Roberto
Amaral: Esquerda e governo Lula — desafios em um mundo em convulsão
A crise política –
anunciante do que virá – exige da esquerda brasileira o engenho e a arte que
lhe têm faltado: compreender as circunstâncias e o caráter do governo Lula e,
nele e em face dele, identificar seu papel e arrecadar os elementos de que
carece para agir.
Procuramos compreender a
realidade para modificá-la, o que exige reflexão, um olhar histórico e um
simultâneo comprometimento com o futuro em construção.
Carecemos de uma esquerda
preparada para rever objetivos e corrigir paradigmas, despida de partis pris, ousada o suficiente para reavaliar certezas e
axiomas, sempre em benefício do processo revolucionário real.
Processo que, exatamente por
não abdicar das utopias fundadoras, mantém-se atento ao mundo objetivo e suas
circunstâncias – não como ditadura da história, mas como fenômeno; não como
esfinge, mas como solução.
Só assim a esquerda poderá
superar o torpor e a estéril expectativa histórica (lamentável quadro atual), e
partir para a ação; águas paradas não movem moinho.
A ordem, com suas margens
plácidas, é o refúgio do atraso, o velho que se disfarça no aparentemente novo
e vivo, o velho fascismo que ressurge abraçado às fantasias do neoliberalismo e
do individualismo – base da democracia
autocrática, oximoro léxico e político, modelo da ordem
trumpista recém-instalada, prenúncio de uma nova fase do imperialismo em busca
do controle planetário.
O realismo político, a
leitura do real, não implica conversão ao “império das circunstâncias”, mas,
por reconhecê-lo, compromete-se a conhecer e construir as condições objetivas
para sua superação.
Assim, ao sustentar o
governo cuja eleição ajudou a viabilizar, a esquerda torna-se agente do
processo social. E a esquerda é movimento.
A esquerda e o governo (que
não são sinônimos, mas estão profundamente ligados, gostemos ou não) caminham,
às vezes, dois passos atrás e um à frente – claudicantes, mas de mãos dadas,
pois seus destinos estão entrelaçados. Não se trata apenas de escolha, mas de
um imperativo do processo social.
A esquerda, liderando as
forças democráticas e progressistas consequentes, tornou-se o principal
anteparo ao avanço do neofascismo. A eleição de Lula, fruto desse processo, foi
um dique democrático, e sua consolidação é necessidade histórica. Fomos atores
desse momento e nosso papel não se esgotou com a conquista do governo,
conquista árdua, dependente de uma aliança heterodoxa, difícil de administrar,
mas indispensável nas circunstâncias, como os fatos certificam.
Nada, porém, justifica um
recuo fático e político quando a realidade cobra avanço.
A renúncia à batalha
ideológica é inaceitável, especialmente diante da crescente articulação da
extrema-direita, que resgata, como nas primeiras décadas do século passado, um
modelo de “internacional” fascista –sustentado pelo grande capital e governos
poderosos, como agora o dos EUA, no início de sua mais feroz fase imperialista.
A crise de acumulação do
capitalismo, fermento da crise globalizada de que apenas vislumbramos os
primeiros sinais, condiciona fortemente o impasse brasileiro.
Nossas responsabilidades
crescem diante do governo eleito em 2022. Se não é um governo de esquerda (nem
mesmo o dos sonhos perdidos de 1989 o seria), é um governo pelo qual somos responsáveis
perante a História.
Essa responsabilidade é
tanto maior quanto mais evidentes se tornam o caráter da crise econômica,
social e política e a natureza de frente ampla do governo, que, ainda quando
eleitoralmente necessária, demanda atuação crítica e estratégica da esquerda. A
esta cabe avançar, para poder resistir.
Nosso papel, repito, não é
de apoiadores cegos do governo de coalizão (como uma torcida organizada), nem o
de críticos contemplativos, mas de sujeito no processo – o que implica corresponsabilidade
fática e histórica.
Essa circunstância exige
tanto a defesa do governo quanto a análise crítica, apontando tropeços e
sugerindo caminhos. A esquerda deve disputar a liderança ideológica e
programática da frente e do governo, atuando na política institucional, mas
sobretudo na organização popular, seu campo preferencial de combate.
O distanciamento das massas,
evidenciado pelos números de 2024, demanda a reconstrução dos movimentos
sociais e a retomada do proselitismo posto ao relento.
É preciso atuar para além
das negociações de cúpula e de gabinete (tão ao agrado do terceiro andar do
Palácio do Planalto), terreno da direita, onde ela dita as regras do jogo de
que é sempre vencedora.
Governo e esquerda, Estado e
partidos cumprem papéis distintos, ainda que possam ser afluentes de um mesmo
projeto.
A esquerda não pode
aparentar surpresa diante da crise governamental, tampouco considerar-se alheia
à sua origem ou imune às suas consequências.
