quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

As policiais de elite que criam laços de vida com vítimas de tráfico sexual que salvaram

Vários anos se passaram desde que Cristina e sua equipe – uma unidade de elite de detetives da polícia espanhola – resgataram Vitória (nome fictício) de uma rede de tráfico de mulheres.

Quando foi encontrada, Vitória estava com a vida por um fio. Ela havia passado três anos sofrendo abusos físicos e emocionais em níveis extremos.

Ela conta que mal se sentia humana e a esperança de ver novamente seus filhos foi o que a ajudou a sobreviver.

A investigação policial, agora, está encerrada. Mas seu relacionamento com Cristina e o restante da equipe permanece.

Os policiais continuaram a fazer parte importante da vida de Vitória – tanto em eventos marcantes, como sua reunião com os filhos após anos de separação, quanto em ocasiões menores, mas não menos significativas, como o bolo surpresa no seu aniversário.

Em uma tarde de outono, Vitória fica emotiva assim que vê Cristina e seus colegas chegarem com o presente no parque da vizinhança. Ela sorri, feliz por comemorar mais um ano de vida com eles.

Vitória, agora na casa dos 40 anos, conta que seu passado foi "difícil". Sua infância na Colômbia, seu país natal, foi brutal.

Seu pai desapareceu no caminho para o trabalho em uma manhã de 1986, sem deixar rastros. Sua mãe se casou novamente, com um homem que, segundo Vitória, estuprava sua irmã mais nova.

Como filha mais velha, ela estava ansiosa para conseguir um emprego e resgatar seus irmãos das dificuldades. Foi quando uma amiga a apresentou a uma mulher que ofereceu um emprego de faxineira na Espanha. Vitória acreditou que, finalmente, ela estava com sorte.

Mas o que a aguardava na Europa era outro tipo de infortúnio. Ela foi forçada imediatamente a se prostituir.

"Eu trabalhava 24 horas por dia", ela conta. "Precisava dormir maquiada e sempre [apenas] com a roupa de baixo, pronta para qualquer cliente que chegasse."

A BBC não pode fornecer detalhes do resgate de Vitória. Precisamos ocultar sua identidade, como parte das medidas de proteção às testemunhas.

Mas ela conta que nunca irá esquecer aquela manhã de domingo, quando viu as policiais pela primeira vez e correu em direção a elas.

"Olhei para elas, as abracei e comecei a chorar", relembra ela. "Elas se ofereceram para me levar para um local seguro, onde eu pudesse ser livre sem medo."

Vitória conta que estava tão traumatizada pela vigilância contínua da gangue que pedia permissão até para dormir.

Desde então, em parceria com outras organizações, Cristina e sua equipe ajudaram Vitória a conseguir apoio psicológico e informações sobre como encontrar um emprego e continuar com seus estudos.

O mais importante é que elas também trabalharam por meses para garantir a segurança dos seus filhos. A gangue que atraiu Vitória para a Espanha ameaçou machucá-los na Colômbia, se ela se atrevesse a fugir ou avisar as autoridades.

Eles eram muito organizados e era improvável que estivessem blefando.

Os traficantes enviaram mensagens de texto diretamente para as crianças no passado, e sabiam onde elas moravam e qual escola frequentavam.

·        Restaurando a esperança

Cristina e outros detetives trabalham na Unidade Central Operativa, uma divisão especializada da Guarda Civil espanhola que investiga as formas mais sérias de crime organizado.

Eles passaram meses trabalhando em conjunto com organizações femininas e advogados de direitos humanos para legalizar a situação de Vitória na Espanha e poder trazer sua família da Colômbia.

A técnica da equipe é se concentrar na vítima. As mulheres recebem apoio a longo prazo para ajudá-las a se estabelecerem em um ambiente seguro e estável depois do resgate.

Elas contam que, às vezes, ouvem brincadeiras de outras unidades porque se parecem mais com uma instituição de caridade do que com uma equipe de investigadores criminais de elite.

