sábado, 21 de dezembro de 2024

Piero Stefani: O suicídio de Israel e a questão de Gaza

Em uma entrevista já antiga concedida em 1986 ao Journal of Palestine Studies, o grande intelectual israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994) se posicionava contra a visão repetida de que a vida na diáspora judaica estaria sempre exposta aos perigos. A história europeia, argumentava o entrevistador, ensinou aos judeus que a assimilação não garante a segurança pessoal, e é por isso que os judeus decidiram se tornar donos de seu próprio destino exercendo a autodeterminação.

Leibowitz respondeu que, naquela janela do século XX, os judeus estavam seguros em todos os lugares, especialmente nos Estados Unidos, exceto em Israel. Os israelenses estão expostos ao perigo por causa de um conflito contínuo que os coloca contra o mundo árabe e muçulmano. Esse é o preço que foi preciso pagar para a conquista da independência política e nacional.

A retórica de Israel como um “Estado refúgio” ainda persiste, mas agora é uma perspectiva consignada a uma dimensão puramente verbal. Entre o final do século XIX e o início do século XX, o grande número de judeus do Império Russo que fugiram dos pogroms e se refugiaram nos Estados Unidos fizeram uma escolha mais previdente em relação à segurança deles mesmos e de seus descendentes do que a minoria que foi fundar as colônias agrícolas na “terra dos pais”.

·        Estado refúgio ou armadilha mortal?

A repetida alegação de que, se o Estado de Israel já tivesse existido, os judeus europeus em grande número teriam se salvado do Holocausto, pode ser objetada com uma afirmação igualmente hipotética de que, se as tropas nazifascistas tivessem vencido a batalha de El Alamein, o território que se estende do mar até o rio Jordão teria se transformado em uma armadilha mortal para os judeus.

Se o objetivo principal do sionismo político tivesse sido criar uma pátria onde os judeus, perseguidos em todos os lugares, pudessem finalmente viver em paz, seu fracasso histórico seria evidente.

Além do perigo ao qual os israelenses ainda estão expostos, soma-se o fato de que, desde sua criação (1948), a questão da segurança tem sido um fator tão predominante para Israel a ponto de moldar o ethos de toda a nação (um dos fatores de identidade mais importantes para Israel sempre foi o serviço militar obrigatório estendido a homens e mulheres).

Como Bruno Segre escreveu há mais de 20 anos nas colunas desta revista, prevaleceram por muito tempo em Israel opções políticas convencidas de que seria a segurança que levaria à paz e não o contrário. O resultado dessa opção resultou na falta de ambos os fatores. Além disso, certas escolhas estratégicas e políticas qualificadoras das várias lideranças israelenses acabaram se revelando fatores que contribuíram para alimentar a insegurança até mesmo dos judeus que vivem na diáspora. Um indicador evidente disso é o crescimento preocupante do antissemitismo. Se, por outro lado, o objetivo primordial do sionismo é identificado no duplo objetivo de restituir aos judeus, entendidos como povo, um papel ativo na história mundial e formar uma sociedade na qual os judeus, uma minoria em todos os lugares, enfim constituam a maioria, então seu sucesso histórico seria impressionante. Os dois “ses” introduzidos na última série de considerações apontam, de fato, para a questão, longe de ser acadêmica, de qual seria o núcleo profundo do sionismo (entendendo-se que uma compreensão histórica adequada do fenômeno comportaria falar no plural de sionismos).

É justamente com essa chave que se abre a seção histórica do recente livro de Anna Foa, Il suicidio di Israele. A alternativa proposta pela autora concentra-se na questão de saber se o sionismo deve ser considerado um movimento de autodeterminação nacional ou se deve ser entendido como um evento colonial. Entre todas as ideologias abraçadas pelos judeus na época moderna, o sionismo é a mais radical devido ao fato de propor uma ruptura muito clara com o passado.

