segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Marcio Alves de Oiveira & Rogério de Souza: O pacote de corte de gastos

O estrangulamento neoliberal das contas públicas colocou desfocadamente reformas governamentais em pauta nos níveis federal, estadual e municipal, ameaçando permanentemente serviços e servidores públicos. O pacote de corte de gastos apresentado por Fernando Haddad no final de novembro é o episódio mais recente da novela que se assiste desde a década de 1990.

Desta vez aparentava que seria diferente. Os hipsters da Faria Lima não param de se queixar: que o pacote demorou demais para sair; que a economia com os cortes de gastos está aquém do necessário; que não precisava anunciar simultaneamente a isenção do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até cinco mil reais por mês; que a taxação dos super ricos irá provocar fuga de endinheirados do país etc. Caracterizado por ser um nicho econômico associado ao capital especulativo, rentista, investirem em paraísos fiscais via offshore e surrupiadores disfarçados do orçamento público[i], a gritaria da turma abastada da Faria Lima resultou, na esquerda, num ligeiro entusiasmo com as medidas econômicas do governo federal.

As propostas de taxar os super ricos que ganham mais de 50 mil reais por mês, isto é, mais de 600 mil reais por ano, em até 10%; proibição na criação, majoração ou prorrogação de benefícios tributários (isenções fiscais), que hoje somam mais de 500 bilhões de reais; limitação orçamentária de subsídios e subvenções; teto no crescimento das emendas parlamentares impositivas; etc[ii], são bem-vindas, porém, aquém do esperado e do possível. Muitos super ricos recorrem há tempos ao subterfúgio da pejotização para não recolher impostos devidos e, em média, pagam menos de 5% do valor recebido. Diferente da classe média que paga, no limite, 27,5% ao mês. Portanto, soa como medida tímida a proposta de taxar em menos de dois dígitos essa corruptela[iii], constituída por brancos e ricos, que autointitulam-se case de sucesso.  

Ao mesmo tempo em que diferentes setores da elite econômica se queixam de programas de transferência de renda do governo federal como o Bolsa Família, se esbaldam com isenções fiscais e subsídios diversos, vide as desonerações tributárias que o ramo de lazer conquistou no contexto da pandemia e que agora “não quer largar o osso”. A prática escusa do orçamento secreto que, como argumenta Jessé Souza, é uma forma de corrupção que a grande imprensa escolhe não nomear assim, deveria acabar.[iv] O pacote do governo de corte de gastos até segue orientação internacional de taxar aqueles que ganham mais, no entanto, não menciona uma só palavra sobre a auditoria da Dívida Pública, proposta histórica da esquerda brasileira e ação que resultaria, certamente, na economia de bilhões de reais. Também não alude sobre a taxação do patrimônio dos super ricos, com destaque para impostos sobre herança, como já ocorre em vários países do mundo.

Não se verifica, todavia, a mesma ternura quando se trata dos instrumentos de fiscalização de políticas públicas voltadas às camadas vulneráveis. O aumento do salário mínimo acima da inflação, somado ao crescimento do PIB de dois anos anteriores, mostrou-se, ao longo do tempo, instrumento essencial para diminuir as desigualdades no Brasil. Estudos do IPEA revelaram o impacto dessa política pública para melhorar a distribuição de renda no país.[v] Porém, o pacote de corte de gastos estabelece uma espécie de freio nesse crescimento. Abaixa o teto a níveis que se adequam ao Arcabouço Fiscal. Ou seja, condiciona a elevação no valor do salário mínimo à inflação, somada ao limite de até 2,5% do PIB, mesmo que este apresente alta superior. Um governo de centro-esquerda não pode tirar do horizonte que a classe trabalhadora defende, há décadas, que o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria ser, segundo o DIEESE, de R$ 6.769,87 ou 4,79 vezes o mínimo de R$ 1.412,00.[vi] Com a aprovação do pacote de corte de gastos, o salário mínimo, que em 2025 seria de R$ 1.521,00 irá para R$ 1.515,00. Rapinagem de 72 reais no ano das camadas vulneráveis.

Outra política pública que tem ajudado a diminuir as desigualdades no Brasil é o Abono Salarial, benefício que equivale a um 14º salário para quem ganha até dois salários mínimos (atualmente em R$ 2.824,00) com carteira assinada. O governo federal parece enxergar essa prática como um “mimo desnecessário” para a sobrevivência das camadas populares, e propõe reduzir, ao longo dos anos, para um salário mínimo e meio a renda mensal do contingente que terá direito a receber o Abono Salarial.

