sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Por que cientistas desbravam profundezas cada vez maiores da Terra

Fico sentada e deslizo por um túnel de pedra curvo e brilhante, que parece o interior de uma garganta. Sinto-me como se estivesse sendo engolida e desapareço na escuridão do mundo subterrâneo.

Seguro pequenas estalagmites que parecem pústulas enquanto rastejo, agora de joelhos. Estalactites pontudas ameaçam me morder e capilares de calcita estão espalhados nas paredes da rocha.

Phil Short me alerta que as cavernas são "vivas". Elas respiram – suas entradas, muitas vezes, são pequenas, mas elas trocam gases com o mundo exterior.

Estou na caverna Wookey Hole, que faz parte de uma rede de cavernas subterrâneas na aldeia britânica de Wookey Hole, em Somerset, no sudoeste da Inglaterra.

"Hoje, o dia está quente", explica Short. Ele é um dos mais famosos mergulhadores e exploradores de cavernas do mundo e chefia as missões subaquáticas da Deep Research Labs.

"A pressão atmosférica no lado externo é alta", explica ele. "Mas ontem foi um dia frio e a pressão atmosférica aqui dentro é baixa."

Se a pressão do ar fora da caverna for maior do que a interna, segundo Short, o ar se move para o interior da caverna e vice-versa.

"Em outro dia, pode ser congelante lá fora e ainda quente aqui dentro – e a caverna respira na direção oposta."

Comprimo meu corpo através de uma abertura, escalando sobre minhas mãos, joelhos e estômago, até que o corte inclinado na terra se abre para uma pequena caverna.

Empoleirado sobre uma rocha, Short parece tão confortável quanto nós, quando ficamos relaxados em uma poltrona aconchegante. E esta descrição pode não estar tão longe da realidade, já que ele descreve a caverna Wookey Hole como sua "casa espiritual".

A guia de cavernas Becca Burne, do grupo de instrutores Wild Wookey, orienta a desligar as lanternas. Nós nos sentamos em total escuridão.

"As pessoas juram para mim que podem ver sua mão em frente ao rosto, mas elas não conseguem", conta Burne, rindo.

Aqui, embaixo da terra, a escuridão é completa. Tudo está parado e em silêncio. Esta sensação de calma só é possível quando você retira todos os estímulos incessantes da vida na superfície.

"[Explorar cavernas] é uma atividade lenta e controlada, não um esporte radical", explica Short. "Você trabalha lentamente, aperta um autosseguro ou cow's tail, passa a corda de segurança, verifica e, depois, move o segundo."

·        'Exploração pura'

Atualmente, existem dezenas de milhares de cavernas conhecidas em todo o mundo e outras são descobertas todos os dias. Na verdade, muitas das cavernas do planeta permanecem inexploradas, incluindo as dos montes Mendip, no Reino Unido, onde me encontro neste momento.

"Se você voltar à era de ouro das explorações – a busca pela fonte do Nilo, a corrida rumo ao Polo Sul – não havia satélites, nem aviões", relembra Short.

Para ele, "a exploração de cavernas é o último campo que possibilita a exploração pura. [Quando você entra em uma caverna inexplorada] Você vai para um lugar do planeta onde nada esteve antes – nenhum drone, nem a tecnologia moderna."

Short destaca que, nas cavernas, podem ser encontrados tesouros – "novas espécies, novas curas para doenças".

Algumas cavernas são tão grandes que já foram relatados sistemas meteorológicos próprios. Outras são tão profundas que ainda não conseguimos chegar até o fundo.

As cavernas contêm segredos da evolução humana, da vida que veio antes de nós e de milênios de impactos climáticos. E não são apenas repositórios de memórias distantes, mas pontos cruciais para a biodiversidade e o endemismo. Elas são ecossistemas completos e cheios de vida.

Foi o que o entomólogo Leonidas-Romanos Davranoglou, da equipe de pesquisa Expedition Cyclops e estudante de pós-dourado da Universidade de Oxford, no Reino Unido, encontrou ao caminhar até as montanhas Ciclopes, na região de Papua, na Indonésia.

A Expedition Cyclops é liderada por pesquisadores da agência de pesquisa governamental da Indonésia Badan Riset Dan Inovasi Nasional (BRIN), pelo Centro de Conservação de Recursos Naturais de Papua Ocidental (BBKSDA, na sigla em indonésio), pela ONG conservacionista Yayasan Pelayanan Papua Nenda (Yappenda) e pela Universidade de Oxford, em conjunto com estudantes de zoologia da Universidade Cenderawasih, na Indonésia.

