O que foi a Noite
dos Cristais, que marcou o início da escalada de violências dos nazistas contra
os judeus
Revoltado por seus
pais — um casal de judeus poloneses, terem sido
expulsos da Alemanha, onde viviam desde
1911 — o jovem estudante Herschel Grynszpan, de 17 anos, resolveu se vingar.
No dia 7 de
novembro de 1938 (algumas fontes dizem que foi dia 8), ele foi até a embaixada
alemã em Paris — cidade em que havia se refugiado e vivia ilegalmente — com a
intenção de matar o embaixador do país de Adolf Hitler.
Não conseguiu
encontrá-lo, por isso matou o diplomata Ernst vom Rath, encarregado de
recebê-lo. Rath morreu no dia 9.
Foi o estopim do
que viria a ficar conhecida na história como a Kristallnacht ou a Noite dos Cristais, numa tradução
literal, ocorrida há exatos 85 anos.
“Foi uma noite de violências diversas direcionadas
contra os judeus,
entre 9 e 10 de novembro de 1938, incentivada pelos nazistas”, explica o historiador Vinícius
Liebel, professor de História Contemporânea, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Segundo ele,
naquela noite houve uma onda de depredação, saques e espancamentos de motivação
antissemita, que seguiu uma certa tradição de violências e expurgos contra
judeus, conhecidos como pogroms.
“A origem do nome
pelo qual ficou conhecida é o aspecto das ruas das grandes e médias cidades da
Alemanha no amanhecer do dia 10, totalmente salpicadas de vidro quebrado das
janelas e vitrines destruídas”, conta.
“A impressão que muitos tiveram era de que as
ruas estavam cheias de cristais.”
De acordo com
um artigo do site do
United States Holocaust Memorial Museum, os ataques ocorreram em toda a
Alemanha, a qual já incluía a Áustria, anexada por Hitler naquele ano de 1938,
e a região dos Sudetos, na antiga Tchecoeslováquia.
“Centenas de
sinagogas em todo o Reich alemão foram atacadas, vandalizadas, saqueadas e
destruídas”, diz o texto. “Muitas foram incendiadas.”
Ainda de acordo com
o artigo, os bombeiros receberam instruções para que deixassem as sinagogas serem
destruídas, mas que evitassem que as chamas se espalhassem para as construções
nas proximidades delas.
“Os vidros das
vitrines de milhares de lojas de propriedade de judeus foram destruídas e suas
mercadorias saqueadas. Os cemitérios judeus foram profanados. Muitos foram
atacados por membros das Tropas de Assalto (SA). Pelo menos 91 pessoas foram
brutalmente assassinadas naquele massacre.”
Por coincidência,
no dia da Noite dos Cristais estavam sendo comemorados 15 anos do “Putsch da
Cervejaria”, uma tentativa de golpe realizada pelos nazistas na Baviera, em
1923, uma data importante para eles. Segundo o texto do United States Holocaust
Memorial Museum, a liderança do Partido Nazista, reunida em Munique para a
comemoração do evento, decidiu usar a ocasião como pretexto para iniciar uma
noite de ataques contra os judeus.
Segundo o artigo, o
ministro da propaganda alemão Joseph Goebbels foi o principal instigador dos
massacres da Noite dos Cristais”, “sugerindo aos nazistas veteranos ali
reunidos que o ‘judaísmo mundial’ havia conspirado para que o assassinato de
Vom Rath fosse efetuado.
Ele anunciou que
"o Fuhrer decidiu que as manifestações não deveriam ser preparadas ou
organizadas pelo Partido, mas na medida em que elas irrompessem
espontaneamente, não deveriam ser impedidas’.
As palavras de
Goebbels parecem ter sido compreendidas como uma ordem para desencadear a
violência.
“O massacre foi
organizado para dar uma aparência de espontaneidade”, reforça Liebel. “Explico:
as altas instâncias do regime deram um sinal para os órgãos repressores,
polícia e partido, para que eventuais mobilizações e manifestações antissemita
não fossem coibidas. Com isso, deram carta branca para a violência.