Essa cesura revolucionária implicou uma ruptura dentro do mundo judaico; isso aconteceu, em grande parte, por causa da proposta de construir um Estado nacional, uma hipótese até então inédita em âmbito judaico (cf. FOA, Il suicidio di Israele, 14). O projeto, antes de mais nada, despertou não poucas oposições internas e hoje ainda é apenas prerrogativa de franjas marginais.

Foi um fenômeno não comparável a outras questões nacionais. O movimento sionista exigia, para a criação de um Estado governado por judeus, o deslocamento da população da Europa para um território localizado em outro continente (a subsequente emigração judaica para Israel de países árabes, do Irã e da Etiópia ficou atrelada ao fato de que o Estado já existia). Torna-se inevitável, então, evocar o espectro do colonialismo.

·        A cesura da Nakba

sionismo não é, no entanto, uma realidade comparável à expansão colonial europeia dos séculos XIX e XX; nesse caso, de fato, a conquista de territórios africanos e asiáticos deve ser atribuída, em sua maior parte, a ações empreendidas por Estados já existentes. Um grupo de imigrantes convencidos de serem portadores de uma forma superior de civilização que se encontra e, acima de tudo, se confronta com uma população já estabelecida em um determinado território expressa, ao contrário, uma dinâmica comparável à que ocorreu com o nascimento e a expansão territorial dos Estados Unidos.

Se adotássemos a categoria colonial, teríamos de recorrer à categoria de colonialismo de assentamento. Essa forma de colonialismo sempre comporta a presença de uma forte marginalização, apartheid ou exploração da população autóctone; entretanto, geralmente não dá origem a expulsões forçadas de população.

Durante o período do regime mandatário britânico, se registraram momentos de altíssima tensão, confrontos abertos e violências brutais tanto do lado judeu quanto do árabe (basta pensar, em primeiro lugar, na revolta árabe de 1936-1939), mas não houve verdadeiras expulsões de habitantes nem formas de controle judeu sobre uma população árabe. O quadro sofreu uma mudança primeiro em 1948, com o nascimento do Estado de Israel, e depois, em 1967, com a Guerra dos Seis Dias. O primeiro caso produziu o início da diáspora palestina, o segundo a ocupação e o controle israelense sobre territórios habitados por palestinos.

O afastamento forçado dos palestinos entre 1947 e 1949 é um capítulo de um debate que vai além da dimensão historiográfica. A questão tornou-se parte integrante da identidade dos dois povos, muito forte no caso palestino, que a qualifica como Nakba,  mas longe de ser marginal, pelo menos reflexivamente, em Israel. O número de refugiados, inicialmente em torno de 700.000, aumentou sete vezes. As pesquisas históricas mais credenciadas são atribuídas a Benny Morris (cf. FOA, Il suicidio di Israele, 34 e segs.).

As duas motivações de afastamento mais expostas a usos ideológicos são, na realidade, secundárias: o abandono da própria residência por ordem dos árabes chega a apenas 2%, enquanto a expulsão direta pelas forças armadas judaicas é atestada em 14%. Por outro lado, é muito mais consistente o fator constituído pelo ataque militar aos assentamentos: 59%. Sejam quais forem as razões originais do fenômeno, o fato é que os refugiados ainda hoje representam um fator que pesa, de modo determinante, em qualquer processo de normalização.

O resultado da guerra de 1967 levou ao controle israelense sobre a Cisjordânia e Gaza. Uma de suas consequências foi que Israel teve de lidar diretamente com uma porcentagem não desprezível de pessoas pertencentes a núcleos familiares afastados à força de suas casas e propriedades em 1947-1949. Disso a visão que se questiona se o sionismo teria introjetado componentes coloniais desde o nascimento do Estado e não apenas com as ocupações após a Guerra dos Seis Dias.

Formalmente, foi anexada ao Estado de Israel apenas uma quantidade reduzida de territórios conquistados em 1967 (Jerusalém velha e Leste; as Colinas de Golã). Além disso, após os Acordos de Oslo (1993), foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP). Esses dois fatores são suficientes para excluir a compreensão de que, atualmente, o Estado de Israel controla, de modo direto, indireto e diversificado, toda a área sobre a qual o futuro Estado palestino deveria surgir.

