quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Susana Bótar: Batalhas anticoloniais nunca foram um mar de rosas

 “A travessia” (The Crossing, 2000) é um drama histórico estadunidense dirigido por Robert Harmon e estrelado por Jeff Daniels no papel de George Washington, líder militar da Revolução Americana, que libertou as míticas treze colônias da opressão inglesa. Iniciada em abril de 1775, a revolta teve origem na resistência ao pagamento de impostos à coroa britânica e levou à eclosão de conflitos armados entre a Grã-Bretanha e “milícias patrióticas”. Os insurgentes se declarariam independentes em 4 de julho de 1776, levando a um enfrentamento militar de sete anos, encerrado com o reconhecimento dos Estados Unidos da América, pelos ingleses, em 3 de setembro de 1783, quando é assinado o Tratado de Paris.

Apesar de relativamente antigo e de não ser nenhuma obra-prima, o filme é bem feito e vale ser assistido ou revisto, mas sob uma perspectiva crítica. Não a de uma bela e gloriosa guerra de independência, como pintou Hollywood em infinitas ocasiões, e sim pelo o que realmente foi: uma luta anticolonial dura e vil. 

A película reencena a batalha que se sucedeu após a corajosa decisão do general Washington de realizar a travessia do rio Delaware, na atual Pennsylvania, em 25 de dezembro de 1776. Naquela altura da guerra, o Exército Continental, como eram chamadas as fileiras militares rebeldes, estava na iminência da derrota total. Os ingleses preparavam o bote final contra o que havia restado das tropas insurgentes, compostas majoritariamente por soldados oriundos das classes populares – com pouco treinamento militar, mal-armados e desnutridos.

Num ato desesperado de sobrevivência, Washington decide arriscar tudo em um ataque surpresa contra as forças inimigas. Desacreditado pelos demais comandantes, o plano propunha atravessar o rio Delaware na congelante noite de 25 de dezembro, operando na surdina, ao alvorecer do dia seguinte. O objetivo era a cidade de Trenton, onde mais de mil experientes mercenários germânicos, pagos pela coroa britânica, estariam adormecidos ou até embriagados após a farta celebração do Natal: o golpe inesperado seria a única forma de diminuir a enorme desproporção de forças militares, pegando os soldados inimigos de ceroulas ou em sono profundo.

Apanhado de surpresa e sem capacidade de reação, com seus homens abatidos como lebres indefesas, o comandante germânico Johann Rall se rendeu aos rebeldes. O grande paladino da independência norte-americana conquistava, assim, um triunfo decisivo, às custas de violar preceitos éticos das guerras da época e agir como chefe de um grupo bandoleiro – ou terrorista, no linguajar atual.  

Essa história, bem retratada no filme, lembra outra ação anticolonial que adotou o modelo do ataque-surpresa: a Operação Dilúvio Al-Aqsa, planejada e executada pelo grupo palestino Hamas, em 7 de outubro de 2023, contra o Estado de Israel. Guardadas as devidas diferenças históricas, até porque o Hamas nunca contou com um exército como o da Revolução Americana, limitando-se a uma milícia armada, sua empreitada guarda várias semelhanças com a de George Washington. 

O general americano, porém, entrou para a história como um grande herói, mesmo adotando táticas moralmente controversas para libertar o povo norte-americano. Já o Hamas e seu líder militar, Yahya Sinwar, são taxados de terroristas pelos EUA e seus aliados. Uma rara exceção ocidental foi a Irlanda: talvez pela memória da dura opressão colonial inglesa, logo prestou solidariedade à causa palestina e condenou a genocida reação do regime sionista. 

A realidade é que lutas anticoloniais, especialmente por seu caráter assimétrico, nunca foram meigas e bonitas. No Vietnã, guerrilheiros surgiam do nada, a partir de túneis (tática copiada inclusive pelo Hamas). Na Argélia, foram vários os ataques a cafés e a outros lugares públicos, com pensadores da extirpe de Frantz Fanon argumentando que civis também seriam alvos legítimos por serem beneficiários da ocupação colonial. Mesmo grupos sionistas, nos anos 30 e 40, além de recorrerem à violência para expulsar palestinos de suas terras, manejavam incursões terroristas contra o colonialismo britânico, incluindo vítimas sem armas e uniformes.   

Pode-se alegar que o Hamas, ao contrário dos rebeldes norte-americanos, agiu diretamente contra cidadãos inocentes. Deve-se levar em conta, no entanto, o papel do terror na emancipação dos Estados Unidos, como parte da luta armada: o grupo Filhos da Liberdade ganhou notoriedade, entre outros feitos, por suas ações de sabotagem e violência contra funcionários administrativos e civis associados ao Império Britânico.