Cristina defende apaixonadamente seu trabalho.

"Acreditamos em um processo social e humanitário, que possa restaurar a esperança na vida das vítimas, para que elas possam realmente se recuperar e viver apaixonadamente outra vez", afirma ela.

As mulheres compõem menos de 10% dos oficiais da Guarda Civil Espanhola. Mas elas compõem 60% da equipe de Cristina. O chefe da unidade, Félix Durán, explica que o recrutamento das mulheres é "prioridade".

Ele acredita que vítimas do tráfico sexual se sentem mais confortáveis fornecendo detalhes para uma mulher policial, principalmente as meninas adolescentes.

Cerca de 50 mil vítimas de tráfico são encontradas anualmente em todo o mundo, segundo estimativas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês).

O último relatório global da instituição sobre o tráfico de pessoas, publicado no início de dezembro, afirma que houve um aumento de 25% na detecção das vítimas, em comparação com o período pré-pandemia, com "mais crianças sendo exploradas e um pico dos casos de trabalho forçado".

O relatório concluiu que as mulheres e crianças continuam a representar a maior parte das vítimas encontradas em todo o mundo. O tráfico se destina principalmente à exploração sexual.

Além da prática de exploração, a Espanha é um centro de trânsito para milhares de vítimas traficadas para a Europa.

Vitória e as outras vítimas foram confinadas em um apartamento, rodeado por outras residências. Ela tinha a sensação de estar sendo abusada à vista de todos.

Ela acredita que seus gritos de socorro, as surras e o fluxo constante de homens entrando e saindo do imóvel teriam escancarado o que estava acontecendo.

"Os vizinhos, o carteiro, todos sabiam", relembra ela. "Eles poderiam ter me matado e ninguém teria perguntado nada."

Depois dos lockdowns da pandemia, o tráfico humano para exploração sexual mergulhou ainda mais na clandestinidade, segundo a Guarda Civil Espanhola.

A instituição aponta que muitas mulheres ainda são exploradas em locais públicos, como bares ou nas ruas. Mas a maior parte das vítimas documentadas, agora, ficam confinadas em apartamentos particulares oferecidos pelos traficantes, o que dificulta sua localização pelas forças policiais.

O chefe da Seção de Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes do UNODC, Ilias Chatzis, afirma que o alto envolvimento de grupos do crime organizado significa que o tráfico de pessoas está cada vez mais interligado a outras atividades ilegais, como o tráfico de drogas e os crimes cibernéticos.

"Muitas vítimas permanecem sem serem encontradas porque, às vezes, as autoridades processam o traficante por crimes menores, mas não pelo tráfico", declarou ele à BBC. "Por isso, a vítima não é reconhecida como vítima de tráfico humano."

Vitória está agradecida por sua experiência ter sido reconhecida pela polícia. Ela quer usar seu caso para aumentar a visibilidade das vítimas que ainda esperam ser resgatadas.

"Eles me deram outra chance não só de viver, mas de me curar e abraçar novamente meus filhos."

Ela pediu à BBC para ser chamada de Vitória, devido ao significado do nome.

"Saio na rua, respiro e digo, 'meu Deus, obrigada, estou viva'", ela conta. "Eu me sinto livre e esta é a melhor sensação."

Cristina diz que admira a resiliência de Vitória.

"Ela é um exemplo de como você pode sobreviver e superar essa provação", diz. "Sempre penso: 'meu Deus, você tem tanto poder interno, tanta coragem dentro de você'."

 

¨      O grupo de WhatsApp que salvou vítimas do tráfico de mulheres

Uma mulher de 32 anos chora ao relembrar o abuso que sofreu quando, na esperança de uma vida melhor, viu-se trabalhando como empregada doméstica em Omã.

