Por que a ideia de
que o AI-5 foi uma reação à esquerda é um mito
A Ditadura Militar, instalada em
1964, tinha muitos mecanismos de repressão e controle da sociedade, como o Serviço Nacional de
Informações (SNI).
Mas foi em 1968,
quatro anos após o golpe, que um Ato Institucional decretado pelo general e
então presidente Artur da Costa e Silva possibilitou que o regime
intensificasse ainda mais a repressão.
O Ato Institucional
Número Cinco, conhecido como AI-5, entrou em vigor no dia 13 de dezembro de
1968. O ato ficou conhecido como "golpe dentro do golpe", porque
endureceu o regime e foi uma forma de os militares consolidarem
seu poder.
Ele autorizou uma
série de medidas de exceção, permitindo o fechamento do Congresso, a cassação de
mandatos parlamentares, intervenções do governo federal nos Estados, prisões
até então consideradas ilegais e suspensão dos direitos políticos dos cidadãos
sem necessidade de justificativa.
Na época, o governo
militar justificou as medidas dizendo que elas eram necessárias para conter
"atos subversivos" de "setores que queriam derrubar o
regime", que os militares chamavam de revolução, e "manter a ordem e
a segurança".
"Se torna
imperiosa a adoção de medidas que impeçam [que] sejam frustrados os ideais
superiores da Revolução (...) comprometidos por processos subversivos e de
guerra revolucionária", diz o documento original do AI-5, hoje guardado no
Arquivo Nacional em Brasília.
A versão oficial da
ditadura, portanto, foi de que o AI-5 era uma reação à esquerda, um movimento
para conter o avanço do comunismo no país em
meio à Guerra Fria.
Mas será que a
justificativa oficial dos militares era o verdadeiro motivo por trás do
endurecimento do regime?
·
A
sociedade civil
Os principais
historiadores que estudam o assunto dizem que a ideia de que o AI-5 foi uma
resposta à esquerda é um mito, e que outros motivos estavam por trás da
decisão.
Os que os
documentos e os depoimentos de envolvidos nos mostram, dizem os estudiosos, é
que o ato autoritário de 1968 foi uma forma de a ditadura militar controlar não
só a oposição de esquerda ou os comunistas (que no Brasil não tinham números ou
estrutura suficiente para ser uma ameaça real ao regime).
A principal ameaça
eram os setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que,
quatro anos depois, estavam ficando descontentes com o governo - como a Igreja
Católica, a imprensa, o Poder Judiciário e líderes políticos.
Ou seja, o AI-5 foi
uma forma de "enquadrar os dissidentes dentro das próprias hostes da
ditadura", nas palavras do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor
da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos principais estudiosos
do tema no Brasil.
Em um artigo
científico sobre o assunto publicado no ano passado na Revista Brasileira de
História, Motta explica que em 1968 a ditadura possuía os meios suficientes
para reprimir a resistência colocada pela esquerda e pelos comunistas.
Em um documento
diplomático americano do período há relatos de militares que diziam justamente
isso, como o almirante Levy Reis e o general Golbery do Couto e Silva. Em
conversa com os diplomatas dos EUA, Golbery dava sua opinião de que o Estado já
tinha instrumentos suficientes para lidar com os "subversivos", se
referindo à esquerda e aos comunistas.
O que o governo
militar não tinha, escreve Motta, "eram meios suficientes para enquadrar e
disciplinar segmentos rebeldes da própria elite situados em lugares
estratégicos, como o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a imprensa".
Em entrevista à BBC
News Brasil, o pesquisador explica que, quatro anos após o golpe civil-militar
que instaurou a ditadura no país, os militares estavam ficando isolados no
poder e perdendo boa parte do amplo apoio que tiveram em 1964.
"Muitos grupos
e líderes que apoiaram o golpe foram se afastando da ditadura com o tempo (igreja,
imprensa, lideranças políticas, intelectuais)", diz Motta à BBC News
Brasil.
Mas por que
apoiadores do golpe de 1964 estavam ficando insatisfeitos com o governo
militar?
·
Insatisfação
crescente
Historiadores
chamam o golpe de 1964 de "civil-militar" porque ele aconteceu com
apoio justamente desses setores. Mas, em 1967, as coisas começaram a mudar.