No caso de Israel, vale ressaltar que todo jovem, homem ou mulher, com mais de 18 anos, serve nas Forças Armadas e integram a reserva militar ativa do regime sionista, como muitos dos que estavam na rave Nova Music Festival. De todo modo, a narrativa predominante na imprensa ocidental é a da propaganda sionista: ainda pouco se sabe sobre o que de fato aconteceu em 07/10, incluindo o caso de civis assassinados pelas próprias tropas israelenses.

As experiências históricas demonstram que, para derrotar a opressão colonial, em regra militarmente muito superior, forças insurgentes são obrigadas a adotar táticas polêmicas, como emboscadas e ataques-surpresas. Foi o que fez Washington, o herói revolucionário, na Batalha de Trenton, mas também Sinwar, o vilão terrorista.

Ante a recorrência desta conduta contra a opressão colonial, por que exigir um rigor moral do Hamas que não se aplica contra os fundadores da maior democracia liberal? Por que os independentistas norte-americanos tudo podiam contra o pagamento de impostos, raiz de sua rebelião, mas dos palestinos se exige que tenham a etiqueta dos salões de chá para enfrentar limpeza étnica, tirania militar e genocídio? 

É irônico que seja um velho filme de Hollywood ajude a desnudar essa hipocrisia.

 

¨      “Democracia” na “América”. Por Lucas Arieh

Depois de viajar para os Estados Unidos da América, nos idos dos anos 1830, Alexis de Tocqueville escreveu a respeito da experiência democrática e participativa que ocorria nos condados da nascente nação estadunidense, elogiando-a como exemplo de concretização do ideário das revoluções liberais-burguesas, com uma sociedade baseada na igualdade de condições e na soberania popular (escolha direta dos representantes locais); infensa, portanto, à dominação elitista do aparelho do Estado.

Poucas décadas depois, chegava a era dos Robber Barons ou Barões Ladrões, ao final do século XIX, consolidando um capitalismo de livre-mercado em que a classe dominante se constituía com vigor notável e, correspondentemente, uma implacável força perante o conjunto da sociedade, pondo por terra o experimento igualitário reportado por Tocqueville. 

Já nesse período histórico, a relação estrutural de dependência entre Estado e grande capital, com este utilizando aquele como instrumento de favorecimento das condições de acumulação (que ganhava expressão concreta na dinâmica política pela captura da elite política por parte dos grandes capitalistas de setores como bancário e petrolífero), se evidenciava como a tendência dominante da sociedade capitalista num dos principais países do centro do capitalismo, ainda não dominante mundo afora.

Por isso, mesmo períodos progressivos da história estadunidense, como durante a Era do New Deal, um acordo social relativo (porque excludente da classe trabalhadora negra) interclassista, levado a efeito com políticas keynesianas pela liderança democrata (até então, um partido representante da grande burguesia agrária), conviveram com a necessidade estatal de concretizar, em maior ou menor medida, os interesses dos grandes capitalistas.

Aquela nascente democracia sofrera, então, um duro golpe de morte por parte da dinâmica capitalista e do ethos de acumulação predatória, para a classe dominante, e consumismo desenfreado, para as classes médias, que – estes sim – fincaram raízes no tecido social norte-americano, muito mais do que qualquer sentimento moral de solidariedade e igualdade.

Prova contundente disso foi a decisão de 2010 da Suprema Corte dos Estados Unidos que, julgando uma querela entre um comitê de campanha conservador (Citizens United) e a Comissão Federal Eleitoral dos EUA, basicamente legalizou a corrupção político-empresarial, aceitando que doações (ilimitadas) de corporações poderiam ser contraface de interesses diretos do empresariado, desde que não haja “exemplos diretos de votos sendo trocados por… gastos”, como declarou o ministro McConnel, cujo voto conduziu a maioria. 

Toma lá, dá cá.

No Brasil, a corrupção é vista com olhos moralistas. 

Seríamos, na visão dessa turma, o país do jeitinho, do “capitalismo de laços”, do amiguismo, do familismo. Um país que precisaria de um choque de modernidade capitalista para que a eficiência contratual impessoal se tornasse o vetor único das escolhas econômicas, tal como seria na “Democracia” na “América”.

Curiosamente, os mesmos apologetas do sistema político bipartidário e indireto, com ampla corrupção político-empresarial, não parecem se escandalizar com o ápice plutocrático que se anuncia para a administração Trump II.

