essa injustiça
precisa acabar”, disse Curley.
O comitê destacou também a
necessidade de aprimorar o sistema de identificação da Nação Navajo para
atender aos padrões federais. Os delegados enfatizaram a urgência de uma
legislação de emergência para facilitar a emissão de documentos de identificação
e o acesso a recursos para pessoas afetadas pelas operações do ICE.
O comitê ressaltou ainda a
necessidade de colaboração com os governos estadual e federal, bem como com
outras nações indígenas, para abordar as implicações mais amplas dessas
operações. Os planos incluem uma linha direta gratuita, ações de
conscientização comunitária para educar os cidadãos sobre seus direitos e
suporte legal.
A defensora comunitária Reva
Stewart, que trabalha diretamente com indígenas sem teto na cidade de Phoenix,
afirmou que aumentou o número de ligações de pessoas preocupadas em todo o
estado do Arizona.
Com a preocupação crescente,
Stewart disse que os esforços de sua equipe começarão com orientações sobre os
direitos dos indivíduos caso sejam abordados ou detidos por um agente de
imigração.
“Esse é um problema
adicional que não deveríamos estar enfrentando”, observou ela, destacando que
muitos indígenas sem teto na área de Phoenix podem não ter seus documentos de
identificação, deixando-os vulneráveis às operações de imigração.
“É assustador”, disse ela.
·
“Já passamos por isso antes”
April Ignacio, cofundadora
da Indivisible Tohono, cresceu e vive na Nação Tohono O’odham, cujas terras
estão localizadas em ambos os lados da fronteira entre o Arizona e o México.
“Ainda temos nossas aldeias
tradicionais no México”, disse Ignacio, acrescentando que a Patrulha de
Fronteira e a Alfândega dos EUA estão presentes em sua comunidade há décadas.
“Já passamos por isso antes
– isso não é algo novo”, disse ela sobre o aumento das ações de imigração
implementadas pela administração Trump. “Alguns membros continuam tendo seus
direitos violados, inclusive diariamente, e não há como responsabilizá-los por
isso.”
No entanto, Ignacio afirmou
que sabe que há pessoas que passam a vida inteira sem serem abordadas por um
oficial do ICE ou da Patrulha de Fronteira, especialmente entre os povos
indígenas.
Das 22 comunidades
reconhecidas pelo governo federal no Arizona, apenas quatro têm territórios
próximos à fronteira com o México: a Nação Tohono O’odham, a Pascua Yaqui, a
Cocopah e a Fort Yuma-Quechan.
“Nossa relação com a
fronteira é muito diferente da de outras comunidades no Arizona que agora estão
dando declarações sobre o que este governo está promovendo”, disse Ignacio.
Ela entende que as nações
localizadas longe da fronteira com o México estão enfrentando essas políticas
de imigração pela primeira vez. Portanto, segundo ela, o medo de indígenas que
vivem em áreas urbanas e nunca experimentaram isso antes é justificável, por isso
eles precisam conhecer seus direitos. “O que estão vendo agora é como as
eleições têm consequências”, disse ela.
“Não acho que nenhum de nós,
nativos, seja ingênuo em relação a como as leis estaduais e federais impactam
nossas vidas. Mas o que era normalizado para nós agora está sendo reconhecido e
divulgado publicamente pela mídia”, analisa Ignacio.
Ela afirmou que isso inclui
ameaças, assédio, operações, deportações e outras formas de violência sempre
usadas contra os Tohono O’odham – e que agora afetam outros povos.
“Ser [um povo] nativo neste
país é [algo] político”, disse Ignacio. Agora que essas políticas estão
afetando mais indígenas, ela acredita que haverá muito mais resistência – algo
que beneficiará todas as comunidades.
Ignacio disse que as novas
políticas da administração Trump estão mirando as comunidades de formas novas e
chocantes, o que chamará atenção e estimulará respostas por parte dos
indígenas.
