'Churrasco agora é
luxo': Argentina registra menor consumo de carne em 20 anos
Com o impacto da
queda na renda e na diminuição da produção, a venda de carne bovina atingiu
mínimos históricos na Argentina. Embora a inflação esteja caindo, os preços de
produtos básicos ainda seguem em níveis muito elevados. E o consumo de carne
continua em queda livre na Argentina. Durante 2024, as vendas despencaram
11,1% em relação ao ano anterior, atingindo seu nível mais baixo desde 2002,
ano em que o país estava imerso em uma das piores crises socioeconômicas de sua
história.
Segundo a Câmara da
Indústria e Comércio de Carnes e Derivados (CICCRA), o consumo de carne
bovina por
habitante foi de 47,4 quilos entre janeiro e novembro de 2024: cada argentino
consumiu, em média, quase 6 quilos a menos do que no mesmo período de
2023 e muito abaixo da média histórica (72,9 kg.), resultando na pior marca em
mais de duas décadas. O fenômeno responde principalmente a fatores econômicos. "Com
o preço de um quilo de carne bovina, é possível comprar três de frango.
Obviamente, em uma situação tão frágil como a que atravessam milhares de
famílias, a decisão final é influenciada pelo bolso", explicou à Sputnik
Miguel Schiariti, presidente da CICCRA e responsável pelo estudo.
A pesquisa aponta
que não só a demanda caiu: a própria oferta também foi afetada por fatores
climáticos e o abate diminuiu 8% em relação ao ano anterior, devido à seca que
atravessou o país. "Estamos consumindo a mesma quantidade de frango que de
carne bovina, algo impensável há 30 anos. Grande parte da população do país —
jovens menores de 30 anos de setores vulneráveis — já se acostumou ao consumo
de alternativas como carne suína ou de aves, após muitos anos de declínio no
consumo de carne vermelha", destacou o empresário. No entanto, as vendas
internas contrastam com o grande aumento nas exportações: durante o
período, foram enviadas mais de 784 mil toneladas ao exterior, resultando em um
aumento significativo de 12% em relação ao ano anterior. A carne que não é
consumida pelos argentinos está nas mesas
estrangeiras,
principalmente nas famílias da China (que absorve 65% da demanda externa),
Israel e Estados Unidos.
<><> O
colapso das vendas
"Estamos
vendendo cada vez menos carne, mas isso não é novidade. O que é novo é que, por
exemplo, notamos que, no final do ano, muitas famílias optaram por não fazer um
churrasco, uma privação muito forte pela tradição cultural argentina",
disse à Sputnik Fernando Savore, presidente da Federação de Almaceneiros
da província de Buenos Aires (centro).
Segundo um estudo
do Centro de Economia Política Argentina (CEPA), a privação mencionada pelo
empresário tem uma explicação: a perda de renda, o que leva ao consumo de
produtos substitutos como carne de frango e suína. "Em 2024, pela primeira
vez na história, o consumo de carne de frango quase igualou o de carne bovina,
atingindo 44,5 kg per capita anual", indicou o relatório.
A queda tem a ver
com a política econômica de austeridade do atual
governo de Javier Milei. A O desemprego
diminuiu,
mas a taxa de informalidade tem crescido e os trabalhadores informais recebem,
em média, rendimento 46% inferior aos registrados em
empregos relativamente semelhantes, segundo Instituto Nacional de
Estatística e Censos (INDEC) do país. Além disso, quase 60% dos
trabalhadores informais não conseguem cobrir o valor da cesta básica com os
seus rendimentos, enquanto no caso dos trabalhadores registrados o valor é de
apenas 8%.
Para Savore,
"o churrasco é um luxo que cada vez menos famílias podem se dar. Embora a
inflação tenha caído, o preço da carne ainda está em níveis muito elevados:
está claro que, à medida que isso não se recupere, será muito complicado manter
os níveis de venda aos quais estávamos acostumados até pouco tempo atrás".
Embora certas tendências de consumo que alteram a dieta típica da cultura
nacional — como o veganismo ou o vegetarianismo —, a espiral descendente no
consumo de carne que a Argentina enfrenta tem uma explicação estrutural: a
queda da renda pelo sétimo ano consecutivo impacta diretamente o poder de
compra das famílias. Assim como nos últimos três anos de mandato de
Alberto Fernández (2019-2023), o salário mínimo passou a equivaler de 56 a
48 quilos de carne (uma queda de 14%), sob a presidência de Mauricio Macri
(2015-2019), esse indicador havia sofrido um declínio de 60 a 55
quilos (8%), após a recessão que culminou com uma queda
do poder aquisitivo dos
salários superior a 17%.