Georgina, que, como todas as mulheres traficadas entrevistadas pela BBC, optou por usar apenas seu primeiro nome, acreditava que havia sido recrutada para trabalhar como motorista em Dubai.

Dona de um pequeno negócio em Lilongwe, capital do Malauí, ela foi abordada por um agenciador enquanto trabalhava com a promessa de que ela poderia fazer mais dinheiro no Oriente Médio.

Somente quando o avião pousou em Mascate, a capital de Omã, que ela percebeu que havia sido enganada e caído nas mãos de uma família que a fazia trabalhar horas extenuantes, sete dias por semana.

"Cheguei a um ponto em que não aguentava mais", diz ela, contando que dormia apenas duas horas por noite.

Não muito depois, seu chefe começou a forçá-la a fazer sexo com ele, ameaçando atirar nela se ela dissesse alguma coisa.

"Não era só ele", diz ela. "Ele trazia amigos e eles o pagavam depois."

Ela conta que também foi forçada a fazer sexo anal. "Fui gravemente machucada. Fiquei muito perturbada."

Estima-se que haja cerca de dois milhões de trabalhadoras domésticas nos Estados árabes do Golfo.

Em uma pesquisa com 400 mulheres em Omã feita pela instituição de caridade de migrantes Do Bold, publicada pelo Relatório de Tráfico de Pessoas do Departamento de Estado dos EUA de 2023, descobriu-se que quase todas eram vítimas do tráfico de pessoas.

Quase um terço disse que foi abusada sexualmente e metade relatou ter sofrido abuso físico e discriminação.

Depois de várias semanas, Georgina ficou desesperada e, em um post no Facebook, implorou por ajuda.

A milhares de quilômetros de distância, no Estado americano de New Hampshire, uma ativista de redes sociais do Malauí, Pililani Mombe Nyoni, de 38 anos, viu a mensagem e começou a investigar.

Pililani entrou em contato e conseguiu remover a postagem do Facebook para a segurança de Georgina e compartilhou seu número do WhatsApp, que começou a circular em Omã. Ela logo percebeu que o problema era maior.

"Georgina foi a primeira vítima. Depois era uma garota, duas garotas, três garotas", disse ela à BBC.

"Foi quando eu disse: 'Vou criar um grupo (de WhatsApp) porque isso parece tráfico de pessoas'."

Mais de 50 mulheres do Malauí que atuavam como trabalhadoras domésticas em Omã entraram no grupo. E logo ele estava repleto de mensagens de áudio e vídeos, alguns difíceis de assistir, que detalhavam as condições horríveis em que elas estavam vivendo.

Muitas tiveram seus passaportes retidos assim que chegaram, impedindo-as de ir embora.

Algumas mulheres contaram sobre como se fecharam em banheiros para enviar, em segredo, mensagens de pedido de ajuda.

"Sinto que estou na prisão... nunca conseguimos escapar", disse uma. "Minha vida realmente corre perigo", disse outra.

<><> Proibidas de sair

Pililani começou a falar com instituições de caridade de tráfico de pessoas no Malauí e foi apresentada a Ekaterina Sivolobova, fundadora da Do Bold, com sede na Grécia.

A Do Bold trabalha com uma comunidade de trabalhadores migrantes nos países do Golfo, identificando vítimas de tráfico ou trabalho forçado e, em seguida, negociando a libertação com o empregador.

"Os empregadores pagam um agente para fornecer uma empregada doméstica. Um dos desafios que mais enfrentamos é que o empregador ou agente diz: 'Quero meu dinheiro de volta, aí ela pode ir para casa"', contou Ekaterina à BBC.

"As leis vigentes (em Omã) proíbem que uma empregada doméstica deixe o empregador. Ela não pode mudar de emprego e não pode deixar o país - não importa como seja tratada."

Isso é conhecido no Oriente Médio como o sistema de trabalho "kafala", que vincula os trabalhadores a seus empregadores por toda a duração do contrato.

