quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Lauro Veiga Filho: Num País de desmemoriados, avança manobra para desestabilizar economia

O Brasil atravessou momentos dramáticos na área econômica justamente por não dispor de dólares para fazer frente a despesas e honrar compromissos externos, essenciais ao funcionamento de sua economia, nas décadas de 1980 e 1990. A sucessão de crises cambiais naquele período foi um dos fatores centrais a explicar a inflação crônica, na faixa dos dois dígitos ao mês, com impactos destrutivos sobre as famílias e para as empresas, limitando drasticamente as possibilidades de crescimento. Sempre que a economia conseguia engrenar, a falta de dólares, até mesmo para pagar as importações de petróleo, por exemplo, paralisava o País, numa situação que terminou levando à decretação da moratória da dívida externa no começo dos anos 1980 e novamente em meados da década seguinte.

Como parte da atual ofensiva articulada pela “esquadrilha austericida” e pela grande mídia corporativa, o noticiário econômico, análises e editoriais parecem ressuscitar aqueles tempos, de descontrole inflacionário, desta vez supostamente motivado pela “gastança” dos governos – ainda que sobrem dólares no País, o déficit primário (que não considera as despesas com juros) esteja em baixa e a inflação mantenha-se bem-comportada. Numa clara forçada de mão, a chamada “grande” imprensa, seus articulistas e comentaristas, alinhados a correntes mais nefastas do setor financeiro, têm insistido num cenário de derrocada, com avanço inescapável e descontrolado das taxas de inflação.

Como já anotado aqui, há uma evidente dissonância entre aquele tipo de análise e o mundo real, numa “desancoragem” proposital em relação aos dados oferecidos pela realidade. No caso da inflação, a taxa de 4,87% acumulada em 12 meses até novembro, ligeiramente acima do teto da meta (4,50%), foi recebida com tons alarmantes pelo noticiário fomentado pela “esquadrilha”, com o propósito mesmo de gerar comoção e manipular as decisões de política econômica em benefício de setores já privilegiados.

<><> Desmemoriados

Num país de memória curta, deve-se recordar que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia atingido um pico de 12,13% nos 12 meses finalizados em abril de 2022 para fechar 2023 com elevação de 4,62%. A “escalada” atual, com o índice aproximando-se de 4,87%, corresponde a um acréscimo de 0,25 pontos percentuais – o que motivou uma elevação dos juros básicos em 1,75 pontos entre setembro e dezembro, com o Banco Central (BC) já antecipando mais dois pontos percentuais de alta até março do próximo ano, o que levaria os juros para insustentáveis 14,25% ao ano, algo como 9,3% ao ano em termos reais, descontada a inflação projetada em 4,5% para 2025. O cenário na área dos preços sequer poderia ser comparado ao que se teve no País no começo de 1990, por exemplo, quando a taxa mensal (isso mesmo, mensal) havia escalado para nada menos do que 82,39% em março, acumulando incríveis 437,02% em três meses e 6.390,53% em 12 meses.

Mais claramente, o custo médio dos produtos consumidos pelas famílias havia sido multiplicado praticamente 64 vezes em apenas um ano – como se algo que tivesse custado um real em março de 1989 tivesse seu preço remarcado para R$ 64 apenas um ano mais tarde, com remarcações de preços a cada hora nas prateleiras. Atualmente, com toda certeza, não é este o cenário constatado em seu dia-a-dia pelo consumidor nos supermercados.

Um pouco mais de memória. No mês do lançamento do Plano Real, em junho de 1994, a inflação mensal aferida pelo IPCA havia batido em 47,43%, quer dizer, praticamente 10 vezes mais a taxa inflacionária acumulada em 12 meses até novembro deste ano. No segundo trimestre daquele mesmo ano, a inflação havia acumulado elevação de 202,97% e saltou ainda impressionantes 4.922,60% nos 12 meses finalizados em junho, três décadas atrás.

<><> Falsa sensação de caos

Setores do mercado, com a ajuda de uma imprensa providencialmente “colaborativa”, têm se dedicado a manipular dados da realidade para criar a sensação de caos iminente e, por isso, as manchetes e editoriais escondem a real situação das contas no setor público, que tem desmentido as projeções mais catastróficas, além de reafirmar a despesa com juros como grande fator de desequilíbrio fiscal, agravando ainda mais as distorções na economia.