O novo governo, por exemplo,
questionou abertamente a cidadania dos povos indígenas dos EUA ao defender um
decreto de Trump para suspender a cidadania por direito de nascimento no país,
uma garantia presente na Constituição dos EUA.
Trump assinou o decreto logo
após ter tomado posse, no dia 20 de janeiro. A medida encerraria a cidadania
por nascimento para bebês nascidos de mães e pais que não são cidadãos dos EUA
ou residentes permanentes legais no país.
Na quinta-feira, 23 de
janeiro, um juiz federal na cidade de Seattle bloqueou temporariamente o
decreto, chamando a ação de Trump de “flagrantemente inconstitucional”.
Ao defender a
constitucionalidade da medida, o Departamento de Justiça (DOJ) [equivalente ao
Ministério da Justiça no Brasil] argumentou erroneamente no tribunal que os
povos indígenas não tinham cidadania por nascimento sob a 14ª Emenda da
Constituição porque não estavam “sujeitos à jurisdição” do país. Portanto, o
decreto também deveria valer para os filhos de imigrantes não cidadãos.
“A conexão dos EUA com os
filhos de imigrantes indocumentados e visitantes temporários é mais fraca do
que sua conexão com membros de comunidades indígenas. Se o último vínculo é
insuficiente para a cidadania por nascimento, o primeiro certamente também é”,
afirmou a administração Trump.
O DOJ citou o caso Elk v. Wilkins, analisado pela Suprema
Corte dos EUA em 1884, no qual o tribunal decidiu que “como os membros das
comunidades indígenas devem ‘lealdade imediata’ às suas comunidades, eles não
estão ‘sujeitos à jurisdição’ dos Estados Unidos e não têm direito
constitucional à cidadania”.
Mas o DOJ ignorou uma
legislação promulgada pelo Congresso, o Indian
Citizenship Act de 1924, que concedeu explicitamente a
cidadania por direito de nascimento aos povos indígenas dos EUA e encerrou a
contestação da cidadania que a Suprema Corte havia mantido quatro décadas
antes.
Antes dessa lei, havia duas
principais maneiras pelas quais uma pessoa indígena poderia se tornar cidadã
dos EUA: pelo alistamento militar ou pela distribuição de terras. Segundo
o Dawes Act de 1887,
qualquer indígena que recebesse uma parcela de terra, residisse nela
voluntariamente e tivesse “adotado hábitos de vida civilizada” – isto é,
vivesse separada da comunidade – era declarado cidadão dos EUA.
Algumas nações tinham a
cidadania incluída nos direitos estabelecidos por seus tratados negociados com
o governo federal, enquanto outras trabalharam com os estados para garantir a
cidadania para seus povos. No entanto, não existia uma lei federal que
incluísse os povos indígenas como cidadãos.
Milhares de indígenas
serviram na Primeira Guerra Mundial, mas, quando retornaram para casa, não
foram considerados cidadãos do país pelo qual haviam lutado. Apenas com a
aprovação do Citizenship Act de
1919, todos os veteranos indígenas da Primeira Guerra Mundial foram finalmente
reconhecidos como cidadãos.
Levaria mais cinco anos até
que o presidente Calvin Coolidge assinasse o Indian
Citizenship Act de 1924, que concedeu cidadania por direito de
nascimento a “todos os índios [sic] não cidadãos nascidos dentro dos limites
territoriais dos Estados Unidos”.
Ignacio afirmou que a ordem
do tribunal federal bloqueando a proibição de cidadania por nascimento de Trump
dará às comunidades pelo menos de seis a oito meses para se prepararem melhor e
compreenderem como isso as impactará.
“De qualquer forma que você
analise, o impacto disso sobre as comunidades será na maneira como afeta sua
soberania”, acrescentou ela.
Fonte: Por Shondiin
Silversmith/Arizona Mirror/Agencia Pública
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