A indicação por Trump da equipe que irá assessorá-lo, dá uma noção da desavergonhada dominação capitalista corrupta armada por Trump e Elon Musk para assumir diretamente o controle de classe do aparelho estatal estadunidense

Aqui, o total doado à campanha, com enorme preponderância de grandes “contribuintes”, gerando o total de – apenas para a campanha de Trump – cerca de U$ 1,5bi, quase a totalidade do fundo público eleitoral brasileiro.

Diante desse cenário de acentuação da tendência plutocrática do Estado capitalista estadunidense, qualquer análise, mais do que nunca, precisa se voltar para os interesses materiais das grandes empresas do Império.

Do lado sul do globo, desconstruir a visão moralista da corrupção, estudando e denunciando exemplos como esses, e situar a questão da corrupção no campo dos interesses que exsurgem da dimensão econômico-política da sociedade de classes é uma tarefa pedagógica para todo e qualquer militante político brasileiro.

Isso porque compreendê-lo é condição indispensável para construirmos a compreensão programática de que o desenvolvimento exige, na atual quadra histórica, uma orientação socialista brasileira, considerando as peculiaridades da consciência do nosso povo, mas cuja premissa central não pode ser outra que não a de que as forças econômicas devem se sujeitar – e não assujeitar – ao projeto de país encabeçado por uma vanguarda política legitimada popularmente.

 

¨      O novo governo Trump e as perspectivas para a paz na Ucrânia. Por Rose Martins

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia está perto de completar três anos, e o retorno de Donald Trump à Casa Branca tem sido considerado o mais concreto fator de mudança desde que o conflito foi deflagrado, em 24 de fevereiro de 2022.  As posições públicas do próximo presidente norte-americano deixam claro a sua contrariedade à continuidade da ajuda dos Estados Unidos ao esforço de guerra da Ucrânia, que já ultrapassou os 100 bilhões de dólares. Em campanha, Trump chegou a dizer que encerraria o conflito em 24 horas. Dificilmente isso ocorrerá, mas uma mudança na abordagem dos Estados Unidos em relação à guerra é bastante provável. 

Após a vitória de Trump, o presidente russo Vladimir Putin e o ministro de Relações Exteriores Sergei Lavrov afirmaram mais de uma vez a disposição da Rússia em negociar o fim da guerra com o novo presidente dos Estados Unidos. Mas também deixaram claro que Moscou não abrirá mão dos termos apresentados por Putin em junho de 2024, considerados pelo Kremlin como indispensáveis para alcançar um acordo de paz efetivo e duradouro. Essa posição assertiva da Rússia está respaldada pela realidade no campo de batalha e por suas condições políticas e econômicas internas. 

Ao longo do último ano, o cenário geral se tornou ainda mais favorável para a Rússia. Enquanto a Ucrânia enfrentava dificuldades em obter financiamento e recrutar mais pessoal, o que gerou constrangedoras queixas públicas de Zelensky sobre a falta de apoio para lutar contra os russos, as tropas russas avançaram de maneira constante no Donbass, no leste do país, e passaram a controlar cidades estratégicas para o suprimento do exército ucraniano. Nem mesmo a ofensiva surpresa da Ucrânia na região de Kursk, dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas como parte da Rússia, e a autorização para usar mísseis de longo alcance na profundidade do território russo foram capazes de reverter o quadro geral do campo de batalha. Em outubro passado, a Rússia fez os maiores ganhos territoriais desde o verão de 2022, enquanto as linhas de defesa da Ucrânia cediam e seus ganhos eram muito limitados. 

Além disso, os objetivos de isolamento político da Rússia no cenário internacional e a asfixia financeira e econômica através da imposição de sanções como forma de alterar o curso geopolítico do país não foram bem-sucedidos. As dificuldades encontradas pela Rússia, desde a forte desvalorização do rublo até o desabastecimento de itens do setor automobilístico, foram de alguma forma contornadas. Tampouco as restrições impostas pelos Estados Unidos e os países ocidentais foram capazes de expulsar a Rússia do mercado global de energia, embora as receitas oriundas da venda de petróleo tenham sofrido  queda, uma vez que Moscou se viu obrigada a reduzir o preço do barril para penetrar em novos mercados (China, Índia e a Turquia, principalmente) e atender às exigências das seguradoras internacionais. Mas as sanções não foram capazes de reduzir a sua capacidade de produção do óleo e seus derivados. A desconexão dos bancos russos do sistema de pagamentos internacionais Swift e o congelamento dos ativos russos depositados em bancos ocidentais geraram grande expectativa de impactos macroeconômicos negativos no curtíssimo prazo, mas o Fundo Monetário Internacional precisou rever suas projeções mais rápido do que se esperava. A economia russa não “derreteu”, como muitos analistas previram. 