Com a justificativa de passar o “pente-fino” nos programas sociais, o governo federal esborracha-se na esparrela de que o principal problema das contas públicas, isto é, o empecilho para o país se desenvolver, é a corrupção das camadas populares, especialmente daqueles que se apropriam de forma indébita do dinheiro da nação.[vii] Verifica-se a ênfase despejada no escrutínio de programas sociais como o mundialmente premiado Bolsa Família, que hoje atende 54,37 milhões de pessoas, das quais 25 milhões são crianças e adolescentes de zero a 18 anos incompletos, e um montante anual de 14,25 bilhões de reais[viii]; e no Benefício de Prestação Continuada, o BPC. Sobre o último, além de indicar eventuais fraudes e distorções de uma política pública que atende aos grupos vulneráveis socialmente – garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade -, o governo amplia a noção de família, isto é, cônjuge não coabitante e renda de irmãos, filhos e enteados (não apenas solteiros) coabitantes passam a contar para ter acesso ao auxílio. Pessoas das camadas populares com deficiência e mais velhas vivem, geralmente, com parentes na mesma casa ou no mesmo terreno com algumas moradias – ali residem filha, neto, bisneta, etc. Portanto, corre-se seriamente o risco desse “pente-fino” nas políticas públicas de distribuição de renda tornar-se em justificativa para não conceder o benefício, assemelhando-se à prática desenvolvida pelos governos neoliberais da década de 1990.

Pontualmente, o pacote de corte de gastos avança sobre privilégios, porém, em pelo menos um terço se faz sobre os mais vulneráveis socialmente, e isso no frágil contexto social que ainda é de urgente recomposição da tessitura social rasgada na última década, especialmente após o golpe de 2016 e o desastroso governo de Bolsonaro. Além disso, indica, mais uma vez, que políticas públicas voltadas às camadas populares estão, necessariamente, permeadas por falcatruas e trapaças. Esse mesmo ímpeto moralizador não é descarregado no “pente-fino” de políticas públicas consumidas sabidamente pelas frações da elite econômica. O caso de corrupção envolvendo as lojas Americanas e um dos homens mais ricos do Brasil reafirma, mais uma vez, que os players da rapina não vivem nas periferias, morros e favelas.

Da maneira exposta no tabuleiro de disputas por orçamento, o pacote de corte de gastos obrigatórios quer apenas dar sobrevida ao moribundo Arcabouço Fiscal por meio de ações que atendam às vontades daqueles que historicamente se apropriam do dinheiro público e boicotam a sociedade brasileira.

É preciso alargar ao máximo, conforme as aberturas políticas possíveis, essa verdadeira disputa por uma ampla e estrutural reforma social que inverta o fluxo de apropriação da riqueza produzida pela classe trabalhadora. Neste sentido, deve-se escancarar a porteira aberta pela acertada proposta governamental que via Imposto de Renda transferirá 30 bilhões ao ano dos mais ricos para 30 milhões de trabalhadores que ganham entre 2 e 5 salários mínimos, a qual rapidamente pode se fechar no atual contexto político neoliberal desfavorável.

Em outras palavras, desvelar a necessidade de uma reforma pela esquerda que impeça o dreno dos recursos públicos para o tal mercado, com: a recomposição das contas públicas através da reoneração fiscal de empresas privadas que continuam mamando no dinheiro público; a diminuição da taxa de juros que drena 30 bilhões por ano a cada 1 ponto Selic e que, segundo critérios razoáveis, deveria ser de 2 a 4 pontos menor do que é hoje; o desmonte dos mecanismos rentistas que sugam mais da metade do orçamento através da dívida pública; a real e crescente taxação dos ricos; a auditoria da Dívida Pública.

Para isso, os movimentos sociais de esquerda têm que potencializar os fecundos caminhos apresentados como a luta pelo fim da escala 6X1, combatendo a alta precarização presente no mundo do trabalho e trazendo para o horizonte de mudanças mais estruturais a questão da jornada de 4 dias, operando politicamente, assim, também na necessária disputa ideológica concreta contra uma sociedade neoliberal fascistizando-se.

A luta política por justiça social via redistribuição de renda no sentido mais amplo possível tem que focar urgentemente na alta precarização social com os ricos pagando a conta dos profundos desajustes sociais que eles mesmos produziram. Jamais cair na esparrela de “culpar o pobre pelos problemas brasileiros”.[ix] O embuste da elite econômica predatória e egoísta necessita ser cobrada, não com ternura, e sim com firmeza.