Em sua projeção mais recente, liberada na semana passada, a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado e que tem se aproximado mais do pensamento econômico mais conservador, aponta que a despesa primária do governo central, incluindo gastos do Tesouro Nacional, da Previdência e do BC, deverá experimentar neste ano uma variação de 3,47% em valores não atualizados, ou seja, abaixo da taxa inflacionária esperada para este ano, próxima de 4,9%.

Descontado o gasto com juros, a despesa primária naquela área deverá saiu de alguma coisa abaixo de R$ 2,130 trilhões para R$ 2,204 trilhões, num acréscimo de R$ 74,0 bilhões em grandes números. Em comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), no entanto, deverá haver uma queda (isso mesmo, queda), com a relação saindo de 19,5% no ano passado para algo mais próximo de 18,7% neste ano. Mais claramente, a tal “gastança” tende a se resumir a um corte de 0,8 pontos sobre o PIB estimado pela IFI para este ano. O dado é a negação da “gastança”, na verdade concentrada em outra área, propositadamente “esquecida” por analistas e grande imprensa.

O déficit primário, ou seja, a diferença entre receitas e despesas, excluídas aquelas de caráter financeiro, a exemplo dos juros, deve literalmente despencar de R$ 230,5 bilhões para R$ 49,3 bilhões na previsão da IFI. Espera-se, portanto, não um “descontrole fiscal”, mas uma redução de R$ 181,2 bilhões no rombo, correspondendo a uma queda nominal de 78,61% na comparação entre os dois exercícios. Seria um dado a ser comemorado, não estivesse a imprensa completamente obliterada por sua campanha para desestabilizar a economia e sua gestão.

<><> A verdadeira “gastança”

Ao contrário do que tentam fazer crer parte do mercado e a imprensa corporativa, as despesas com saúde, educação, aposentados, pensionistas e milhões de famílias de baixa renda não representam ameaça real à estabilidade fiscal. Na verdade, o “choque” de juros iniciado pelo BC e a ser reforçado nos próximos meses, salvo mudanças inesperadas de rumo, tende a agravar o endividamento do setor público.

Os gastos com juros atingiram R$ 773,036 bilhões nos 12 meses encerrados em outubro deste ano, apenas na área do governo central, representando crescimento de 25,79% em relação aos valores acumulados no ano passado, na faixa de R$ 614,548 bilhões – uma alta de R$ 158,488 bilhões, duas vezes maior do que a elevação projetada para as despesas primárias. Como proporção do PIB, o gasto com juros deve subir de 5,66% para 6,73%. A gastança tem nome e endereço, portanto. Para a “esquadrilha austericida”, no entanto, os juros sobem porque não há controle da “gastança”, o que produz déficits e mais dívida. O raciocínio parece desconsiderar a lógica dos dados, que mostram outro cenário, com a dívida sendo puxada pela imposição à economia brasileira dos juros reais mais elevados no planeta.

Os dados divulgados na quinta-feira, 26, pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) anotam um avanço de 9,48% para o saldo da dívida pública mobiliária interna, expressa em títulos emitidos pelo próprio Tesouro, entre dezembro do ano passado e novembro deste ano. O estoque daquela dívida saiu de R$ 6,269 trilhões para R$ 6,863 trilhões, num acréscimo de R$ 594,479 bilhões. Ao longo desse período, no entanto, o Tesouro resgatou, quer dizer, comprou de volta, liquidamente, em torno de R$ 18,675 bilhões.

Teoricamente, tudo o mais constante, como gostam os economistas, o saldo da dívida deveria ter recuado em valor equivalente, já que o governo “pagou” para resgatar uma parcela dos títulos que formam a dívida mobiliária. No entanto, o aumento da dívida esteve concentrado precisamente nos juros apropriados pelo saldo da dívida mobiliária interna, que somaram R$ 613,836 bilhões nos 11 primeiros meses deste ano, o que explica todo o crescimento da dívida, com alguma sobra. O custo médio dessa dívida elevou-se de 10,50% ao ano em novembro do ano passado para 11,64% no mesmo mês deste ano, embora o custo médio da “ dívida nova” emitida pelo Tesouro tenha recuado de 11,68% para 10,86% em igual período.

<><> Front externo

Na área externa, embora tenham sofrido baixa para US$ 339,112 bilhões até o dia 23 deste mês, as reservas internacionais ainda representam praticamente 2,6 vezes mais toda a despesa do País com pagamento de juros e amortizações sobre sua dívida externa, num compromisso estimado para este ano em US$ 131,178 bilhões. Mais claramente, a escalada do dólar deveu-se muito mais a movimentos especulativos no mercado. Há sobra de dólares no Brasil.