Em 2023, a equipe escalou montanhas quase verticais, atravessou densa vegetação rasteira e construiu um acampamento completo, com um laboratório de trabalho feito de bambu.

Davranoglou conta que, se você ficar parado por um momento na região das montanhas Ciclopes, sanguessugas, brilhantes e escuras como o chão da floresta, irão se aproximar de todas as direções. Elas estão caçando você, seguindo minúsculas vibrações na terra, sua sombra e sua respiração.

"Em Papua, é muito úmido e as sanguessugas vivem em absolutamente toda parte – nas árvores, no chão, nos arbustos", explica Davranoglou.

Na floresta das montanhas Ciclopes, todas as formas de aranhas e cobras venenosas, além de mosquitos e carrapatos vetores de doenças, perseguem os poucos que se aventuram por aquela terra praticamente inexplorada.

Apesar dos riscos, a equipe estava determinada a "realizar a pesquisa mais abrangente sobre aquele ecossistema", segundo Davranoglou. E, durante o processo, eles coletaram a primeira evidência fotográfica que confirma a sobrevivência do peixe conhecido como equidna-de-attenborough.

Eles também redescobriram uma ave que havia sido perdida pela ciência há mais de 15 anos, encontraram um novo gênero de camarão que mora em árvores, incontáveis novas espécies de insetos e até um sistema de cavernas antes desconhecido, quando um membro da equipe caiu em um buraco no solo.

"Pudemos observar que ela descia mais fundo", ele conta. "Precisamos rastejar e, no momento em que entramos, morcegos começaram a voar freneticamente."

"Nós pensamos, 'OK, isso é muito bom sinal'. Depois, começamos a ver grilos da caverna."

Ele explica que os grilos da caverna são insetos observadores peculiares. Eles têm pernas e antenas extremamente longas e olhos minúsculos.

"Eles sentem o caminho através do escuro", prossegue ele. "Os grilos das cavernas são um sinal que indica a existência de um rico ecossistema de cavernas por ali."

Davranoglou e o líder da expedição, James Kempton, retornaram à caverna diversas vezes. Na terceira ocasião, Kempton estava sozinho no subterrâneo, patrulhando caminhos para prosseguir com a exploração, quando a terra começou a tremer. Poeira caiu das rachaduras e os morcegos começaram a voar em pânico.

"Papua é uma das áreas com maior atividade tectônica do mundo", explica Davranoglou. "Sentimos tremores de terra todo o tempo."

Do lado de fora, "você observava enormes rochedos caindo [nas encostas]. Houve então esse enorme terremoto que sacudiu [Kempton] dentro de uma caverna extremamente estreita, cheia de rochas."

"Nossos alunos esperaram fora da caverna, cheios de medo, para ver se ele iria sair", ele conta. "Eles gritaram de alegria quando ele chegou em segurança."

A equipe descobriu um "tesouro" de espécies subterrâneas, incluindo aranhas cegas, opiliões cegos e um escorpião-chicote, todos desconhecidos da ciência até então.

"Ficamos totalmente eufóricos, pois descobrimos um ecossistema escondido com muito potencial", relembra Davranoglou. "E, como exploramos apenas os primeiros 40 metros, nós apenas raspamos a superfície. Quem sabe o que existe abaixo disso."

·        Onde o trabalho começa

De volta a Oxford, Davranoglou mostra uma bandeja de espécimes de besouro-do-esterco, belos insetos furta-cores com seus enormes chifres pontiagudos.

Estamos em uma sala repleta de gabinetes metálicos, que fazem parte das Coleções da Vida do Museu de História Natural da Universidade de Oxford. Elas abrigam 5,5 milhões de espécimes de insetos.

Davranoglou conta que, agora que a expedição terminou, começa realmente o trabalho.

"Papua é a ilha com maior biodiversidade do mundo", segundo ele. Davranoglou espera que um novo nível de compreensão da sua biodiversidade possa orientar a criação de medidas de conservação para proteger aquele precioso ecossistema.

"A descoberta de cada nova espécie pode contar a evolução de toda uma linhagem", explica ele.

"Ela pode ajudar você a entender como os organismos eram distribuídos no passado e quais fatores ecológicos e geológicos dirigiram a formação de diferentes grupos de espécies. E, com estes dados, podemos também compreender fatores que poderão afetar a distribuição das espécies e seu destino no futuro."

Em 2013, Short passou três meses explorando cavernas. Ao todo, foram 45 dias embaixo da terra.

