sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Rita Coitinho: Mercosul/EU - um acordo neocolonial

Toda a imprensa monopolista festejou o acordo Mercosul – União Europeia. Aqui e nos países vizinhos. O mesmo texto foi bem recebido pela equipe do presidente Lula, no Brasil, e pelo presidente Milei, na Argentina. Dois presidentes que se apresentam como opostos perfeitos. Ninguém achou isso estranho?

O economista Paulo Nogueira Batista Jr., conhecido e reconhecido como um nacionalista da melhor cepa (hoje em dia é preciso fazer esse tipo de distinção), afirmou em um vídeo, publicado em suas redes sociais, que o acordo Mercosul – União Europeia é um acordo de caráter neocolonial. Em excelente artigo publicado no Opera Mundi, Paulo explica que as “melhorias” no texto do acordo não foram melhorias, mas meras reduções de danos. Ele tem razão: trata-se de um acordo ruim para o Brasil e ainda pior para os outros sócios do Mercosul. 

Quero acrescentar mais dois argumentos a esse debate. Uma das maneiras de se analisar as vantagens e desvantagens de um acordo comercial é buscar entender quais setores estavam mais interessados em sua aprovação. Do lado europeu, muito tem se falado acerca da indústria automotiva que, daqui a alguns anos, quando a Europa tiver completado a sua “transição energética” para o uso de automóveis elétricos ou de outras tecnologias, terá todas as facilidades para exportar seus carros movidos a gasolina para o Mercosul. Até lá, a Europa terá acesso facilitado aos minérios sul-americanos, tão fundamentais para a tal “transição energética”. Em termos mais simples: minerais fundamentais para a produção de baterias, essenciais aos automóveis que não queimam combustível fóssil. O destaque, nesse caso, é o lítio.

Fundamental à tal “transição energética”, o lítio é um mineral presente no Chile, na Bolívia, na Argentina e também no Brasil. Em 2023 a Argentina foi o quarto produtor mundial (o Chile é o terceiro, a Bolívia tem grande potencial mas ainda não está entre os cinco primeiros). A indústria do lítio expandiu-se muito na Argentina nos últimos anos, e promete crescer. Para atender aos interesses das empresas exploradoras, algumas reformas antipopulares já vêm sendo adotadas, ameaçando inclusive territórios indígenas. 

Destacamos dois grandes conglomerados europeus que já atuam na Argentina no negócio do lítio: na província de Salta, opera a francesa Eramet, que recentemente abriu uma área de extração. A petroleira Tecpetrol, da companhia ítalo-argentina Tecpetrol realiza prospecções na laguna de Guayatayoc – num processo que tem gerado protestos das comunidades locais, duramente reprimidos pelo Estado. 

Javier Milei, cujo símbolo é uma motosserra, recentemente colocou em marcha o “Régimen de Incentivos  a las Grandes Inversiones” (RIGI), pacote de liberalização total que retira toda a regulamentação de ordem ambiental e reduz drasticamente a retenção de impostos sobre a exportação do mineral – mantém “estáveis” as irrisórias alíquotas por 30 anos. Está, portanto, muito “afinado” com os termos do acordo com a União Europeia. 

Ainda, do lado europeu, esteve pressionando fortemente para a conclusão do acordo o Conselho Europeu da Indústria Química. Sim, os produtores de pesticidas, muitos deles proibidos na União Europeia mas amplamente utilizados no Mercosul (Brasil e Argentina são os maiores utilizadores desses agrotóxicos), estão entre os maiores interessados na facilitação do comércio com o Mercosul. Enquanto a Europa reduz o uso de agrotóxicos internamente, empresas como a Bayer e a BASF, ambas alemãs, preparam-se para ampliar ainda mais o seu mercado no sul do mundo. A produção de soja em larga escala funciona na prática como um arrendamento de terras aos conglomerados de sementes e pesticidas. As terras são brasileiras, paraguaias e argentinas, assim como a imensa quantidade de água utilizada nessas lavouras. Mas os insumos, da semente aos diversos pesticidas, são das empresas estrangeiras. A entrada de (mais) soja no continente europeu, com menos taxas, ajuda a enriquecer ainda mais os produtores, mas fundamentalmente serve para ampliar exponencialmente os lucros da indústria química. O agronegócio é um escandaloso esquema de drenagem de recursos: os governos nacionais do Mercosul financiam o agro amplamente; os “produtores” têm a tarefa de colocar no solo nacional as sementes e os químicos europeus, colher e viabilizar seu transporte para o mundo; em seguida pagam seus fornecedores de sementes e químicos, usando dinheiro público, e fazem novos contratos. Com a facilitação da entrada de produtos químicos, os governos do Mercosul renunciarão ao último (e irrisório) mecanismo de retenção de alguma renda resultante dos negócios envolvidos na agricultura de larga escala, por meio das taxas cobradas sobre a importação dos insumos. Estamos, portanto, diante de uma escandalosa recolonização.