Naturalmente, a notícia se espalhou e as ruas foram tomadas pelos nazistas.”
O também
historiador Carlos Zacarias de Sena Júnior, do Departamento de História da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz igualmente que a violência da Noite
dos Cristais foi incentivada por dirigentes do Partido Nazista, mas faz
ressalvas.
“Não se pode dizer
que ela foi ‘organizada’ no sentido que tomamos por organização”, explica. “Uma
característica da violência fascista é sua aparente espontaneidade, haja vista
que estamos falando de um partido de massas com tropas de choque, que
funcionavam por dentro do Estado ou a sua revelia.”
Para Sena Júnior,
que é coordenador do Politiza - Grupo de Pesquisa História Política, dos
Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita, da UFBA, levando em
conta que não se pode controlar massas que são permanentemente mobilizadas em
torno de uma causa, ainda mais quando são acionados dispositivos de afetos
políticos, como o ódio que moviam os partidários de Hitler, “é difícil definir
o quanto de espontaneidade houve nos acontecimentos e o quanto de organização”.
O certo é que, seja
como for, os estragos foram grandes. O historiador britânico Richard John
Evans, relata alguns números das violência da Noite dos Cristais em seu
livro Terceiro Reich no Poder.
Segundo seus dados,
algo entre 7.500 e 9.000 lojas de judeus e 520 sinagogas foram destruídas –
neste último caso, o número pode ter chegado a 1.000, no entanto.
Entre perdas
humanas, Evans escreveu que oficialmente, 91 pessoas morreram, mas que esse
número poderia checar mil. Outras 30 mil pessoas foram presas e encaminhadas
para os campos de concentração de Dachau, Buchenwald, Sachsenhausen e alguns
outros.
Foi a primeira vez
em que o regime nazista prendeu judeus em grandes números apenas por serem
judeus, sem nenhuma acusação criminal. A Noite dos Cristais marcou, assim, o
início da escalada da violência do Estado nazista contra os judeus, seu
encarceramento em campos de concentração e o consequente extermínio de milhões
deles.
Tanto para Liebel
como para Sena Júnior o assassinato de Ernst vom Rath foi apenas o estopim — a
desculpa para trazer à tona algo mais profundo.
“Não há como
desvincular a Noite dos Cristais de um processo mais longo e estruturado, que
vinha sendo implementado desde a ascensão dos nazistas ao poder, em 1933, e
mais particularmente desde 1935, com a promulgação das Leis de Nuremberg”, diz
o primeiro.
“Esse processo
visava isolar os judeus da sociedade, retirar seus direitos e sua cidadania no
Estado alemão, torná-los suscetíveis a violências diversas e, por fim,
eliminá-los do espaço territorial da Alemanha.”
Sena Júnior
acrescenta que as razões mais profundas da Noite dos Cristais podem ser
remetidas ao ódio crescente mobilizado pelas lideranças nazistas, que apontavam
os judeus como causadores dos seus sofrimentos.
“Há também questões
que devem ser remetidas aos efeitos da Primeira Guerra, como aqueles que
impuseram um pesado ônus territorial e financeiro à Alemanha, além da vergonha
pela derrota”, explica. “Mas atribuir as motivações do antissemitismo a outros
que não sejam os apoiadores das ideologias extremistas representadas pelo
nazismo passa por ser uma justificativa inconsistente.”
Liebel lembra ainda
que o discurso antissemita e a promoção do ódio racial já eram elementos
presentes em parte da sociedade europeia, mas os nazistas promoveram não só a
sua instrumentalização para fins eleitorais e políticos, mas também lograram a
sua normalização.
“Eles alçaram o
racismo a uma política de Estado, condicionaram os direitos e a cidadania à
raça e conduziram um processo de progressiva escalada da violência contra
aqueles que julgavam não pertencer à sua ‘comunidade do povo’”, explica.