A ditadura
enfrentava oposição desde o início. Ela vinha de setores como o movimento
estudantil, alguns parlamentares, as greves operárias e, partir de 1967, o
início da luta armada promovida pela esquerda radical - grupos que eram muito
diferentes entre si.
Essa oposição
esteva mais atuante a partir de 1967 e em 1968 e alguns acontecimentos marcaram
a resistência. Em março de 1968, durante uma manifestação estudantil, a polícia
militar invadiu o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, onde alguns
estudantes jantavam, e o jovem estudante Edson Luís foi morto por policiais
miltiares.
Seu assassinato
inflamou a revolta estudantil e ele se tornou um símbolo da resistência.
Em junho, houve a
famosa Passeata dos Cem Mil, organizada pelo movimento estudantil no Rio de
Janeiro; e em outubro aconteceu a chamada Batalha da Maria Antônia, em que
estudantes da USP (Universidade de São Paulo) enfrentaram apoiadores do regime
na Universidade Presbiteriana Mackenzie. A batalha levou à morte do estudante
José Carlos Guimarães, atingido por um tiro vindo do lado dos apoiadores da
ditadura.
O ano de 1968 foi
marcado também por greves operárias, como a grande greve de Osasco, em julho.
O clima tenso e a
resposta autoritária do governo foi deixando alguns setores que haviam apoiado
o golpe de 1964 insatisfeitos com o regime, explica o historiador Daniel Aarão
Reis, professor e pesquisador de História Contemporânea na UFF (Universidade
Federal Fluminense).
"Muita gente
tinha apoiado o golpe, imaginando que seria uma coisa de curto prazo", diz
Reis. "Mas aí os partidos políticos foram dissolvidos, a eleição para
presidente foi indireta, a grande imprensa, que havia apoiado o golpe, começou
a ser censurada... Você tinha um quadro de insatisfação muito ampliado."
Em 1965, o Ato
Institucional número 2 estabeleceu a eleição indireta para presidente, o que
foi confirmado pela Constituição de 1967.
"Havia também
um descontentamento com a política econômica, que atingia classes
trabalhadoras, que tinha perdido direitos importantes, e o arrocho salarial,
com os salários sendo reajustados abaixo da inflação."
E foi assim que a
contestação ao governo, que antes vinha primariamente de setores mais à
esquerda, como os movimentos estudantil e operário, começou a se ampliar.
Juízes davam decisões desfavoráveis ao regime, a imprensa publicava notícias
desabonadoras e parlamentares se tornavam insubordinados.
"Importantes
líderes que tinham apoiado o golpe começaram a criticar. Carlos Lacerda foi um
exemplo, mas podemos citar lideranças da Arena: Djalma Marinho, Daniel Krieger.
Ulisses Guimarães, que foi líder civil do golpe, já havia ido para o MDB",
conta Reis.
Entre os políticos,
diz ele, havia o temor de que os militares começassem a governar sozinhos sem o
seu apoio – desde figuras da Arena como José Sarney e Luiz Vianna Filho até
vereadores do interior.
Entre membros da
igreja, do Judiciário, da imprensa e entre certas lideranças políticas, a insatisfação
era a mesma: "O recrudescimento autoritário e a sensação de que o governo
Costa e Silva era incompetente politicamente", diz Motta.
Artigos críticos ao
autoritarismo de figuras como o ministro da Justiça Gama e Silva apareceram na
imprensa, e também se ampliou o descontentamento com a excessiva violência
policial.
"Quando Costa
e Silva começou a governar, no início de 1967, prometendo diálogo e
descompressão política, ele gerou expectativas positivas entre tais grupos. Mas
quando os primeiros protestos de oposição apareceram ele respondeu com muita
violência. A condução política do governo foi considerada incapaz de lidar com
a situação", explica o pesquisador.
"E o governo
foi muito criticado por não realizar a prometida reforma universitária, o que
na visão de alguns poderia acalmar os estudantes, ou ter evitado que eles se
rebelassem."
Ele explica que
esse novo desafio vinha de figuras que aceitaram o golpe contra João Goulart e
contra as instituições democráticas, mas ao mesmo tempo não desejavam uma
ditadura sem limites. "Era uma espécie de liberalismo autoritário, a favor
da repressão à esquerda, mas que desejava garantias para a opinião política
moderada", diz o historiador.
Outro aliado em
1964 que não via com simpatia o endurecimento do regime era o governo dos EUA.