Mais uma vez, caminhamos
juntos: se o governo carece de um projeto de país (está a devê-lo), a esquerda
brasileira tampouco tem clareza sobre o que fazer ou o que pretende
politicamente, confunde-se numa sequência de táticas e não se encontra com um
rumo estratégico.
Até agora, não apresentou
nem defendeu um programa de mudança e construção do novo, e sequer dispõe de um
programa coerente pelo qual possa ser identificada pela sociedade.
Mas parte dela se percebe
moralmente superior ao que identifica como “pobre de direita”…
Até aqui, capinando nessa
carestia político-ideológica, a esquerda brasileira, talvez como reflexo da
conjuntura mundial, marcada pelo avanço da extrema-direita na Europa, nos EUA e
na América Latina (hosanas à exceção mexicana!), tem assumido o papel de
defensora da ordem, da institucionalidade, do estabelecido, permitindo que o
fascismo ocupe no imaginário popular o espaço da contestação ao establishment.
No governo, adotamos o
modelo econômico de exclusão lucrativa, e assim aderimos ao projeto de tornar o
capitalismo suportável – papel que antes coubera à socialdemocracia.
Assim, renunciamos até mesmo
às veleidades revolucionárias de cunho retórico.
Ao ignorar a luta de classes
e abandonar o proselitismo socialista, naturalizamos a desigualdade social
obscena, e, ao nos ausentarmos do enfrentamento, passamos a ser vistos como
parte do sistema neoliberal, tornando-nos mantenedores da ordem na qual nossos
governos e nossos agentes são eleitos para governar em minoria.
Com isso, cedemos espaço
para o discurso da direita contra um sistema que ela própria criou. As
consequências, como bem lembrava o Conselheiro Acácio, sempre vêm depois – e
cobram um preço altíssimo na política real.
Estranha, portanto, é nossa
surpresa quando os explorados se revelam confusos na identificação de aliados e
algozes.
O que não se pode cobrar de
um governo como o nosso, jungido às suas circunstâncias, deve ser exigido das
forças de esquerda.
Ao renunciar ao seu papel
histórico, a esquerda se fragiliza política e organicamente, o que, por sua
vez, enfraquece o governo que deveria sustentar e, em última instância,
compromete o projeto democrático em que apostamos para confrontar a escalada
reacionária mundial.
Nada obstante o “ano
eleitoral”, devemos cobrar do governo, isto sim, um programa estratégico para o
Brasil – algo que, renovando a esperança, vá além da cervejinha e da picanha do
fim de semana, ensejando que ele, governo, dialogue diretamente com a sociedade
sobre o que fará ou precisará fazer para garantir o desenvolvimento
sustentável, a criação de riqueza e a redistribuição de renda. O passo, pequeno
passo que podemos dar, no presente, olhando para uma nova sociedade.
As esquerdas haverão de
lutar, já agora, por uma nova maioria política capaz de deter a regressão
reacionária e abrir caminho para uma retomada das reformas sociais
interrompidas pelo golpe de 2016 e pela ascensão do bolsonarismo, para a qual o
impeachment de Dilma Rousseff assoalhou a estrada.
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A raiz da crise no IBGE
A campanha contra o
professor Marcio Pochmann pouco ou nada tem a ver com sua administração na
presidência do IBGE, pois começou antes mesmo de sua nomeação, em 2023, quando
a direita tentou, sem sucesso, impedir sua posse. Nada há de surpreendente na
postura da imprensa conservadora, antes e agora. Desestabilizá-lo é um projeto político
com motivações ideológicas evidentes, cujo objetivo escancarado é reforçar a
presença da direita no governo, mediante o controle de instituições
estratégicas.
Uma das principais colunas
políticas dos maiores jornais da chamada grande imprensa afirma, com
indisfarçável desprezo, que Pochmann “é um antigo quadro do PT” e “uma
flor do jardim da Unicamp, um petista-raiz“. Como se vê, um “defeito” de
essência. Eis o ponto crucial; o resto é desdobramento.
Pochmann foi acusado de
tentar “estatizar” o IPEA quando o presidiu. Agora,
ironicamente, acusam-no de privatizar o IBGE. No meio da algaravia, um registro
fático na coluna do jornalista festejado: Pochmann pediu ao Ministério
Público “que apurasse irregularidades e conflitos de interesse
atribuídos a funcionários do órgão. Seriam serviços privados de consultoria
prestados a uma instituição parceira do instituto”. A defesa do interesse
público, porém, “cheira a revide”, e assim é apenada moralmente, porque
teria sido feita em meio a críticas recebidas dos funcionários, descontentes
com a redução das horas trabalhadas em casa. Marcio Pochmann honra sua
biografia.
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Inteligência colonizada
O nazisfascismo remodelado
campeia nos EUA (com apoio eufórico dos barões das Big Techs), e os
“jornalões” brasileiros se mostram abespinhados porque a recém-lançada
plataforma de inteligência artificial DeepSeek é controlada
por Beijing. O subdesenvolvimento não se improvisa: é obra de séculos.