Sena Júnior, por
sua vez, chama a atenção para o fato de que a ascensão da ideologia
nazifascistas em diversas partes do mundo não levaram a consensos consistentes
entre os historiadores.
“Eles têm se
dedicado a entender as razões pelas quais um país e seu povo se levantam em
ódio contra o ‘outro’”, diz.
“Dessa forma, o que
podemos dizer é que a ascensão do nazifascismo responde a uma crise da
democracia representativa e à incapacidade das organizações socialistas, que
fomentaram a revolução, de oferecer alternativas imediatas a uma massa de
desocupados, deserdados e desmobilizados no período entre guerras."
¨ Levante do Gueto de Varsóvia: como foi a maior revolta
de judeus contra nazistas
"A maioria foi
a favor da rebelião. As pessoas achavam melhor morrer com uma arma na mão do
que sem ela. Pode-se chamar este tipo de resistência de rebelião? Era uma luta
para não sermos transportados para o matadouro, uma luta contra a morte".
Foi assim que um
sobrevivente descreveu o levante do Gueto de Varsóvia, que completou 80 anos em
2023 - o maior e, simbolicamente, mais importante levante judaico. Foi a
primeira revolta armada desencadeada por civis no interior da Europa ocupada
pelos nazistas.
A resistência
judaica começou em 19 de abril de 1943, quando judeus entrincheirados dentro de
prédios e abrigos enfrentaram os nazistas e terminou quase um mês depois, em 16
de maio, com a explosão da Grande Sinagoga de Varsóvia. Os prisioneiros que
sobreviveram foram deportados para campos de concentração ou extermínio. Poucos
conseguiram fugir.
Revolta armada
A revolta armada
ocorreu no gueto de Varsóvia, uma área de quatro quilômetros quadrados num
bairro na capital polonesa onde viviam encurraladas mais de 400 mil pessoas.
Mas o que levou até ela?
No verão de 1942,
entre julho e setembro, os nazistas deportaram 300 mil judeus que estavam
aprisionados no gueto.
Quando as
informações sobre os assassinatos em massa nos centros de extermínio vazaram,
organizações judaicas clandestinas criaram uma unidade armada de autodefesa,
conhecida como Organização Judaica de Combate (ou ZOB, por sua sigla em
polonês) e liderada por um jovem na casa dos 20 anos, Mordecai Anielewicz. Para
isso, contrabandearam armas e desenvolveram um sistema de esconderijos.
Numa visita ao
gueto em janeiro de 1943, Heinrich Himmler, o comandante da SS, a tropa de
elite nazista, ordenou novas deportações e isso foi o estopim para a
resistência, que passou a enfrentar as tropas de Hitler esporadicamente.
No entanto, em 19
de abril de 1943, véspera da Páscoa judaica (Pessach), quando forças alemãs
deram início à destruição final do gueto e à deportação dos judeus
remanescentes, a revolta de fato eclodiu.
Os nazistas foram
surpreendidos por cerca de 700 combatentes jovens judeus, armados com pistolas,
granadas, a maioria caseiras, e algumas poucas armas automáticas e rifles.
Embora o primeiro
dia de confrontos tenha terminado com as forças alemãs se retirando para fora
dos muros do gueto, a repressão que se seguiu foi brutal.
Em maior número e
com maior potencial bélico, os nazistas começaram a reduzir o gueto a
escombros. Anieliwicz foi assassinado.
Ainda assim, a
resistência judaica permaneceu por semanas.
Após quase um mês
de combates, as forças de Hitler explodiram a Grande Sinagoga de Varsóvia no
dia 16 de maio de 1943, marcando o fim do levante e a destruição do gueto.
Segundo o Museu do
Holocausto dos Estados Unidos, pelo menos 7 mil judeus morreram lutando ou se
escondendo no gueto. Outros 7 mil foram capturados pelas SS e pela polícia no
fim dos combates e deportados para o centro de extermínio de Treblinka, também
na Polônia. Ali, acabaram assassinados.