Ao não comprometer de forma severa a atividade econômica da Rússia, as sanções falharam em mudar o curso de sua política externa e em promover uma mudança de regime no país. Em março de 2024, Putin foi reeleito em uma vitória acachapante, revelando considerável coesão da sociedade russa e unidade nacional em torno de seu projeto de país e a maneira como tem conduzido a guerra. O isolamento internacional também não chegou a Moscou, embora a mídia ocidental insista que ele seja uma realidade. 

O conflito, que está sendo travado em solo ucraniano como resultado de uma crise que tem suas origens na Revolução Laranja, de 2004, é também o sintoma mais grave da rivalidade entre a Rússia e os Estados Unidos, adormecida nos anos 1990 e renascida nos primeiros anos do século XXI. A guerra na Ucrânia marca uma forte deterioração das relações entre os dois países, com tensões profundamente arraigadas e desconfianças mútuas. 

E é justamente pelo fato de que o atual conflito na Ucrânia represente o ponto mais alto dessa rivalidade e envolva questões estruturais e estratégicas intimamente ligadas com a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos que Donald Trump não pode encerrá-lo em 24 horas. Entregar uma vitória fácil para a Rússia é admitir uma nova realidade na arquitetura de segurança da Europa e, como pontuou Victoria Nuland, dar um presente para Putin. 

 Alguns analistas apostam que a estratégia do novo governo norte-americano será cortar imediatamente a ajuda financeira e militar para Ucrânia e entregar a vitória para a Rússia. Além do alívio financeiro, Moscou seria atraída para a esfera de influência dos Estados Unidos, abandonando, de forma parcial ou total, a parceria estratégica com a China. 

 Essa pode ser uma boa saída se a avaliação for de que ainda é possível afastar os russos dos chineses e, no mínimo, neutralizar a Rússia diante da confrontação entre os Estados Unidos e a China e, com sorte, aproximar o Kremlin da Casa Branca. Nos dois casos, uma tarefa quase impossível e uma leitura limitada e ingênua. 

Poucos dias antes de explodir a violência no Donbass e as tropas russas invadirem a Ucrânia, Putin e Xi Jinping se encontraram e anunciaram uma “parceria estratégica sem limites” entre Rússia e China. Os dois países estão entrelaçados bilateralmente e sob um guarda-chuva institucional multilateralizado cada vez mais sofisticado e que se apresenta como alternativa à hegemonia norte-americana, suas regras e instituições internacionais. Além disso, há uma visão comum entre a China e a Rússia sobre questões de segurança internacional e o papel estrutural que os Estados Unidos desempenham sobre elas, desde aquelas que os russos e chineses estão envolvidos diretamente, como a guerra na Ucrânia e Taiwan, até os conflitos na Síria e o genocídio em Gaza. 

Conceder tão facilmente uma vitória em uma guerra que Moscou considera como “existencial”, é contribuir para alterar a posição da Rússia em um importante tabuleiro geopolítico. O que pode ter impactos na própria posição dos Estados Unidos e nas capacidades econômicas, financeiras, militares e políticas de sua hegemonia. É um jogo arriscado para a Casa Branca. 

Mas Trump não quer mais bancar a aventura dos Democratas na Ucrânia. Ainda não há nada formalizado, mas os rumores indicam que a proposta inicial dos Estados Unidos seja de um cessar-fogo e congelamento por 20 anos das tratativas que envolvem a entrada da Ucrânia na OTAN.  Sobre isso, Lavrov foi absolutamente claro: o cessar-fogo é um caminho para lugar nenhum e Moscou entende que seu objetivo é ganhar tempo para continuar inundando a Ucrânia com armas. 

A Rússia quer um tratado de paz. E a paz para a Rússia só pode ser obtida com as garantias de segurança já conhecidas: a Ucrânia não deve ser incorporada à OTAN, deve ter suas capacidades militares limitadas e assumir um status de neutralidade. 

 Diante desse xadrez, o cenário mais provável e realista é que a mudança de abordagem que muitos esperam por parte dos Estados Unidos seja a transferência para os países europeus de parte substancial dos custos da guerra. Se estes últimos estarão dispostos a se comprometerem ainda mais com as perdas da Ucrânia e terão capacidades financeiras e políticas para assumir esse fardo, é uma outra história. 

 

Fonte: Opera Mundi

 

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