 

¨      Não ao pacote das maldades! Por Paulo Kliass

O enredo já é bastante conhecido de todos nós. O governo apresenta um conjunto de medidas que afeta negativamente as condições de vida da grande maioria de nossa população. E o Palácio do Planalto monta uma tremenda operação abafa para conseguir sua aprovação no interior do legislativo. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, não estamos falando do mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), de Michel Temer ou de Jair Bolsonaro. A referência aqui lembra mais o período em que Antonio Palocci ocupou a Ministério da Fazenda no primeiro mandato de Lula (2003 a 2005), assim como o tempo em que Joaquim Levy atuou como chefe da pasta no segundo mandato de Dilma (2015).

Vamos combinar que fazer oposição à política econômica de FHC, Temer ou Bolsonaro era mais fácil. Era só bater no Malan, no Meirelles e no Paulo Guedes e tudo estava resolvido. Ocorre que, a partir de 2003, a coisa ficou mais complexa. Afinal, o austericídio tem início justamente a partir de medidas de inspiração integralmente ortodoxa e conservadora encaminhadas pela dupla dinâmica composta por Antonio Palocci e Henrique Meirelles. Ou seja, eram os primeiros meses da primeira experiência do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder federal. Além dos equívocos na condução da política monetária (SELIC na estratosfera) e fiscal (austeridade, superávit primário i otras cositas más), é importante lembrar que naquele momento o governo enviou também ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma da Previdência carregada de perversidades, capaz de fazer inveja aos dirigentes políticos à frente do neoliberalismo.

Esse movimento deixou as forças progressistas em uma situação de desconforto e sem capacidade de iniciativa política. Afinal, ninguém poderia imaginar que viria das mãos do governo Lula propostas tão contraditórias com tudo aquilo que o PT sempre havia defendido ao longo de sua história. É bem verdade que durante a campanha eleitoral de 2002 foi divulgada a “Carta ao Povo Brasileiro”, onde Lula deixava a entender que adotaria um comportamento um pouco menos “radical” do que se poderia imaginar. De qualquer maneira, as propostas adotadas pelo governo caíram como uma verdadeira ducha de água fria sobre todos os que acreditávamos em uma mudança de fato na política econômica. A perplexidade inicial que acometeu também a maior parte dos parlamentares do PT e da base aliada foi aos poucos se transformando em conformismo e resignação. Um grupo optou por se distanciar de fato desta orientação e se reuniu em torno da alternativa do PSOL.

<><> Lembremos de Palocci e Levy!

Mas o fato é que as medidas de austericídio terminaram por serem aceitas sem a resistência que se fazia necessária e o neoconservadorismo na política econômica em um governo de esquerda converteu-se em realidade também no Brasil. O fenômeno do assim chamado social-liberalismo que havia caracterizado a experiência desastrosa de governos “socialistas” na Europa ao longo das décadas de 1980 e 1990 pareceu ter atravessado o Atlântico e se instalou entre nós. Mais à frente, no início de seu segundo mandato, Dilma Roussef promove um impressionante estelionato eleitoral e convoca um representante do Bradesco para chefiar a área econômica de seu governo. Levy também apresenta um conjunto de medidas impopulares e baseadas em uma perspectiva de austeridade fiscal extremada. Mais uma vez o PT e a base aliada são pegos de surpresa e os representantes no Congresso Nacional também encontravam dificuldades para exercitar seu contorcionismo verbal e defender o indefensável.

Pois para quem achava que as duas experiências anteriores haviam funcionado como antídoto para tentativas futuras, eis que o Presidente Lula lança mão novamente do expediente de medidas impopulares e que vão contra a sua própria base política e eleitoral. De forma bastante polêmica, e até mesmo incompreensível, ele cede aos argumentos de Haddad e se compromete com um pacote de maldades na esfera dos cortes de despesas. O argumento refere-se à necessidade e cumprir as determinações do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), armadilha que foi apresentada a ele pelo Ministro da Fazenda ainda em 2023. Além disso, o clima catastrofista envolvendo a necessidade de passar a tesoura em rubricas de natureza social tem por base a verdadeira obsessão com que Haddad se agarra à sua meta de zerar o déficit fiscal primário.