·        Os colonos e o Hamas

Um dos fatores, certamente não o único, que caracteriza o controle israelense sobre os territórios está ligado à presença crescente de colonos. Um fenômeno que é muito diferenciado internamente e, após a decisão tomada pelo governo de Ariel Sharon (2005), não mais deslocado para Gaza. O fato é que hoje o número de colonos presentes na Cisjordânia é essencialmente equivalente ao de refugiados palestinos de 1947-1949: um dado real não desprovido de aspectos simbólicos.

Por esse motivo, apesar da catástrofe histórica, humanitária e política em curso em Gaza, o maior peso sobre o futuro assentamento da área ainda deve ser atribuído à Cisjordânia; é sobretudo em relação àquela área que se decidirá transformar em direito uma ocupação de fato ou de tornar aquele território o núcleo central de um futuro Estado palestino independente, uma hipótese, esta última, aliás, excluída por uma votação do Knesset em julho de 2024 (68 votos a favor em 120).

Em agosto de 2023, Saleh Al-Aruri (alto líder do Hamas assassinado no subúrbio de Beirute por um ataque aéreo israelense em janeiro deste ano) declarou que em breve seria deflagrada uma guerra entre o Hamas e Israel com o objetivo de sabotar a aproximação entre o Estado judeu e a Arábia Saudita.  A intenção era impedir qualquer possível extensão dos Acordos de Abraão (2020), que os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein também já haviam assinado. A normalização com Israel promovida pelos acordos era impulsionada por uma oposição comum ao Irã. A antítese de décadas entre sunitas e xiitas é um fator decisivo na atual situação do Oriente Médio.

Esse estado de coisas repercute de forma ambivalente nas guerras lideradas por Israel atualmente.

O Hamas, que surgiu da vertente palestina da Irmandade Muçulmana (sunita), é apoiado muito mais pelos Hezbollah (xiitas) e pelo Irã do que pelos Estados árabes sunitas. As duas frentes atuais da guerra travada por Israel, Gaza e Líbano e, por extensão, o Irã, comprovam isso. A questão palestina é um setor, em muitos aspectos trágico, mas não decisivo, de um cenário mais amplo que é prenúncio de um futuro e ainda imprevisível rearranjo da ordem dentro de todo o Oriente Médio.

O livro de Anna Foa não aborda de forma consistente esse nó decisivo. O motivo, obviamente, não deve ser buscado no fato de a historiadora não estar ciente desse evidente tema. Em vez disso, o motivo deve ser buscado no fato de que as relações com o Irã e seus desdobramentos (Hezbollah, Houthis) não se repercutem de forma aguda na relação entre o Estado de Israel e a diáspora judaica, um entrelaçamento que, em vez disso, constitui o ponto crucial íntimo por trás da escrita de Foa.

Considerações em grande medida semelhantes se aplicam a outro livro recente, de Gad Lerner. Gaza, Odio e amore per Israele (Gaza, Ódio e amor por Israel, preste-se atenção a precedência do termo adversativo ao afetivo),

Essa atitude é assumida pelos dois autores não por serem pressionados por solicitações externas, sempre questionáveis. A razão é outra: a realização do projeto sionista fez com que, hoje em dia, todo judeu encontre no confronto com Israel, seja qual for a maneira como ele ocorra, um fator que afeta diretamente sua própria identidade.

A revolução sionista modificou a maneira de ser judeu ainda mais do que a memória do Holocausto. Como ainda acontece no âmbito de determinados grupos ultraortodoxos, é possível adversar a própria existência do Estado de Israel; para todos, entretanto, é impossível viver como se não existisse. Isso é ainda mais verdadeiro na situação atual, quando se atenuou significativamente a distinção entre judeu e israelense, que ainda estava presente na década de 1980, quando a diáspora europeia e, de diferentes maneiras, também aquela estadunidense, ainda tinha sua própria fisionomia específica (cf. FOA, Il suicidio di Israele, 57).