Segundo Schiariti,
o consumo de carne "vai continuar caindo até se estabilizar em níveis um
pouco mais baixos por uma questão de preços, a menos que a situação econômica
se inverta drasticamente e vejamos um forte aumento da renda, algo que ainda
não aconteceu." No entanto, a persistente queda no consumo de carne bovina
levanta uma dúvida sobre a sustentabilidade da emblemática tradição
gastronômica. "Argentina é o maior consumidor de carne bovina per capita,
muito à frente do resto do mundo. Além disso, somos o segundo maior consumidor
de proteína animal no mundo, só atrás dos Estados Unidos", destacou
Schiariti. "O que vimos nos últimos anos", apontou o empresário,
"é uma queda gradual que provavelmente nos levará a nos estabilizar em
sintonia com outros países, até próximos daqueles que não têm o churrasco como
sua insignia", opinou.
¨ Javier
Milei e a fábrica da pobreza na Argentina. Por Fernando Lionel Quiroga
Por
detrás do disfarce da excentricidade – um disfarce performático,
artificialmente projetado pelo novo modus operandi da extrema
direita global – esconde-se o verdadeiro projeto do autointitulado
anarcocapitalista Javier Milei. Ele aproveita-se da esperança do povo argentino,
que clama por mudança em um país que, há décadas, vem aprofundando seus índices
de pobreza extrema e indigência, segundo o Instituto Nacional de Estatística e
Censos (INDEC). Segundo o instituto, a Argentina tem apresentado
dados preocupantes em relação à pobreza na última década. Embora tal cenário
varie em razão de diferentes contextos econômicos, as crises financeiras e os
modelos econômicos explicam, em grande parte, a situação vivida pelo país.
Este é
o contexto de uma Argentina arruinada pela elevadíssima taxa de inflação e
recessão econômica que, traduzida na realidade social, significa insegurança
alimentar, aumento dos índices de desemprego, indigência (pessoas que não têm
acesso a uma cesta de alimentos capaz de suprir as necessidades diárias de
energia e proteína) e o crescimento exponencial da pobreza na capital do país.
No segundo trimestre de 2024, Buenos Aires alcançou o alarmante número de 989 mil pessoas em situação de pobreza,
representando aproximadamente um terço de sua população, de acordo com dados
do Instituto de Estatísticas e Censos da Cidade de Buenos Aires (Idecba). Esse
cenário de total insegurança – não mais como algo distante, encontrado apenas
em matérias de jornais, mas como uma realidade que invade diariamente as vidas
das pessoas – obriga milhões de argentinos a deixarem suas casas por não
conseguirem pagar as despesas básicas de sobrevivência. Dignidade é uma palavra
distante da sociedade argentina contemporânea.
É
desse ambiente de medo, fome e humilhação que a razão – solapada por fracassos
e crises acumuladas na história recente do país – perde sua legitimidade como
guia nas escolhas. Diante de um desespero brutal, o que resta é a aposta na
sorte: a esperança de que, por uma brecha da história, possa surgir uma
solução. Essa solução é frequentemente projetada na figura de um “salvador” ou
“messias”, como já vimos em nossa breve passagem da necropolítica bolsonarista.
A
extrema direita global aproveita-se dessa crise da razão para aprofundá-la,
desacreditá-la e torná-la sem efeito. Por isso, sufoca a ciência e as
universidades. A recusa ao conhecimento e o negacionismo são suas principais
armas. A ignorância como ideologia é o expediente central da extrema direita
porque, ao negar a razão, as decisões políticas voltam a ser questões de sorte
ou azar.
Em um
mundo onde o debate público é reduzido à lógica de influenciadores digitais e
memes recheados de cinismo, as interpretações críticas tornam-se ainda mais
marginalizadas. Governos como o de Javier Milei são exaustivamente chancelados
por uma mídia tradicional que, em muitos casos, reverte sua função crítica para
apoiar "grandes mentiras" – como o apoio incondicional ao genocídio
do povo palestino pelo governo israelense. Essa narrativa ajuda a consolidar o
avanço de modelos de governança apocalíptica pelo mundo.