 

¨      Reforma Tributária: entenda a diferença entre os textos aprovados no Senado e na Câmara

O Senado promoveu uma série de modificações no texto de regulamentação da Reforma Tributária, aprovado pela Câmara dos Deputados em julho deste ano. Entre as principais propostas pelo relator Eduardo Braga (MDB-AM) está o acréscimo de itens isentos na cesta básica e nos produtos com alíquota reduzida a 60% da alíquota padrão.

A proposta foi aprovada pelo Senado nesta quinta-feira, mas volta para Câmara dos Deputados devido às mudanças.

O texto também trata de cashback para baixa renda (devolução de imposto) e detalhes do funcionamento dos impostos criados com a reforma: o federal Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o estadual/municipal Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)Eles vão substituir IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS.

Vejas quais foram as principais mudanças:

<><> Cesta básica

No Senado, a cesta básica de alimentos com alíquota zero de IVA somam 26 itens e foram acrescentados: mate, tapioca, massa e fórmulas proteicas. Foram retiradas os óleos de soja e milho.

Na Câmara, a cesta tinha 22 itens, com carnes e queijos adicionados.

<><> Cashback

O relatório de Eduardo Braga ainda ampliou a possibilidade de cashback para população de baixa renda que comprar botijão de gás de até 13 kg. Antes o texto previa a devolução de imposto apenas para os itens de exatamente 13kg. Além disso, serviços de internet e telefone também poderão ter devolução de CBS e IBS.

Na Câmara, o cashback era apenas para energia, água, luz e esgoto.

<><> Saneamento

No Senado, o saneamento ficou equiparado a serviços de saúde, com alíquota reduzida em 60%. Na Câmara, o saneamento estava apenas como regime especial, e o cálculo da alíquota seria feito para manter a carga tributária.

<><> Medicamentos

No Senado, o relator retirou a lista de princípios ativos que seriam isentos de tributo e substituiu por grupos de doenças a serem atendidas. Terão imposto zero: tratamentos oncológicos; doenças raras; DST e AIDS (o projeto traz esses termos); doenças negligenciadas; e diabetes mellitus.

Entre os medicamentos e dispositivos que terão 60% de desconto na alíquota, o relator incluiu produtos de Home Care, aqueles utilizados para tratamentos de idosos, pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida quando tratadas em casa; além de serviços de esterilização e instrumentação cirúrgica.

Na Câmara, existiam duas listas com princípios ativos de medicamentos, com cerca de 300 itens cada, uma para desconto de 60%, e outra para alíquota zero.

<><> Imóveis

O relator aumentou o desconto sobre a alíquota geral do imposto para 50% nas transações do mercado imobiliário. Antes, a redução de alíquota prevista no texto da Câmara era de 40%.

<><> Imposto seletivo

No Senado, as bebidas açucaradas foram retiradas do Imposto Seletivo. O item estava no texto da Câmara. Nas duas Casas, armas e munições ficaram de fora.

<><> Pesticidas

Braga também acatou uma emenda da senadora Tereza Cristina (PP-MS) que coloca os defensivos agrícolas, chamados de pesticidas, entre os produtos com alíquota reduzida em 60%, beneficiando o agronegócio.

Na Câmara, o benefício não existia.

<><> Crédito a empresas

Eduardo Braga também acrescentou entre os bens e serviços que podem gerar crédito às empresas a concessão de benefícios educacionais, como bolsas de estudos, e o serviço de creche para filhos de funcionários. A creche, porém, precisam estar no estabelecimento da empresa e servir a seus empregados durante a jornada do trabalho.

Os créditos também não eram previstos no texto da Câmara.

<><> Bares, restaurantes, hotéis e parques

Eduardo Braga também escolheu simplificar o cálculo do regime específico de hotelaria, turismo, bares e restaurantes. Eles foram enquadrados pelo relator na alíquota reduzida em 40%, sem contar as gorjetas na base de cálculo.

<><> Transporte coletivo intermunicipal e estadual

O relator também excluiu do texto a previsão de um cálculo que equiparava as alíquotas dos transportes intermunicipais e interestaduais, coletivos, com a carga tributária atual e deixou o setor com um desconto de alíquota de 40%.

<><> Educação, academias e serviço funerário

O relator também acrescentou a lista de alíquota reduzida em 60% os serviços de educação com enfoque cultural, desportiva e recreacional, em línguas estrangeiras e outras formas de treinamento. Eduardo Braga ainda acrescentou que serviços funerários, de cremação e de embalsamamento terão 60% de redução.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Exame

 

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