·        A questão dos dois Estados

Os livros de Foa e Lerner têm como ponto comum a convicção de que a crítica à atual liderança israelense tem o duplo propósito de reafirmar os valores mais nobres presentes no ethos da diáspora judaica e contrastar a atual deriva (para não dizer suicídio) que caracteriza Israel. Somente dessa forma será possível atribuir novamente ao termo antissemitismo o significado semântico que lhe é próprio, sem transformá-lo em uma espécie de passe-partout distorcido estendido a toda crítica feita à condução política israelense.

Os massacres de 7 de outubro são, sem dúvida, hediondos “crimes contra a humanidade”. No entanto, as modalidades das reações israelenses fizeram rapidamente arquivar a lembrança. O Hamas previa que a resposta ao massacre do “Sábado Negro” seria um ataque aéreo israelense em massa, cujas consequências, em poucos dias, teriam direcionado “a maioria da opinião mundial a favor dos palestinos, transformando-os novamente em vítimas da superioridade militar israelense, a fim de passar para o segundo plano o massacre de 7 de outubro, como efetivamente aconteceu”.

Contar preventivamente com a morte de um grande número de membros da própria população a favor da qual se afirma querer lutar, atesta, por si só, o nível de fanatismo martirial presente na liderança do Hamas.

O que o exército israelense está fazendo em Gaza pode não ser um genocídio, mas é inquestionavelmente um “crime contra a humanidade” (FOA, Il suicidio di Israele, 86), realizado por um Estado que se proclama de forma altissonante “a única democracia do Oriente Médio, mas que não hesita em atingir idosos e crianças para matar um único chefe do Hamas. Um chefe que será substituído por outro após alguns dias” (FOA, Il suicidio di Israele, 87).

Disso decorre a pergunta: “E os judeus do mundo, daquela diáspora que enche a boca e a mente com a ética judaica e o pensamento judaico, como podem aceitar isso sem reagir? Como podem apenas falar sobre o antissemitismo sem olhar para o que está causando sua explosão no momento, a guerra de Gaza?” (ibid.).

Como sair dessa situação? O Hamas não pode ser destruído politicamente sem iniciar um processo que leve à criação de um Estado palestino que isole os extremismos simétricos presentes nos dois campos. Como disse Yitzhak Rabin, a paz é negociada com o inimigo. No entanto, não resta dúvida de que a explosão de ódio em ato tornará longo “o caminho não para a paz, mas para a simples convivência” (FOA, Il suicidio di Israele, 91).

solução de dois Estados é agora considerada por muitos como inviável, assim como a de um Estado binacional. O único caminho viável poderia talvez ser a hipótese proposta por Guido Viale (citada por Lerner  e retomada, sem citá-la, em um apelo recente promovido por Raniero La Valle) ] aquela da superação da atual “forma de Estado”? Lerner não é dessa opinião; apesar dos grandes obstáculos que caracterizam, a perspectiva de “dois povos, dois estados” continua sendo um cenário que não deve ser descartado: “Mas é evidente que praticar a paz em um território tão desigual comportará complicadas e inovadoras soluções de natureza cantonal e confederal” que, necessariamente, terão que envolver o desmantelamento parcial dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, enquanto quem entre os colonos “quisesse permanecer a todo custo lá onde se assentou, terá que se resignar a ter um passaporte palestino”.

A hipótese de “dois povos, dois Estados” perde credibilidade se for apresentada como uma espécie de mantra na boca de líderes internacionais que mal têm consciência da profundidade dos abusos, dos dramas e do ódio que acometem populações inteiras. No entanto, o que Michael Walzer escreveu há alguns anos também continua sendo verdadeiro: “A solução de dois Estados talvez também seja uma ilusão - existe de fato um alinhamento significativo de forças que se opõem a isso em ambos os lados - mas a ideia é mais realista [do que a criação de um único Estado]. Sabemos, de fato, como criar estados-nação, temos uma longa experiência nisso. Não sabemos como criar a comunidade política ideal que os partidários do Estado único dizem desejar”.

 

Fonte: IHU

 

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