A
Argentina de hoje não é mais apenas o país do tango ou do futebol. É o país dos
desvalidos, dos humilhados, dos famintos, desalojados e desnutridos. Esses
aspectos se agravam em um cenário dominado pela alta inflação e por políticas
de choque, como as propostas por Milei, que levam o povo a acreditar em uma
narrativa “oficial” contraditória. Enquanto o custo de vida aumenta, os preços
dos alimentos, da habitação e de outros bens essenciais disparam. A metáfora da
"motosserra" utilizada pelo presidente Javier Milei para simbolizar o
enfrentamento ao “Estado inchado” revela-se, na prática, um ataque direto às
políticas sociais do país. Se em 2024, a situação já é de pura desilusão; em
2025, a guerra imperialista liderada pelo economista fake, o projeto de
destruição dos direitos fundamentais do povo argentino seguirá em marcha.
Marcha rumo ao apocalipse argentino.
O
cenário não oferece muitas alternativas: ou o povo reage em massa, tomando as
ruas do país, ou a fome e a epidemia de dengue que se alastra serão apenas o
prenúncio de uma nação devastada pela pobreza extrema. Se ainda há um sentido
pedagógico, apesar da catástrofe enfrentada pelo povo argentino, é o de que, no
Brasil, não se pode perder a oportunidade histórica de expor ao mundo a
anatomia da extrema direita, punindo exemplarmente o principal líder – Jair
Bolsonaro - da tentativa de golpe contra a democracia.
¨
O que mudou na vida e na economia do país, um ano após
o Plano Motosserra
Há pouco mais de um ano, a Argentina foi às urnas e escolheu a mudança. Quem venceu foi o polêmico Javier
Milei, um ultraliberal de direita que prometia uma
revisão completa da economia para resolver problemas crônicos, que se arrastam
há anos. Logo nos primeiros dias, colocou em prática sua principal proposta de
campanha, o “Plano Motosserra”, com cortes de todos os tipos: de gastos, de normas burocráticas e de
tudo que Milei via como intervenção excessiva do estado no dia a dia da
economia. Foram flexibilizadas regras trabalhistas e políticas de aluguéis.
Empresas públicas foram privatizadas e funcionários públicos, demitidos.
Restrições a exportações deixaram de existir. Essas
restrições costumam ser adotadas como uma forma de preservar a oferta e evitar
o encarecimento de produtos, principalmente alimentos. O princípio dos
liberais, porém, é deixar o mercado livre para operar como quiser e, além
disso, mais exportações também impulsionam a moeda nacional contra o dólar. Também
foram derrubados antigos congelamentos de preços e subsídios a serviços
básicos, como transporte público, contas de água e luz. A ideia com tudo isso
era reduzir os gastos do governo, liberalizar a economia, gerar maior entrada
de dólares no país e aumentar a confiança no futuro da Argentina. E, claro, o principal: reduzir uma hiperinflação, que era de impressionantes 211,4% em 12 meses ao final de 2023.
A
inflação cedeu e se tornou a grande vitória de Milei em seu primeiro ano. O índice mensal passou de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,4% em novembro de 2024. Em 12 meses,
ainda são 166%. Vieram também os superávits: pela primeira vez em 13 anos, a
Argentina terá um ano em que arrecadou mais do que gastou. Depois
de registrar superávit de 357 bilhões de pesos em novembro (cerca de US$ 337,43
milhões), 11° mês consecutivo de resultado positivo, o governo espera encerrar
o ano com um superávit primário correspondente a cerca de 1,9% do PIB. Esse é
um pilar fundamental das políticas de Milei, já que o país precisa urgentemente
fazer reservas em dólar, mostrar que pode cumprir seus compromissos e é um
porto seguro para investidores. Mas esse
resultado veio a duras penas para a população mais pobre. Com desemprego e
preços em alta, a pobreza subiu e passou a atingir mais da metade da população
— consequência direta dos cortes de subsídios e fim dos controles de preços,
que encareceram transporte, energia, água e outros produtos e serviços básicos.
Quando Milei tomou posse, eram 41,7% de pobres (12,3 milhões). Ao final do primeiro semestre de governo, eram 52,9% (15,7 milhões de pessoas). Com a paralisação da economia, causada
pela motosserra, a atividade econômica desabou. No terceiro trimestre de 2024,
o último que se tem dados divulgados até aqui, o Produto Interno Bruto (PIB)
argentino teve queda de 2,1% em
relação ao mesmo período do ano anterior. Deve fechar o ano
com contração
de 3,5%, segundo as projeções do Fundo Monetário Internacional
(FMI). Mesmo assim, a popularidade de Milei continua alta. Por mais dolorosas
que sejam as medidas, os argentinos parecem considerar que esse é um caminho
necessário para uma melhora da economia e que o presidente ainda tem um tempo
para reverter o jogo. Há, porém, quem tenha pouca esperança de que a vida vá
melhorar. São esses os relatos que o g1 ouviu em Buenos Aires, capital da Argentina. São
analistas, trabalhadores, empreendedores, empresários e estudantes que vivem no
país, para entender como as mudanças na economia marcaram o primeiro ano de
Milei – e o que esperar adiante.