O Comitê Nacional de Combate ao Tráfico Humano de Omã disse à BBC que a relação entre o empregador e a trabalhadora doméstica era contratual — e disputas não resolvidas podem ser encaminhadas a um tribunal em uma semana.

E acrescentou que um empregador não tem permissão para "impor qualquer forma de trabalho forçado ao trabalhador" e não poderia manter o "passaporte e documentos pessoais" de um trabalhador sem que tenha consentimento por escrito.

Depois de três meses em Mascate, e com a ajuda de Pililani e de outra pessoa em Omã, Georgina retornou ao Malauí em junho de 2021.

"Depois que ajudei Georgina, me senti tão brava, me senti tão furiosa", diz Pililani.

O caso de Georgina teve repercussão no Malauí — e a pressão começou a aumentar para o governo intervir.

A organização Centro para Democracia e Desenvolvimento Econômico do Malauí lançou uma campanha de resgate em Omã, pedindo às autoridades que trouxessem as mulheres para casa.

Blessings era uma das mulheres no grupo do WhatsApp de Pililani. A jovem de 39 anos viajou para Mascate em dezembro de 2022, deixando seus quatro filhos com a irmã, Stevelia, em Lilongwe.

Ela sofreu graves queimaduras na cozinha da casa em que trabalhava, mas seu empregador não deixou que ela voltasse para o Malauí.

"O grau das queimaduras, acredite em mim, eu vi minha irmã perdendo a própria vida", disse Stevelia à BBC.

"Lembro-me de a minha irmã dizer: 'irmã, eu vim aqui porque precisava de uma vida melhor, mas se eu morrer, por favor, cuide dos meus filhos.' Isso me machucou."

Stevelia começou a lutar para trazer a irmã para casa. No começo, a agente disse à família que Blessings estava morta, o que não era verdade. Ela finalmente retornou para casa em outubro passado, com a ajuda do governo do Malauí.

"Eu não pensava que chegaria o momento em que veria minha família novamente, meus filhos", disse Blessings à BBC pouco depois.

O governo do Malauí, que também trabalhou com a Do Bold, diz que gastou mais de US$ 160 mil para trazer 54 mulheres de volta de Omã.

Mas Aida Chiwalo, de 23 anos, voltou para casa em um caixão. Não houve autópsia ou qualquer investigação em Omã sobre sua morte.

As autoridades de Omã disseram que o Ministério do Trabalho não recebeu qualquer reclamação de trabalhadoras domésticas de nacionalidade malauiana em 2022 e somente uma em 2023, que foi resolvida.

"A maioria dessas mulheres foi libertada porque o dinheiro foi pago ao empregador, de US$ 1 mil a US$ 2 mil", diz Ekaterina.

"Então, basicamente, a liberdade delas teve que ser comprada. E é isso que me incomoda. Como você pode comprar a liberdade de outra pessoa?"

Um porta-voz do governo do Malauí disse à BBC que estava desenvolvendo regras "para garantir uma migração segura, ordenada e regular que beneficie os migrantes, suas famílias e o país em geral".

Mas Pililani, cujo grupo do WhatsApp agora é mais um fórum de apoio às que retornaram, diz que a questão das trabalhadoras domésticas traficadas para Omã destaca um problema maior no Malauí — o da pobreza e do desemprego.

"Se as meninas tivessem a oportunidade de ter empregos no Malauí, elas não seriam vítimas dessas armadilhas. Precisamos consertar a nação para que esses jovens não caiam nessas armadilhas."

Para Georgina, tem sido difícil superar o trauma. Ela se acalma diante do Lago Malauí, um dos maiores da África.

"Quando eu olho pras ondas, isso me lembra que nada na vida dura para sempre. Um dia tudo isso será história", diz ela.

"Eu encontro paz e me encorajo a voltar a ser como eu era — a velha Georgina, que era independente."

 

Fonte: BBC 100 Women/BBC África

 

 

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