Os entusiastas do acordo Mercosul-União Europeia festejam a adoção de algumas cláusulas que garantiriam a preservação ambiental. No entanto, o capítulo intitulado “Comércio e Desenvolvimento Sustentável” não tem mais do que algumas declarações de intenções. Não há reforço de nenhum dos compromissos presentes no Acordo de Paris, nem cláusulas obrigatórias. Além disso, o capítulo exclui do mecanismo de solução de controvérsias as medidas relativas ao desenvolvimento sustentável, que ficariam a cargo de um comitê de especialistas. Na prática, ao facilitar a exportação de minérios do Mercosul para  UÉ e a importação de pesticidas da UE para o Mercosul, o acordo não apenas não dá garantias de avanços no combate às mudanças climáticas. Ao contrário: incentiva a ampliação das áreas de desmatamento para viabilizar a exploração mineral ou o aumento das áreas de lavoura de transgênicos, o que levará ao aumento drástico dos níveis de contaminação dos solos e mananciais, além da redução do volume de água doce dos territórios sul-americanos.

É, sem sombra de dúvida, um acordo neocolonial. Que Javier Milei esteja entusiasmado não é nenhum espanto. Milei está prestes a encaminhar mais um “pacotaço” de medidas de liberalização, transformando a Argentina em um território livre à exploração neocolonial. Estranho é que governos que se apresentam como democráticos e populares, eleitos com discurso crítico ao neoliberalismo, tenham aceitado os termos desse acordo. As forças políticas preocupadas com o desenvolvimento nas nações do Mercosul, com sua autonomia, soberania e com a reversão da crise climática precisam, urgentemente, realizar uma ampla campanha popular a fim de impedir que seja ratificado pelo Congresso Nacional.

 

¨      Tratado com União Europeia empurra Brasil à condição de colônia agrícola. Por Jeferson Miola

O avanço do Consenso de Washington no Brasil no início dos anos 1990 se concretizou com a decisão das oligarquias dominantes de eleger Fernando Collor de Mello.

A Rede Globo foi decisiva. Manipulou grosseiramente a edição do último debate de televisão, ocorrido na antevéspera da eleição de 1989, para prejudicar Lula e eleger Collor.

Eleito, Collor prometeu a “modernidade neoliberal”, que consistia na abertura total do mercado nacional com desregulamentação econômica e livre circulação dos capitais.

O carro importado simbolizava a “nova era” de “modernização neoliberal”, e marcaria o fim do “tempo das carroças no Brasil”, como Collor jocosamente se referia aos modelos de veículos disponíveis no mercado interno.

Agora, mais de 30 anos depois, neste final de 2024 a mídia neoliberal e setores das elites celebram o tratado de livre-comércio entre a União Europeia/UE e o Mercosul como se o Brasil finalmente tivesse alcançado a modernidade neoliberal prometida por Collor.

A CNN Brasil chegou a festejar que a “Ferrari 296 GTB modelo 2025 ficará R$ 1,5 milhão mais barata com o acordo”.

iCom o tratado, os ricaços terão de desembolsar “só” R$ 3,39 milhões, e não mais os R$ 4,52 milhões de hoje para adquirir um Lamborghini Huracan Coupê LP 640-2.

A mídia colonizada e deslumbrada também celebrou que além de carros esportivos de luxo, os azeites, os vinhos, os queijos e os carros importados da Europa, principalmente da Alemanha, ficarão mais baratos para o consumidor brasileiro e do Mercosul.