Motta cita um documento interno do Departamento de Estado americano em que o
secretário Dean Rusk se mostra preocupado. Na opinião dele, o AI-5 era uma
resposta exagerada dos militares – e a opinião da maioria dos diplomatas americanos
também ia nesse sentido.
·
Mas
e os grupos armados de esquerda?
O crescimento do
autoritarismo levou também a uma radicalização de setores da esquerda, e grupos
de luta armada intensificaram sua atuação entre 1967 e 1968.
Eles eram poucos,
pequenos, não tinham apoio popular e não apresentavam uma ameaça real ao
regime, explica Daniel Aarão Reis.
Além disso, a
chance de setores de elite, da esquerda, dos grupos armados, ou seja, da
oposição em geral, se unir para derrubar o regime era quase inexistente, pois
eram muito distintos. "Eram projetos políticos muito diferentes entre
si", explica Reis.
Não havia nem
unidade entre os grupos de esquerda comunistas e o movimento estudantil.
"O movimento estudantil era um movimento democrático. Lutava por mais verba,
pela democracia, não era um movimento para derrubar o capitalismo", diz
Reis.
Os documentos do
período mostram que os grupos da elite, como a Igreja Católica, a imprensa e as
lideranças políticas que estavam descontentes não queriam necessariamente a queda
do regime, que afinal havia sido instaurado em 1964 com seu apoio.
"[Eles
queriam] apenas mudança de rumos, não questionavam o regime de 1964 em
si", diz Motta.
"Mas o fato de
que a oposição à ditadura tenha sido engrossada por figuras mais ao centro,
deixando de ser povoada apenas pela esquerda, significava um problema para o
governo."
A atuação da
esquerda armada gerava um temor real nos militares, diz Motta, "mas seu
poder real foi superdimensionado para incrementar a sensação de perigo".
Tanto que parte das
ações armadas foi praticada por grupos clandestinos de direita, que tinham o
objetivo de colocar a culpa nos comunistas. Documentos que ficaram guardados no
Superior Tribunal Militar durante 50 anos e foram revelados no ano passado
mostram exemplos da atuação clandestina de direita antes do AI-5.
Entre abril e
agosto de 1968, um grupo formado por 14 policiais seguidores de Aladino Félix,
ligado ao general da reserva Paulo Trajano da Silva, roubou armas da própria
Força Pública (percursora da Polícia Militar), fez pelo menos um assalto a
banco e executou 14 atentados a bomba, incluindo o atentado a bomba na Bovespa
em maio de 1968, em São Paulo.
Essa tática de
realizar atentados e culpar os comunistas foi usada novamente anos depois,
quando a ditadura já estava chegando ao fim, por setores do Exército
insatisfeitos com a abertura democrática - o caso do atentado do Riocentro, em
que uma bomba explodiu no colo de um oficial que iria realizar o ataque, é um
dos episódios mais famosos da ditadura.
·
O
caso Moreira Alves e a reunião sobre o AI-5
Alguns momentos
marcaram o incômodo dos militares com a postura desses setores e, segundo os
historiadores, mostram que o desejo de controlar essa elite insubordinada foi
um dos motivos centrais para o AI-5.
"Os momentos
mais importantes nesse aspecto foram os protestos estudantis, a partir de março
de 1968, que os militares entenderam terem sido estimulados por professores e
pela imprensa, e não terem sido devidamente punidos pelos dirigentes
universitários e pelo Poder Judiciário", afirma Motta.
Documentos
diplomáticos americanos mostram conversas dos diplomatas com autoridades
brasileiras em que os militares deixavam essa visões claras.
"Os militares
entendiam que a imprensa publicava visões simpáticas demais à oposição e
críticas excessivas ao governo, o que favoreceria a insubordinação", diz à
BBC News Brasil o pesquisador Rodrigo Motta, que analisou extensamente os
documentos.
"Outro
ponto-chave era a oposição no Congresso, que fazia discursos agressivos e era
reverberada pela imprensa."
O caso mais célebre
- que acabou sendo a gota d'água para a ditadura militar - foi o discurso do
deputado Moreira Alves, que chamou o Exército de antro de torturadores e
convocou as mulheres a pararem de dançar com oficiais em bailes.
Os militares
pediram ao Congresso que o deputado fosse processado, já que a Constituição de
1967 determinava que parlamentares só poderiam ser cassados pelo Legislativo.