¨ O lobo
dentro do rebanho: alerta às esquerdas brasileiras e latino-americanas em
geral. Por Boaventura de Sousa Santos
Tem-se
escrito muito sobre o desnorte da esquerda, sobre a sua paralisia ante o avanço
da extrema-direita, sobre as suas decisões internas que só a debilitam, sobre
os tiros no pé ao destruir aliados e alianças, em suma, sobre a sua falta de
alternativa. Não é este o momento para reflexões prolongadas sobre como
chegámos aqui e como vamos sair daqui. Mas há decisões urgentes a tomar para
mostrar ao povo latino americano que as esquerdas ainda estão vivas e estão do
lado do povo martirizado pela carestia de vida e sufocado por um sistema
financeiro predador. Este momento chegou e as decisões impõem-se.
Marco
Rubio iniciou uma visita aos países laltino-americanos. Todos o conhecemos. É
um governante de ascendência cubana que fez carreira política com um único
objectivo: liquidar a esperança que Fidel Castro trouxe ao povo cubano.
Tem da América Latina a mesma ideia que presidiu à doutrina de Monroe em
1823: a América Latina é um território sob influência dos EUA e nada pode
ocorrer nele que ponha em causa os interesses dos EUA na região. Nessa altura,
o inimigo a manter longe da AL era a Europa. Dois séculos depois, o inimigo é a
China.
A
retórica oficial da visita é conhecida. Marco Rubio vem explicar aos governos latino-americanos
que a política de Trump, apesar de bombástica, é respeitadora dos tratados e da
diplomacia e que modos de acomodação serão possíveis com benefícios mútuos
desde que se respeitem certas regras que, afinal, serão as mesmas de sempre.
Mas a realidade é bem distinta. Rubio vem à América Latina com três objetivos.
Primeiro, dividir os países latino americanos, impedindo posições comuns que
fortaleçam as negociações como o Big Brother.As tarifas de importação vão ser o
grande instrumento de fragmentação da América Latina. Só a divisão dos países
permitirá a diplomacia entre desiguais que ele vem propor. O Presidente Gustavo
Petro da Colômbia afirmou paradigmaticamente que está disposto a discutir “tu a
tu” com os EUA, ou seja, entre iguais. É um desejo nobre mas isoladamente
dificilmente os países latino-americanos conseguirão tal objetivo ainda que
todos o desejem. O segundo objectivo é neutralizar a influência da China no
continente. É o objectivo mais difícil porque os EUA nada têm a oferecer que se
compare ao que a China tem “oferecido” para consolidar os seus desígnios de
império ascendente. Em terceiro lugar, Rubio vem começar o processo de
neutralizar (e eventualmente destruir) os BRICS+, sobretudo no plano
financeiro, uma vez que qualquer moeda alternativa ao dólar (em que os Bancos
centrais confiam cada vez menos para suas reservas) precipitará o colapso
económico dos EUA. Neste terceiro objectivo o Brasil é o grande alvo.
Não
são precisas grandes análises geoestratégicas para concluir que, qualquer que
sejam as diferenças entre as esquerdas, nenhum destes objectivos convém às
esquerdas porque vai significar a prazo a degradação ainda maior do nível de
vida das populações já demasiado vulnerabilizadas. A história ensina que quando
os países latino americanos ganharam capacidade de manobra ou relativa
autonomia em relação aos EUA foi quando conseguiram satisfazer melhor as
necessidades das classes sociais mais vulneráveis. A primeira década do século
XXI aí está a provar isto mesmo.
Sendo
assim, a esquerda tem neste momento a oportunidade de deixar de estar
desnorteada e encontrar o seu “norte”. O seu norte é o inimigo de sempre que
agora chega na pessoa de Marco Rubio. Será o lobo entre o rebanho, ou o lobo
com pele de cordeiro. Escolham a fábula, mas a realidade não engana. Assim
sendo, a esquerda deve deixar o seu governo receber diplomaticamente um
governante de outro país,mas deve vir para as ruas gritar bem alto que nem
Trump nem Rubio são bem-vindos no continente. Porque todos os acordos que
satisfizerem Rúbio serão danosos para o povo latino-americano. As ruas têm de
voltar a ser de esquerda e esta é uma oportunidade soberana para as
reconquistar. Este um objectivo é minimalista mas é por isso que pode ser
organizado a curto prazo, pode ser massivo e ter impacto político a curto e
médio prazo. É de recordar que em países como Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia
e Equador há eleições no próximo ano. É crucial não deixar normalizar Rubio com
um político amigo que até fala a nossa língua. Desrubializar a América Ltina
deve ser a mais importante palavra de ordem. Se a esquerda não der neste
momento um sinal forte que existe dificilmente o dará quando povo se
preparar para ir às urnas depois de um ano de rubialização.
Fonte: Viomundo/Brasil
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