O tratado ainda percorrerá um longo itinerário nos parlamentos nacionais e nas instituições do bloco europeu antes de ser assinado e implementado. Afortunadamente por isso existe a possibilidade real de que possa ser rejeitado, devido à oposição pelo menos da França e Itália.

O acordo é ruim e desfavorável ao Brasil e aos vizinhos da região. Agrava o processo de desindustrialização e reforça a primarização das nossas economias.

O acordo aprofunda a participação do Brasil e dos países do Mercosul no comércio com a UE como economias relegadas ao papel de fornecedoras de matérias primas agrícolas e minerais. E acentua a dependência de importações de bens industrializados das metrópoles.

A taxa média de importação do Brasil é de 15%, mas existe, no entanto, uma variação muito expressiva de alíquotas, em função das competitividades específicas de cada produto em comparação com os estrangeiros.

Os vinhos, por exemplo, têm uma taxa de 27%; os carros de luxo podem alcançar 35%; os queijos, 18%; roupas, 20%; produtos químicos, 20%; etc.

Por outro lado, a tarifa de importação da UE, inferior a 2%, mesmo depois de zerada, terá um efeito inexpressivo, e não melhorará o padrão –em variedade e volume– de exportação de produtos industrializados do Brasil e do Mercosul para o bloco europeu.

Isso tanto é verdade que o Itamaraty avalia que os produtos que poderão ampliar de modo residual a participação comercial são os de origem primária, com baixo valor agregado – carnes, açúcar, arroz, mel. Ainda assim, para isso acontecer, ainda depende do cumprimento da promessa europeia de aumento das quotas de importação, o que não está garantido.

Para as economias periféricas do capitalismo, a tarifa de importação é um instrumento essencial de proteção dos interesses nacionais e da produção industrial.

É um mecanismo de proteção das empresas e dos empregos locais dos países menos desenvolvidos diante da defasagem tecnológica, de produtividade e do poder econômico, financeiro e industrial em relação às nações capitalistas mais avançadas.

Com a eliminação das tarifas de importação, os bens e produtos produzidos nos nossos próprios países pelas indústrias aqui instaladas deixarão de ser consumidos, sendo substituídos por homólogos desembarcados da Europa. A consequência disso será a desindustrialização, com a destruição de empresas e empregos nacionais.

Além disso, com a eliminação de barreiras tarifárias e aduaneiras, as transnacionais europeias sediadas nos nossos países tenderão, inclusive, considerar conveniente fechar suas filiais.

E, ao invés de produzirem e gerarem empregos e renda aqui, as transnacionais aumentarão a produção e os empregos nas respectivas matrizes para aumentarem a exportação de produtos que penetrarão com força num mercado [o Mercosul] livre de barreiras tarifárias.

O Brasil já mantém hoje um robusto fluxo comercial com os países da União Europeia. Em 2023 o intercâmbio comercial atingiu 91,7 bilhões de dólares, sendo 46,3 bilhões em exportações, e 45,4 bilhões de importações – saldo favorável de quase um bilhão.

Com um comércio tão intenso e um mercado comunitário regional como o Mercosul, que precisa ser protegido e expandido, é inexplicável a assinatura deste tratado de livre-comércio. Os impactos dele são tremendamente negativos para a estrutura produtiva brasileira e dos vizinhos sul-americanos.

O tratado com a UE condena o Brasil à primarização econômica, e aprisiona nosso país a um passado subdesenvolvido, agrícola e colonial.

E abre a porteira para que outras potências industriais –como China e EUA– reivindiquem as mesmas condições concedidas aos europeus, o que inviabilizará o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico brasileiro.

 

¨      Relações externas que amarram economias da América Latina impedem crescimento sustentado

Cenário internacional, dependência de demanda externa, aumento do consumo privado como motor principal. Esses são os fatores que contribuem para a previsão de baixo crescimento das economias da América Latina e do Caribe para 2024 e 2025.

O relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) para 2024 e 2025 destaca que a América Latina e o Caribe continuarão em uma trajetória de baixo crescimento econômico, com projeções de 2,2% em 2024 e 2,4% em 2025, números semelhantes aos de 2023 (2,3%).

A previsão de crescimento da economia latino-americana para os próximos anos, apresentada pela CEPAL, foi recebida com ceticismo por especialistas e analistas que a consideram um reflexo das dificuldades estruturais de uma região marcada pela dependência de fatores externos.