Mesmo com as Casas
dominadas pelo partido da ditadura, a Arena, e com a permissão para apenas um
partido de oposição, o MDB, o governo teve o pedido negado - com dezenas de
votos de deputados do Arena indo contra o Executivo.
"Era um ato de
desobediência do Congresso, que na visão da ditadura servia apenas para
legitimá-la, mostrando disposição de parte dos parlamentares a resistirem a
atos mais autoritários", conta Motta.
"Do ponto de
vista dos militares, o gesto teria que ser punido, sob pena da oposição no
Congresso crescer e vir a tornar-se foco de instabilidade grave para o regime."
Quando a situação
chegou a esse ponto, explica o historiador, o AI-5 já estava pronto e vinha
sendo ensaiado. "Não tinha sido detonado ainda pela falta de uma fagulha
apropriada", afirma.
O caso Moreira
Alves foi essa fagulha que os militares precisavam. O presidente Costa e Silva
convocou a famosa reunião que instituiu o AI-5 com a cúpula do governo militar.
O único a se opor ao endurecimento foi o vice-presidente Pedro Aleixo.
O então ministro da
Fazenda, Antônio Delfim Netto, guru econômico dos militares, contou muitos anos
depois que o caso Moreira Alves foi uma desculpa e a reunião, "um
teatro".
"Naquela época
do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas,
havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para
levar ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação", disse Delfim, como
relata o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Envergonhada.
O apoio dos
empresários
O AI-5 não teve a
mesma simpatia de setores de elite da sociedade que o golpe de 1964, e os
militares podiam estar ficando mais isolados, mas não estavam sozinhos.
Para o Ato
Institucional Número 5, eles tiveram o apoio de um setor essencial: os
empresários.
"Isso servia
para compensar um pouco a falta de apoio de outros setores influentes, como a
grande imprensa", explica Motta.
O AI-5 teve o apoio
de diretores de instituições como a CNI (Confederação Nacional da Indústria) e
a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
Delfim Netto,
ligado ao setor, disse na reunião que estava "plenamente de acordo" e
que eram "absolutamente necessárias" certas mudanças constitucionais
para que o país pudesse "realizar o seu desenvolvimento com maior
rapidez".
O empresariado
acreditava que mais autoritarismo poderia ser útil para facilitar decisões na
área econômica e possibilitar o crescimento. "A motivação principal para o
AI-5 foi de natureza política, o aspecto econômico foi secundário. Mas esse
aspecto secundário não foi irrelevante, ou seja, a motivação de aumentar a
centralização de poder para beneficiar projetos e investimentos econômicos
também teve seu peso", afirma Motta.
·
Quais
foram as consequências do AI-5?
O AI-5 precedeu - e
possibilitou - o período mais sombrio da ditadura, em que milhares de pessoas
foram perseguidas e torturadas.
"A imprensa
foi calada, com censores de plantão nas redações ou a ameaça de que isso viesse
a ocorrer", explica Motta. "Juízes considerados inimigos da ditadura
foram expurgados, assim como diplomatas e professores universitários."
Houve um grande expurgo
no Congresso de todos os políticos que governo considerava
"contestadores". O professor explica que a expulsão de parlamentares
atingiu mais o MDB, que era o único partido de oposição autorizado a existir na
época, mas também afetou a Arena, que era o partido do próprio governo - a
legenda teve dezenas de deputados cassados.
"O AI-5 deu à
ditadura instrumentos para imobilizar os espaços institucionais e sociais que
estavam veiculando críticas ao governo", afirma Motta. Ou seja, o AI-5 foi
uma maneira dos militares revigorarem o governo, explica o historiador, e
unirem as Forças Armadas na defesa do regime.
Nos anos todos de
ditadura, há registros sessões de tortura praticadas pelo Estado contra cerca
de 20 mil brasileiros - entre estudantes, professores, políticos, jornalistas,
artistas e até militares.
Os militares,
aliás, foram uma categoria muito atingida pela repressão - mais de 6,5 mil
integrantes das Forças Armadas sofreram algum tipo de perseguição.
Qualquer um que
tivesse críticas ao governo poderia ser alvo.
Segundo a Comissão
Nacional da Verdade também houve milhares de perseguições na forma de
acusações, processos e inquéritos, quase 5 mil políticos e funcionários
públicos cassados, centenas de exílios e 434 mortos ou desaparecidos.
Fonte: BBC News
Brasil
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