Com 12 km de comprimento e 1,2 km de profundidade, o sistema de cavernas J2 fica escondido nas profundezas das montanhas de Sierra Juárez, no sul do México. Transportar através da densa floresta o equipamento de expedição para três meses – cilindros de mergulho portáteis, reguladores, alimentos e equipamento para acampar – por si só, já foi um desafio.

"No topo plano da montanha, fizemos nossa base de acampamento", explica Short. "Tendas espalhadas pela floresta, caminhos entre elas e uma grande área comum coberta por lona com um braseiro."

"A cerca de uma hora de caminhada, descendo a montanha, havia uma minúscula plataforma na encosta e a entrada da caverna, com cerca de 45 cm de largura e 1,3 metros de altura", ele conta.

Esta singela entrada não dava ideia do enorme labirinto escondido embaixo da terra. A apenas dois metros da encosta, Short desceu de rapel por 70 metros, carregando 40 kg de equipamento de mergulho nas costas.

"Desci mais, mais e mais", descreve ele. "Por fim, depois de cerca de 700 metros de descida, terminamos em uma pequena câmara onde [membros da equipe anteriores] haviam pendurado redes. Havia um fogão e alguns mantimentos."

No segundo acampamento, foi preparada uma tenda e o terceiro era a base de mergulho. A primeira seção inundada tinha 200 metros de comprimento.

"Agora, sobrou apenas a equipe de mergulho", conta Short.

De uma equipe de 44 pessoas de 15 países diferentes, ficaram apenas dois – Short e sua colega exploradora Marcine Gala. Eles permaneceriam ali sozinhos, por nove dias.

Depois de um mergulho de mais 600 metros no desconhecido, Short e Gala subiram à superfície para ouvir o ruído de uma cachoeira.

"Encontramos essa bela cortina gigante de calcita multicolorida", relembra Short. "Nós nos esprememos em torno dela e vimos o rio contido como se fosse uma barragem."

"Havia névoa nesta enorme câmara, como em uma queda d'água na floresta, onde toda a água do rio de J2 estava simplesmente fluindo para os intestinos da Terra."

Usando uma furadeira elétrica para fixar parafusos à parede da rocha, a dupla prosseguiu de rapel até a base. Eles seguiram o rio até que ele "se fechou em um espaço no qual não podíamos nem colocar a mão – o fim da caverna", conta Short.

Embora a exploração – e não a ciência – fosse o motivo para eles estarem ali, mapear sistemas de cavernas como aquele abre o caminho para futuras expedições científicas, segundo o líder da expedição, Bill Stone.

"As cavernas precisam ser protegidas", afirma a professora de ciências geológicas Hazel Barton, da Universidade do Alabama, nos Estados Unidos. Barton é geomicrobióloga e estuda os micróbios que vivem em alguns dos ambientes mais extremos da Terra. Ela e outros cientistas seguiram os passos de Stone nas montanhas de Sierra Juárez.

Barton estuda há mais de 20 anos a vida microscópica encontrada nas profundezas da terra, capaz de sobreviver à extrema falta de alimento. Suas pesquisas ampliam nosso conhecimento sobre a resistência antimicrobiana e o que a capacidade de fotossíntese – em um ambiente que, para o olho humano, parece totalmente escuro – pode nos contar sobre a possibilidade de vida extraplanetária.

"A um quilômetro da entrada, ainda existe fotossíntese", explica Barton, "mas ela é deslocada para o infravermelho próximo."

"Existem estrelas que emitem apenas nesses comprimentos de onda. Por isso, este estudo pode nos ajudar a entender como é possível haver vida em outros planetas."

Para Barton, a exploração de cavernas é o mais próximo que podemos chegar de sermos astronautas, sem sair para o espaço.

"Você é a primeira pessoa a ver alguma coisa, as suas pegadas são as primeiras", descreve ela. "Daqui a 10 mil anos, as pegadas que deixei na caverna Lechuguilla, no Novo México [EUA], ou nas cavernas Tepui, na Venezuela, talvez ainda estejam por lá."

Saindo de Wookey Hole para a luz do dia, percebo que meus sentidos estão exagerados. Sinto o cheiro da folhagem úmida, o canto dos pássaros, a brisa na minha pele e o calor do Sol. Parece que acabei de acordar de um sonho.

"Atualmente, é difícil impressionar as pessoas", afirma Short. "Mas você pode vir aqui e sempre ver algo diferente."

Existem centenas de entradas de cavernas conhecidas na Terra, na Lua e até em Marte. Muitas delas nunca foram exploradas.

Se nos aventurarmos pela escuridão, o que poderemos encontrar escondido embaixo da superfície?

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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