Os escritórios do
crime organizado
Um relatório
divulgado na semana passada pela Secretaria Nacional de Políticas Penais
(Senappen), ligada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ao mesmo
tempo em que esclarece pontos importantes, lança uma série de dúvidas sobre o
domínio que as facções criminosas do país exercem sobre os presídios
brasileiros. Os dados revelam que a organização Primeiro Comando da Capital (PCC),
de origem paulista, continua sendo a maior e mais poderosa do país. Revelam
também o Comando Vermelho (CV), de origem fluminense, segue crescendo e se
espalhando pelas cadeias de uma quantidade cada vez maior de estados
brasileiros.
De acordo com os números,
o CV tem 134 homens no comando de 125 pavilhões prisionais em 25 estados. Um
estudo anterior, divulgado em novembro, mostra que, no Brasil, há 1760
pavilhões prisionais sob domínio de um total de 88 facções criminosas. Vistos
dessa maneira, os números confirmam uma realidade preocupante, já mencionada
neste espaço em outras ocasiões: independente das falhas, das omissões, dos
conluios e da incompetência que tenha levado a essa situação, a verdade é que
as penitenciárias brasileiras hoje não passam de escritórios do crime
organizado.
De dentro delas, os
bandidos que chefiam o crime dão ordens que desencadeiam operações violentas.
De lá, eles controlam a contabilidade e sempre demonstram que as celas em que
cumprem suas penas, ao invés de segregá-los do convívio social, servem apenas
para protegê-los das ameaças que poderiam sofrer por parte da polícia, da
Justiça ou de facções rivais.
Exemplos dessa
realidade estão por toda parte. Na semana passada, pouco antes de virem a
público os dados da Senappen, que indicam a expansão do poder do Comando
Vermelho nas cadeias brasileiras, uma operação policial foi deflagrada no Rio
de Janeiro para combater uma quadrilha especializada em roubo de cargas. Pelo
que se divulgou, essa quadrilha tinha como chefe máximo — veja só! — o
traficante Luiz Fernando da Costa — conhecido como Fernandinho Beira-Mar.
“SEGURANÇA MÁXIMA”
Por que o espanto?
Qualquer pessoa minimamente informada sabe que, mesmo estando preso desde 2001
— quando foi capturado na selva colombiana —, e mesmo tendo sido o “interno” nº
1 do sistema penitenciário federal, inaugurado em 2006, Luiz Fernando da Costa,
Fernandinho Beira-Mar, se mantém como um dos bandidos mais atuantes, poderosos
e perigosos do país. No caso específico da operação da semana passada, ele
estaria dando as ordens aos bandidos especializados no roubo de cargas de
dentro da prisão federal de “segurança máxima” de Catanduva, no Paraná, seu
endereço atual.
Os presídios
federais têm — ou, pelo menos tinham — a fama de contar com um sistema de
proteção inexpugnável e capaz de impossibilitar a comunicação de quem está do
lado de dentro com quem está do lado de fora. Mas, pelo que se viu nos detalhes
dessa operação, não é bem assim que a coisa funciona. Mesmo recolhido a uma
dessas cadeias, Luiz Fernando continua agindo com a mesma autoridade que tinha
quando estava do lado de fora.
As ordens que
partiam de Catanduva chegavam ao presídio Moniz Sodré, no Complexo de Gericinó,
no bairro de Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ali, o bandido Cristiano
Gregório de Lucena as recebia e, pelo celular, acompanhava e controlava os
movimentos dos bandidos encarregados de executar as ordens. O braço direito de
Luiz Fernando repassava as ordens vindas de Catanduva e interagia com os
celerados encarregados de executá-las por meio de um grupo de WhatsApp chamado
“Família Ana Clara”. As conversas armazenadas no aparelho apreendido pela
polícia mostram que, além de não agir sem ordens de Lucena, o pessoal da linha
de frente tem que prestar contas do produto do roubo.