<><> A fórmula de Milei para salvar a economia
A motosserra foi um símbolo da campanha de Milei em
2023, e não se pode dizer que o argentino não sabia o que viria pela frente. O
pacote que leva seu nome é muito mais amplo, mas a direção é sempre a mesma:
corte de gastos.
Entre
as principais medidas, o pacote:
·
Eliminou os subsídios governamentais para serviços
básicos, como luz, água e transportes públicos;
·
Eliminou uma lei que limitava os aumentos de preços
em produtos da cesta básica nos supermercados;
·
Congelou obras públicas;
·
Demitiu milhares de funcionários públicos;
·
Diminuiu o reajuste dos salários, aposentadorias e
pensões;
·
Iniciou estudos e processos de desestatização e
privatização de empresas estatais;
·
Abriu a economia da Argentina para mais exportações
e importações.
O maior impacto veio do fim dos subsídios às contas
básicas e do controle de preços, que fizeram explodir a inflação em um primeiro
momento. Em novembro de 2023, o índice foi de 12,8%, já altíssimo. No mês
seguinte, primeiro de vigência das medidas, passou a 25,5%. Em março de
2024, a inflação argentina chegou ao pico de 287,9% na janela de 12
meses. "A eliminação dos subsídios de luz e gás
geraram um aumento muito grande em contas essenciais para famílias e
comerciantes. Isso gerou um repasse nos preços e pressão sobre toda a
inflação", explica Carlos Bermani, professor de economia da Universidade
de Buenos Aires (UBA). Ao mesmo tempo, o governo Milei congelou os reajustes do
salário mínimo e paralisou obras públicas. Os custos subiram, a economia
desacelerou e o desemprego subiu.
A diarista Erica Teijeiro sentiu o impacto do Plano
Motosserra duas vezes: o custo de vida subiu para ela
e para seus clientes. Ela acabou perdendo trabalhos porque
seus contratantes também tiveram que reduzir o orçamento familiar. Sobraram
três casas durante a semana, para sustentar seus dois filhos. Mas o grande
dilema é que até trabalhar ficou muito mais caro: ela vive na cidade de La
Matanza e precisa de três ônibus para ir e mais três para voltar de Buenos
Aires, onde estão seus clientes. Sem os subsídios ao transporte, ela gasta mais
que o dobro do que costumava. Com o que sobra do dinheiro que recebe, Erica
consegue apenas pagar os serviços básicos e alimentação. “Já não compro carne,
produtos lácteos e frutas e verduras, porque são os alimentos mais caros.
Dependo muito de doações, muitas vezes. Menos ainda compro roupas ou calçados
para mim ou para as crianças”, diz a diarista. Há casos menos dramáticos, mas
que não deixam de sentir as mudanças. A estudante e servidora pública Victoria
D’Astoli afirma que a vida se transformou, e é preciso fazer contas o tempo
todo. “Desde maio, não vou ao cinema. Agora preciso escolher o tanto que vou
colocar no Sube (cartão do transporte público) e torcer para que isso dure por
uma ou duas semanas. Se chega a durar duas semanas, é uma glória”. É por
situações como essa que Milei luta contra o tempo. O número de argentinos que
vivem abaixo da linha da pobreza chegou a 15,7 milhões no primeiro semestre deste ano,
atingindo 52,9%
da população, de acordo com o Indec. Trata-se de uma alta de 11,2
pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023.
O agente imobiliário Patricio Bernabé sentiu a
baixa de consumo dos primeiros meses de 2024, que reduziram a busca por
imóveis. Mas está otimista porque a desaceleração da inflação traz novas
perspectivas. Aos 37 anos de idade, ele comenta que os argentinos de sua faixa
etária “não sabem o que é
viver sem inflação” e conta a dificuldade que é não ter
referência de quando um produto está barato ou caro. “Você pergunta ‘quanto
custa uma bebida cola?’. Não sei! Se eu não compro todo dia, não sei, porque
vai aumentando e você perde a referência. Quando o cara vai falar o preço, você
não sabe se é caro ou se é barato. Você paga”, comenta Patricio. “Eu acho que
isso [a redução da inflação] é o melhor: você pode começar a planejar um
pouquinho mais a sua vida, se tem que fazer um investimento, umas férias, uma
viagem. Muda um pouquinho a sua cabeça”, diz.