Os demais, cerca de
42 mil, foram enviados para campos de trabalhos forçados e para o campo de
concentração de Lublin/Majdanek.
A maioria foi
assassinada a tiros em novembro de 1943, durante a chamada Operação Harvest
Festival (Erntefest), que durou dois dias.
Poucos conseguiram
escapar através do sistema de esgoto de Varsóvia para florestas fora da cidade.
Um deles foi Simcha
Rotem, o último combatente sobrevivente da revolta, que morreu em dezembro de
2018, aos 94 anos.
"Eu me senti
totalmente impotente (diante do poder de fogo dos nazistas)", disse ele,
em depoimento ao Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.
Mas esse sentimento
foi seguido, segundo ele, por "uma sensação extraordinária de elevação
espiritual… esse era o momento que esperávamos… para enfrentar esse alemão
todo-poderoso".
No entanto, Rotem
observou que os rebeldes não tinham ilusões sobre suas chances. "Matávamos
o maior número possível, [mas] sabíamos que nosso destino estava completamente
claro."
O levante inspirou
insurreições em outros guetos e centros de extermínio durante o Holocausto,
como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como
homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª
Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado
pelo partido nazista de Adolf Hitler.
Uma série de fotos
inéditas do gueto de Varsóvia, registradas clandestinamente por um bombeiro
polonês e encontradas em um celeiro, foram exibidas pela primeira vez na semana
passada na capital polonesa. Elas ilustram esta reportagem da BBC News Brasil.
As imagens serão
apresentadas ao público a partir de abril. Segundo uma das curadoras da
exposição "Ao nosso redor, um mar de fogo", do Museu POLIN de
história judaica de Varsóvia, Zuzanna Schnepf-Kolacz, "são as únicas fotos
que não foram tiradas por alemães (no gueto durante a insurreição) e que não
foram tiradas para fins de propaganda".
Até então, o
registro fotográfico mais conhecido do levante compreendia cerca de 50
fotografias tiradas para o chamado Relatório Stroop, preparado pelo general
Jürgen Stroop para o comandante da SS, Heinrich Himmler.
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'Preservar a memória'
Lideranças judaicas
ouvidas pela BBC News Brasil reafirmaram a importância de preservar a memória
do Holocausto, em meio a um momento de aumento de casos de antissemitismo pelo
mundo.
"É uma
oportunidade para reforçar nossa batalha contra o discurso de ódio, fortalecer
nosso compromisso com a democracia e nossa luta pela inclusão e pela
equidade", diz Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do
Brasil (Conib).
Para Marcos Knobel,
presidente da Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), "é de
fundamental importância preservarmos a memória do holocausto, principalmente
para os mais jovens, passando a mensagem de que sempre vamos lembrar o que nossos
antepassados viveram, para que nossas futuras gerações nunca mais passem por
algo assim".
As entidades
promovem eventos para celebrar nesta sexta-feira (27/1) o Dia Internacional em
Memória das Vítimas do Holocausto, por ocasião da libertação do campo de
concentração de Auschwitz pelo Exército vermelho.
No Rio de Janeiro,
uma cerimônia, organizada pela Conib, com apoio da Federação Israelita do
Estado do Rio de Janeiro (Fierj), da Associação Cultural Memorial do
Holocausto/RJ e do Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC
Rio), vai ocorre às 10h nesta sexta-feira (27/1) no recém-inaugurado Memorial
às Vítimas do Holocausto Deputado Gerson Bergher, no Mirante do Pasmado, em
Botafogo. Também será transmitida simultaneamente no YouTube.
Já Fisesp e a
Congregação Israelita Paulista (CIP) realizam no domingo (29/1), às 18h, na
Sinagoga Etz Chaim da CIP, um ato em memória às vítimas do Holocausto, que
estará posteriormente disponível no site da CIP e no canal do no canal do YouTube da
Fisesp.
Fonte: BBC News
Brasil
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