MAL PELA RAIZ
Nem se trata mais
de discutir a presença de aparelhos celulares num ambiente em que eles não
deveriam entrar. A questão é constatar as ramificações que transformam o
ambiente das prisões brasileiras em centros operacionais do crime organizado.
O roubo de cargas
pode parecer um crime secundário dentro dos valores bilionários movimentados
pelo tráfico internacional de drogas. A verdade, porém, é que esse “negócio”
acabou se tornando, além de lucrativo e relativamente seguro para os bandidos,
um elo importante na corrente que alimenta o próprio tráfico. Com olheiros bem
localizados nas transportadoras e dispondo de informações precisas sobre as
rotas e as condições de trânsito das mercadorias, os bandidos abordam os
caminhões e se apossam de eletrodomésticos, alimentos, artigos de higiene e
limpeza ou qualquer outro produto transportado. A situação nesse sentido é tão
escabrosa que a logística de transporte no território fluminense é mais cara do
que em outros estados e as seguradoras se recusam a emitir apólices para as
cargas que transitam pelo Rio de Janeiro.
Os produtos são
repassados a interceptadores e o dinheiro obtido em troca deles é utilizado
pelos bandidos para a compra de drogas que, distribuídas no Brasil e no mundo
por meio das conexões da quadrilha, geram lucros fantásticos. Todos os recursos
são contabilizados centavo por centavo e quem ousar pôr a mão naquilo que
“pertence” à quadrilha paga com a própria vida pelo desvio de conduta. E mais:
na hora em que o “tribunal do crime” decide executar que age contra seus
interesses, não aparece um único defensor de direitos humanos para denunciar o
crime!
Tudo isso está
descrito com detalhes em relatórios produzidos por investigações sérias
conduzidas no Brasil e no exterior. Com o lucro obtido, as quadrilhas compram
armamentos modernos, instalam sistemas de monitoramento sofisticados, pagam
propinas, subornam autoridades, constroem bunkers, compram mais drogas e fazem
de tudo para ampliar o seu poder. Sempre sob a proteção de uma teia bem
articulada, com ramificações sofisticadas e interesses que avançam para dentro
da própria estrutura do Estado — que muitas vezes se mostra completamente
omisso diante dessa situação. E contra a qual a sociedade se sente cada vez
mais indefesa.
FACES DA MESMA
MOEDA
Ninguém está
sugerindo, aqui, que é fácil combater o crime organizado e que a retomada do
poder pelo Estado dentro das penitenciárias depende apenas da vontade e da
atitude das autoridades brasileiras. Nada disso! Combater o crime organizado é
uma tarefa árdua em qualquer lugar do mundo. Se fosse fácil, a máfia
nova-iorquina, o cartel de Sinaloa do México, a Yakuza, do Japão e a Camorra,
da Itália, já teriam sido dominadas e seus integrantes, recolhidos às cadeias
do mundo inteiro, já não ofereceriam mais perigo.
O que se percebe no
Brasil, no entanto, é que, a despeito do esforço que se observa por parte de
algumas autoridades, a impressão que se tem é a de o país conta com um sistema
que favorece a bandidagem e de certa forma a protege ao invés de combatê-la. A
horda de criminosos que hoje mede forças com o Estado e trata a sociedade como
refém, é resultado das omissões por parte de quem deveria tê-la combatido no
passado. Nesse ponto, o caso do Comando Vermelho é exemplar.
Criado no extinto presídio
da Ilha Grande, no litoral fluminense, no ano de 1979, o CV tinha, na origem, a
intenção de lutar pela melhoria das condições carcerárias nas cadeias do Rio de
Janeiro. Pouco tempo depois, e por não encontrar ninguém disposto a estabelecer
limites a suas ações, seus líderes se deram conta de que a organização poderia
estender seus tentáculos para fora do sistema prisional e servir a propósitos
que fariam o objetivo inicial parecer uma brincadeira de criança.