Já Carolina De Maio, empreendedora que tinha uma
casa lotérica, fechou seu negócio durante a crise e hoje vive como motorista de
aplicativo, diz que, por mais que ainda tenha cautela com suas economias e um
pouco de medo do futuro, “há uma esperança de tempos melhores”. “Tudo mudou
muito rápido, por isso os primeiros meses foram muito difíceis. Mas eu estou
otimista”, diz a motorista. “Aos poucos, tudo está se normalizando, as pessoas
estão perdendo o medo da inflação e se atrevendo a gastar um pouco mais. Vejo
que a minha vida vai, aos poucos, prosperando mais”.
<><> A paciência com Milei
Ainda há muito o que fazer, mas o controle da
inflação é a base de sustentação de Javier Milei. Quando eleito, ele avisou que
tudo isso aconteceria – e talvez por isso sua popularidade continue alta. Segundo
a pesquisa mais recente da Opina Argentina, 53% da população aprova a gestão
de Milei. No início do governo, eram 51%. Em seu discurso de
posse, Milei disse que “não há alternativa ao ajuste e não há alternativa ao
choque. Naturalmente, isso impactará de modo negativo o nível da atividade, o
emprego, os salários reais, a quantidade de pobres e indigentes”. O presidente
garantiu, porém, que o choque econômico seria o “último mal-estar antes da
reconstrução da Argentina”. E boa parte dos argentinos acredita nisso,
principalmente com a leve retomada do consumo da população e da atividade
econômica.
Um dos setores mais afetados pela retração da
economia foi a construção,
tanto pelo freio do consumo como pela suspensão das obras públicas. O setor
teve a maior queda percentual de trabalhadores e de empresas empregadoras. Entre
novembro de 2023 e agosto de 2024, houve uma redução de 261.017 trabalhadores
registrados (-2,65%) e uma queda de 12.322 (-2,4%) no número
de empregadores entre todos os setores da economia, segundo o
Centro de Estudos de Política Econômica da Argentina (Cepa). A construção perdeu 88.856 trabalhadores
do setor privado, que representa uma queda de 18,6%. Já o número
de empregadores registrou 1.447 empresas contratantes a menos, redução de 6,6%. Juan
Bernabé, dono de uma empresa de construção, não nega que 2024 foi um ano muito
difícil. O negócio consiste em comprar terrenos para construir imóveis, então
ele precisa de investidores para tornar os projetos viáveis. Nos seis primeiros
meses de governo Milei, a disparada dos preços de materiais de construção fez o
setor sangrar, porque os fornecedores elevaram os preços rapidamente como forma
de proteção. Os projetos ficaram inviáveis e tudo foi pausado. “A mudança
repentina de regras fez com que muitos fabricantes de materiais de construção
buscassem se proteger com aumento de preços, e isso levou a uma alta
generalizada totalmente desmedida que impacta diretamente o custo da
construção. Para nós foi muito difícil enfrentar os seis primeiros meses”, diz
Bernabé.
O PIB argentino encolheu 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo. Mas apresentou
alta de 3,9% no terceiro trimestre em relação ao anterior, deixando para trás a
recessão técnica. E um dado importante da composição do PIB deste terceiro
trimestre é que o
consumo privado das famílias e empresas apresentou uma alta de 4,6%.
No dia a dia, a melhora já se percebe. A empreendedora Victoria Poggi, dona da
cafeteria Demente, em Buenos Aires, conta que o negócio voltou a ter fôlego na
segunda metade do ano. “Agora, os preços estão se estabilizando mais, e as
pessoas voltaram a sair um pouco mais e consumir”, comenta. A empreendedora
destaca também que sempre valorizou a qualidade da matéria-prima, então não
podia reduzir os custos, “porque reduzir os custos implicava em usar uma
matéria-prima pior”. Agora, com os preços mais estáveis, consegue planejar
melhor e buscar inovação. “Eu acho que se tem um pouco mais de estabilidade e
se pode projetar com os pés um pouquinho mais sobre a terra e com a esperança
de que possa ser algo melhor”. O também empreendedor Alejandro Verbitsky, dono
do bar de vinhos Trova, tem uma visão semelhante e conta que os meses de
novembro e dezembro foram muito bons para o seu negócio. “Ainda não consigo
dizer se foi melhor ou pior que (os mesmos meses do) ano passado, mas parece
ser bem bom. A verdade é essa”.