Na apresentação que fez no horário nobre na TV no final de novembro, o professor do INSPER estabeleceu a estratégia de operar o conjunto das medidas em duas trilhas distintas. A primeira contém proposições que cortam gastos, quase todas afetando a imensa maioria dos muito pobres e miseráveis de nossa sociedade. Já a segunda trilha contempla a promessa de Lula de elevar a faixa de isenção de Imposto de Renda (IR) até R$ 5 mil. Junto com ela, foi apresentada a intenção de tributar aqueles que ganham mais de R$ 50 mil mensais. O detalhe da perversidade é que o corte de despesas já entraria em vigor a partir de 2025, ao passo que as medidas que poderiam contribuir para reduzir um pouco a enormidade da desigualdade social e econômica que nos caracteriza como sociedade ficaria para 2026 ou ainda mais tarde.

<><> Corta, cortar e cortar. Sempre no lombo dos mais pobres

O foco no corte de despesas segue a lógica do mantra da austeridade fiscal, mas se restringe exclusivamente à dimensão “primária” da abordagem a contas orçamentárias. Ou seja, as despesas de natureza financeira seguem deixadas à parte, sem teto, sem limite, sem contingenciamento. Todo esse esforço se concentra na busca quase desesperada de aproximadamente R$ 70 bilhões de saldo nas contas públicas em 2025. Assim, não há uma única menção aos R$ 870 bilhões que foram subtraídos dos recursos do Tesouro Nacional para cumprir o pagamento de juros da dívida pública ao longo dos últimos 12 meses. Além disso, Haddad segue fazendo ouvidos moucos à proposta de eliminar a isenção tributária para lucros e dividendos. Para tanto, bastaria uma simples Medida Provisória e os valores arrecadados com a alteração mais do que compensariam todas as tentativas de cortar gastos em setores de levada sensibilidade social. Ou ainda a edição de uma norma interna do Ministério da Fazenda determinando a incidência do Imposto de Exportações (tributo já existente) nas vendas externas de soja, minério de ferro e petróleo, por exemplo.

Mas não foi esse o caminho escolhido por Haddad. A opção foi por aprofundar a busca do equilíbrio fiscal primário por meio de medidas como: i) redução do direito ao mecanismo do abono salarial, que beneficia todos os trabalhadores com vencimento igual ou inferior a 2 salários mínimos; ii) redução do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que se destina aos mais miseráveis de nossa pirâmide da desigualdade; iii) redução nos índices de reajuste do salário mínimo, contrariando as reiteradas promessas de Lula ao longo dos últimos anos. Com exceção dos economistas a soldo do financismo, a grande maioria dos analistas e especialistas no assunto apontam para as consequências negativas da adoção de tais medidas. É o caso do excelente artigo de Miguel Bruno, Denise Gentil Lobato e Sérgio Lucena, que salienta:

(...) “Esses direitos sociais e trabalhistas são despesas obrigatórias que têm importante participação no orçamento [...] Se para o governo são um custo a ser cortado, para a ampla maioria da população representam a própria sobrevivência.” (...)

<><> O tempo passa e a mudança é urgente!

Um dos aspectos que mais chamam a atenção dos analistas refere-se à atitude passiva de Lula no quesito da austeridade fiscal. Desde o início de 2023 ele tem sido alertado para os riscos envolvidos a partir da adoção de tal estratégia sugerida por Haddad. Tais observações foram feitas quando da apresentação das primeiras versões do NAF e mesmo mais tarde, quando a meta de zerar o déficit primário surgiu no cardápio haddadiano. As propostas que o Congresso Nacional passa a analisar agora em dezembro, com a urgência da patrolagem articulada com as lideranças no Parlamento, contrariam na essência os interesses dos poucos setores que ainda oferecem apoio a Lula e ao governo.

Além de se caracterizarem como uma guinada à direita e em direção de um neoliberalismo mais raiz, aceitar a ideia de que os mais pobres devem ser responsabilizados, mais uma vez, pelo sacrifício da austeridade fiscal é um absurdo político e eleitoral. Esperamos que os dias de restabelecimento da cirurgia também sirvam ao Presidente para que ele se permita o exercício de uma necessária reflexão a respeito dos equívocos cometidos até o momento em termos de política econômica, em especial na política fiscal. Já estamos nos aproximando do fim da primeira metade do terceiro mandato. Mas apesar do tempo perdido, ainda há espaço para uma mudança nesta rota do conservadorismo proposto por Haddad. Caso contrário, o cenário para as eleições de 2026 pode vir a se tornar cada vez mais incerto.

 

Fonte: Jornal GGN/Brasil 247

 

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