O CV, assim como o
PCC, se organiza conforme o modelo utilizado pelas organizações de esquerda,
que inspiraram o surgimento dessas organizações. Atenção! Ninguém está dizendo,
aqui, que exista qualquer ligação entre as quadrilhas e os partidos de
esquerda. Tudo o que está sendo dito aqui, e quem diz isso é a história do
país, é que, até agosto de 1979, quando foi promulgada a Lei da Anistia,
militantes de esquerda condenados pela ditadura militar cumpriam penas no
presídio da Ilha Grande, ao lado de assaltantes, traficantes, assassinos e
outros criminosos barra pesada.
Ao longo dessa
convivência estimulada pelas circunstâncias, os criminosos comuns aprenderam a
se organizar em “células”, em que uma não se comunica com a outra, mas todas
seguem a uma mesma liderança. Com o passar do tempo e o sucesso do modelo, o CV
se consolidou. Se tornou uma potência do tráfico internacional de drogas, que
hoje mantém conexões com narcoguerrilheiros venezuelanos e colombianos e até
com terroristas do grupo Hezbollah.
Não se trata de
discutir se a organização de origem fluminense se fortaleceu a ponto de medir
forças com o paulista PCC. Comparar as forças dessas organizações e perder
tempo com o debate que compara a força de cada uma delas só interessa aos
próprios bandidos. Uma e outra são faces de uma mesma moeda e cada passo
adiante que dão no sentido de ampliar seu poder obriga a sociedade e o Estado a
darem passos atrás e se tornarem cada vez mais acuados por elas. Mesmo assim, é
bom dedicar algum tempo para tentar entender as circunstâncias reveladas pelo
levantamento da Senappen.
No caso do Comando
Vermelho, pelo que foi mostrado no estudo, o bando tinha presença, até o ano
passado, em vinte das 27 unidades da federação. Com a expansão verificada em
2024, quando fincou sua bandeira no Amapá, Espírito Santo e Pernambuco, a malta
só não está presente no Distrito Federal, no Rio Grande do Norte, no Rio Grande
do Sul e em São Paulo — berço do PCC. A súcia paulista, por sua vez, está
presente em 24 estados, um a mais do que a corja fluminense.
REVELAÇÕES E OMISSÕES
O relatório contém
revelações importantes e, ao mesmo tempo, omissões que atiçam a curiosidade de
quem observa os dados com um mínimo de cuidado. O levantamento inclui, por
exemplo, o Rio Grande do Norte entre os estados que não registram a presença da
gangue fluminense. Acontece, porém, e o Brasil inteiro sabe disso, que o CV
está lá, sim!
No primeiro
semestre deste ano, em pleno feriado de Carnaval, dois integrantes da corriola
fluminense — Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento —, que cumpriam
pena em Mossoró (e, portanto, no Rio Grande do Norte), fugiram da penitenciária
de “segurança máxima” valendo-se de uma série de falhas que podem até ter sido
fortuitas, mas que parecem cometidas de propósito. E se tornaram os primeiros
e, até hoje, únicos presidiários que conseguiram fugir de uma penitenciária
federal de segurança máxima desde que a primeira delas foi inaugurada no
Brasil, em 2006.
Assim que a fuga
foi revelada, as autoridades resolveram se mexer. O chefão do Comando Vermelho,
o já citado Luiz Fernando da Costa, que também cumpria pena no Rio Grande do
Norte, foi imediatamente transferido para o presídio federal de Catanduva, no
Paraná. Na época, a Senappen emitiu nota informando que, após a fuga, foi feito
um rodízio de 23 presos entre as penitenciárias federais “com a finalidade de
garantir o enfraquecimento das lideranças do crime organizado”.
A medida, ainda
segundo a nota da época, era importante para assegurar “o perfeito
funcionamento” do sistema. Ela visava “impedir articulações das organizações
criminosas dentro dos estabelecimentos de segurança máxima, além de enfraquecer
e dificultar vínculos nas regiões onde se encontram as penitenciárias
federais”.