<><> Participação reduzida

Essa tendência reflete a participação reduzida da região no crescimento da economia global, segundo especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

O crescimento econômico mundial projetado para 2025 é de 3,2%, impulsionado principalmente pelas economias emergentes da Ásia, com expansão estimada de 5%. Contudo, a desaceleração dos Estados Unidos e da China, principais parceiros comerciais da região, tende a reduzir a demanda externa, prejudicando as exportações latino-americanas.

"Esse contexto indica que não haverá booms comerciais similares ao efeito China da primeira década dos anos 2000. Além disso, destacaria um contexto de tendências protecionistas, especialmente nos EUA, e de menor integração comercial. Diante disso, a América Latina e o Caribe precisarão buscar estratégias para fortalecer suas economias internas e diversificar suas exportações", explicou Diana Chaib, economista e pesquisadora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG).

Segundo Fágner João Maia Medeiros, também pesquisador do mesmo centro que Chaib, a dependência de demanda externa impacta diretamente o resultado divulgado pela CEPAL.

Ele complementa dizendo que "o relatório da CEPAL revela que, após a forte contração econômica causada pela crise da pandemia de COVID-19, a América Latina conseguiu recuperar os níveis de PIB [produto interno bruto] do quarto trimestre de 2021, que estavam próximos aos níveis anteriores à crise. Contudo, ao longo do período de 2015 a 2024, o PIB per capita da região apresentou uma tendência de queda, com a recuperação deste indicador só ocorrendo no quarto trimestre de 2024, após 36 trimestres".

Chaib pontua que "esse fenômeno indica a dificuldade estrutural das economias latino-americanas em manter um crescimento sustentado e de retomar os níveis de renda anteriores à crise. Em 2024, o PIB per capita da América Latina é o mesmo registrado no final de 2015, refletindo uma recuperação lenta e limitada, com desafios significativos para estimular o crescimento econômico na região".

Dependência da exportação de commodities

A doutoranda em relações internacionais e secretária executiva da Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes (Oclae), Amanda Harumy, destacou que o crescimento projetado para a América Latina é, na verdade, "baixo e não traz elementos de surpresa, mas sim reforça aspectos estruturais da economia da região que dificultam o crescimento e a redução da desigualdade social".

Segundo a internacionalista, a dependência da exportação de commodities continua a ser um dos principais entraves para uma evolução econômica sólida e resiliente.

"A dependência do PIB de setores vulneráveis a oscilações internacionais é um problema grave", afirmou, referindo-se à volatilidade dos preços das commodities, que afeta diretamente as economias locais.

Ela enfatiza a "dependência histórica e estrutural" da América Latina de organismos financeiros internacionais e da dívida externa. "Essas relações, que amarram as economias da região, são parte de um ciclo vicioso que torna a superação dessas dificuldades um desafio contínuo", pontuou.

A questão da dívida externa, somada à dependência de bancos internacionais, perpetua uma fragilidade econômica que precisa ser revista, de acordo com a especialista.

<><> Novas lideranças

O impacto das novas lideranças da América Latina, segundo analistas ouvidos por esta agência, será decisivo para o futuro econômico da região.

"A Argentina, por exemplo, ao apostar [outra vez] na liberalização comercial e financeira, poderá se tornar ainda mais dependente da demanda externa, que não apresenta sinais de ser relevante no curto prazo para impulsionar o crescimento. O Brasil, por sua vez, aposta no plano 'Nova Indústria Brasil', que busca estimular a industrialização, promover a inovação e fortalecer o setor produtivo, mas seus resultados dependerão de um ambiente macroeconômico mais estável e de ações consistentes de implementação", analisou Medeiros.

"Além disso, será crucial que essas lideranças promovam esforços coordenados para uma melhor inserção internacional, atraindo volumosos projetos de investimento da China e outros parceiros estratégicos, bem como avançando na modernização e ampliação da infraestrutura regional. Apesar dos desafios estruturais e das incertezas globais, uma reorientação estratégica, apoiada em políticas econômicas efetivas e transformações estruturais profundas, é essencial para romper com as limitações históricas e garantir um crescimento sustentável para a região", complementou a economista Diana Chaib.

 

Fonte: Opera Mundi/Viomundo/Sputnik Brasil

 

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