Outro ponto que alimenta o
otimismo é o comportamento do dólar no país. Por conta da crise inflacionária de anos, o peso argentino perdeu
muito de seu valor. Neste contexto, o dólar é visto como a moeda forte na
Argentina e, por isso, a moeda virou uma forma de proteção econômica para a
população. Diferentemente do que acontece no Brasil, por exemplo, é comum que os
argentinos façam suas poupanças em dólares, para evitar a desvalorização do
dinheiro e a rápida perda do poder de compra. Contratos importantes também são
acordados em dólar no país, como os de compra e venda de imóveis e empréstimos
tomados por empreendedores e empresários para seus negócios. Assim, as partes
envolvidas no acordo garantem a proteção do valor do que estão negociando em
uma moeda segura. E por essa busca dos argentinos pelo dólar para garantir
maior estabilidade em um ambiente de inflação descontrolada, o país convive há
anos com um cerco cambial que limita o acesso da população à moeda americana,
numa busca dos governos de evitar a saída de mais dinheiro do país.
A Argentina já teve cercos cambiais em outros
momentos de sua história recente, também em meio a disparadas da inflação, e
por isso a venda paralela de dólar é muito popular no país — o chamado “dólar
blue”. Por ser extraoficial e não controlado pelo governo, o preço do dólar
blue varia com a demanda e com a percepção das pessoas sobre a economia,
enquanto a cotação do dólar oficial é decidida pelo governo. Isso é negativo
para a economia porque cria distorções nos preços dos produtos e serviços,
principalmente importados, já que a taxa de câmbio acessada pela população não
é unificada e previsível e pode variar muito e muito rápido — alimentando ainda
mais a inflação. No ano passado, perto das eleições, que aconteceram em
outubro, o dólar oficial era cotado a pouco mais de 300 pesos, enquanto o dólar
blue chegava aos 1.200 pesos. Em dezembro, quando Milei assumiu, ele promoveu
uma desvalorização acentuada do peso, que levou a taxa oficial a cerca de 800
pesos, diminuindo a diferença entre as duas cotações. Também aumentou
temporariamente os impostos de importação. A ideia era aumentar a entrada de
dólares do país com as exportações de produtos argentinos para o exterior e
reduzir a saída da moeda com a compra de produtos internacionais. O ministro da
Economia do país, Luis Caputo, explicou que a ideia com essa medida era
estimular os setores produtivos e aumentar as reservas do país.
<><> Os riscos para o plano de Milei
Com a inflação sob certo controle e superávits
consecutivos, Milei tem vitórias que saíram de seu primeiro ano de mandato. A
saga, porém, tem muitos outros capítulos. Para o analista financeiro Luis de
Dominicis, o maior risco no radar é que a
Argentina não consiga atrair
investimentos o suficiente para recompor de maneira expressiva suas reservas de
dólares e reaquecer a economia do país, depois de
políticas tão severas de corte de gastos às custas do bem-estar da população. Os
primeiros sinais são bons. O índice S&P Merval, principal índice acionário
da bolsa de valores argentina, teve uma valorização de quase 180% em
2024. É um sinal importante de que investidores estrangeiros estão olhando o
país com novos olhos. Além disso, muitas empresas nacionais e internacionais
estão anunciando investimentos, principalmente em setores com potencial de
exportações, como energia e mineração.
Outros dois riscos importantes vêm dos lados
político e social. Milei sabe que, se a economia não concluir seu trajeto de
recuperação em 2025, “a paciência e confiança das pessoas poderia acabar”,
lembra Dominicis. A Argentina tem eleições para escolher novos deputados e
senadores em 2025. Se o governo perder popularidade até lá, a composição do
Congresso argentino pode atrapalhar os planos e travar a aprovação de propostas
essenciais para os planos de Milei. Para Dominicis, a queda da inflação ajuda a
proporcionar mais estabilidade e confiança para que a população volte a
consumir, mesmo que aos poucos. Já os cortes de gastos devem ser recompensados
com a confiança dos investidores, que já estão colocando dinheiro na Argentina.
Fonte: Sputnik
Brasil/g1
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