Seja como for, o
sucesso inicial da fuga e o tempo que a polícia levou para recapturar os
criminosos a mais de 1600 quilômetros do presídio, se não serve como prova,
pelo menos levanta a suspeita de que a quadrilha fluminense tem, sim,
ramificações no Rio Grande do Norte. Se não contassem com apoio externo, os
criminosos jamais teriam conseguido ir tão longe, atravessando uma região que
não conheciam e desfrutando de liberdade por 50 longos dias.
PEDIDO DE LICENÇA
Um outro ponto
observado no relatório do Senappen merece comentários e requer explicações mais
detalhadas. De acordo com o documento, a origem fluminense do CV foi o que
atraiu para o Rio de Janeiro uma grande quantidade de bandidos de outros
estados. E fez das comunidades cariocas refúgios seguros para criminosos do
país inteiro.
De acordo com os
dados do Sennappen, o estado abriga pelo menos 253 facínoras de outros estados,
já devidamente identificados. Desses fugitivos da Justiça, 80 vieram do Pará,
inclusive três chefões do crime no estado. A maioria dessa súcia está acoitada
na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio, Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, e
outras comunidades do município.
Será que é isso
mesmo? Será que o fato de o Rio ser o berço do CV, assim como a topografia
acidentada das comunidades e favelas na região metropolitana, é suficiente para
justificar a presença de tanta gente perigosa vivendo sem a preocupação de
serem perseguidas pelas forças de segurança? Sem a intenção de discutir o
mérito do relatório nem de colocar em dúvida a precisão das informações
contidas no documento, convém incluir outra hipótese nesse cenário.
DESTINO DA
BANDIDAGEM
Desde o ano de
2020, as operações policiais estão praticamente proibidas nas comunidades do
Rio de Janeiro. Para colocar os pés em qualquer uma delas, a polícia precisa
estar de posse de uma autorização judicial que define onde, como e quando
poderá atuar. Isso significa que, na prática, não é a origem do Comando
Vermelho, mas a sensação de segurança proporcionada por essa medida, que fez do
Rio o destino preferido pela bandidagem nacional. Simples assim.
Essa é uma discussão
antiga, repetitiva e chega a se tornar enfadonha. Ao invés de dificultar a vida
dos criminosos, as autoridades brasileiras parecem mais preocupadas com o
bem-estar dos bandidos do que com a segurança da população. Na semana passada,
o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, levou à análise
da Casa Civil da Presidência da República a proposta de um decreto que, se for
aprovado, praticamente obrigará a polícia a pedir licença ao bandido antes de
lhe dar voz de prisão. O projeto chega a proibir, a não ser em casos
específicos e em situações planejadas, que os policiais portem armas de fogo em
seu trabalho cotidiano.
A intenção
anunciada do decreto é mais do que legítima: reduzir o número de mortes de
civis por ações policiais. Mas ela deveria ser acompanhada de salvaguardas que
dessem à polícia a possibilidade de agir contra o crime com um mínimo de
chances de sucesso.
O tema, como se vê,
é complexo e precisa ser tratado com profundidade e seriedade. A presença e a
atuação das organizações criminosas nos presídios e fora deles tornou-se
ostensiva demais para que as autoridades — sobretudo no âmbito federal —
continuem a tratar todo criminoso como “vítima da sociedade”.
A sensação que
fica, no entanto, é a de que a mesma inércia e a mesma omissão que, no passado,
permitiram que um grupo criado para lutar pela melhoria das condições
carcerárias se transformasse numa organização poderosa, continuam permitindo
que essas organizações se fortaleçam.
Combater o crime
organizado, como já foi dito, é uma tarefa difícil. Mas o trabalho precisa ser
feito e a sociedade precisa perceber que o Estado está agindo em sua defesa —
ao invés de dar a impressão de que os bandidos têm autorização para fazer o que
bem entendem.
Fonte: Por Nuno
Vasconcellos, em O Dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário