sábado, 21 de dezembro de 2024

Leda Maria Paulani: A chantagem do andar de cima

Há exatamente seis meses, em 22 de junho deste ano, publiquei, no site A Terra é Redonda, “Labirinto econômico”, artigo em que me perguntava qual era a hecatombe que fizera as tão alvissareiras expectativas sobre nossa economia dos primeiros quatro meses do ano terem se transformado num cenário sombrio, carregado de funestos prognósticos.

Na inexistência de qualquer fundamento objetivo capaz de explicar tamanha transmutação (a inflação estava dentro da meta, as expectativas sobre o crescimento do PIB se elevavam, a arrecadação tributária surpreendia, e o desemprego continuava a se reduzir), concluí que a resposta à minha pergunta não era técnica e que quando se trata de analisar os humores do mercado é preciso levar em conta também fatores de outra ordem.

Alertei ali que, dada a autonomia do Banco Central, instituída em fevereiro de 2021, e a forma específica em que se estruturam as relações entre o mercado financeiro e a autoridade monetária, além, é claro, do peso superlativo da riqueza financeira, haviam se criado no Brasil condições institucionais para uma espécie de autismo da política monetária, apta a falar só consigo e virar as costas ao país. Decorre daí o poder efetivo que tem o mercado financeiro, e a riqueza financeira de quem é o preposto, de alterar concretamente o comportamento da economia (profecia autorrealizadora é o nome da manobra).

Diagnostiquei então o início desse processo de reversão numa fala do presidente do Banco Central, indicado por Jair Bolsonaro, que, em meados de abril, a partir de Washington, onde participava de reunião do FMI, começou a afirmar que havia, naquele momento, “mais insegurança” do que a percebida durante encontro anterior do mesmo organismo. Roberto Campos Neto começava com isso a sinalizar que não seria possível continuar a trajetória de queda da Selic, que, tendo iniciado o governo Lula em 13,75%, experimentara, desde o início de agosto de 2023, um movimento de cortes que a tinha levado a 10,75%, com previsão de manutenção do movimento de baixa.

Com a continuidade das ilações infundadas de Campos Neto sobre o futuro da economia, o Comitê de Política Monetária (Copom), na reunião da primeira semana de maio, em decisão dividida, reduziu a Selic em apenas 0,25%, quando a expectativa era de que o corte acompanharia os anteriores, ficando em 0,5%. Àquelas alturas, a previsão do Boletim Focus (relatório de pesquisa periódica realizada pelo Banco Central junto às instituições e consultorias do mercado financeiro) de uma Selic de 9% ao final de 2024 já tinha se alterado para 10,5%. Previa-se, portanto, até o final do ano, um completo estancamento da queda desse preço básico, queda decisiva a fim de consolidar o movimento de retomada da economia, inclusive abrindo espaço para um resgate do protagonismo da indústria alinhado com as demandas impostas pelo necessário processo de transição ecológica.

Por mais que já fosse bastante adverso o cenário que então se criara, nada fazia crer, ao final de junho, que terminaríamos o ano com uma Selic de 12,25%, ou seja, mais de três pontos percentuais acima do marco esperado antes de ter início a reviravolta. Me parece lícito fazer aqui, já que o assunto está na ordem do dia, uma analogia com o golpe militar de 1964. Sempre se disse do AI-5, promulgado em dezembro de 1968, que configurou um golpe dentro do golpe, reforçando de modo decisivo o poder dos militares. Pois temos aqui um movimento similar: o tumulto com o câmbio, fazendo com que o preço da divisa fique, desde o início de dezembro, teimosamente acima de R$ 6,00, funciona como um golpe dentro do golpe, evidenciando ostensivamente o poder do mercado financeiro.

Iniciada pelo presidente do Banco Central lá atrás, tal operação ardilosa põe agora concretamente em risco a recuperação econômica e as boas perspectivas políticas que iam se desenhando para a continuidade do movimento que brecara a ascensão fascista no país: a escalada do dólar afeta de modo quase imediato os índices de preço e tira a inflação da meta (que aliás é estreita demais, mesmo para padrões internacionais referentes a economias já desenvolvidas, e deveria ser elevada pelo Conselho Monetário Nacional); isso leva a aumentos da taxa básica de juros, que provoca a elevação da razão dívida pública/PIB e a piora ulterior das expectativas, ensejando nova rodada de desvalorização do câmbio com a permanência da pressão sobre os índices de preços e sobre a taxa de juros e assim por diante, num infausto círculo vicioso, que converge para a inevitável redução das perspectivas de crescimento do produto, do emprego e da renda.

É legítimo, no entanto, perguntar: mas não existe agora nenhum fator objetivo que justifique a escalada do preço da divisa? É tudo resultado de uma manipulação de interesses mesquinhos e reacionários? Sim, existem alguns fatores objetivos, mas nada que justifique tamanha escalada da taxa de câmbio. Basicamente temos, de um lado, elevação do preço da carne, que, vítima da seca nas regiões produtoras, atravessa ainda um período em que sazonalmente a safra se reduz, e, de outro, aumentos de preços de commodities internacionais como café e petróleo (este último afetado pelo crescimento da tensão no Oriente Médio).

Além disso, também tende a subir ao final do ano (outro fator sazonal) a procura por dólares para envio de lucros e dividendos ao exterior, elevando a demanda pela moeda e pressionando seu preço. Por fim, no plano internacional, há uma tendência de fortalecimento do dólar, corroborada com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, provocando a desvalorização de praticamente todas as moedas de países emergentes (mas que, em média, acumularam no ano depreciação que não chega a 16%, contra quase 28% da moeda brasileira).

Ora, se considerarmos que boa parte desses fatores objetivos faz jus ao nome – sazonais, sobra muito pouco deles para explicar o movimento para cima do câmbio, não sendo suficientes, em hipótese alguma, para justificar o preço que o dólar vem alcançando no mercado brasileiro. Repetindo o que escrevi seis meses atrás relativamente à questão análoga, não é técnica a resposta à pergunta sobre as causas da deterioração do Real neste final de 2024. O que nós estamos vivenciando é um golpe dentro do golpe, é o andar de cima empunhando suas armas para impedir a realização de um programa de governo pelo qual não tem a menor simpatia e perante o qual se sente ameaçado em seus privilégios.

O tão esperado anúncio do pacote fiscal, feito em 27 de novembro, foi para eles uma decepção, pois, na visão de alguns “especialistas” – desses que o Bacen ouve em suas pesquisas para o Boletim Focus – ao invés de anunciar robustos e efetivos cortes de gastos (os cortes não mexeram, como eles queriam, nas vinculações constitucionais de saúde e educação nem na vinculação do BPC ao salário mínimo), o governo veio com redução de tributos (a proposta de isenção de IR para quem ganha até R$ 5.000,00 mensais, para eles inaceitável), e ainda por cima anunciando que quem ganha mais, deve pagar mais e vai pagar mais imposto.

Em resposta, eles jogaram gasolina na fogueira do câmbio, num movimento de realocação de ativos com fuga constante daqueles denominados em Real. Ademais, o overshutting do preço da divisa promove imensos ganhos para quem aposta contra a moeda brasileira nos mercados futuros, pois quanto mais subir o câmbio, maior o ganho. O descaramento é tão grande que até fake news de supostas falas de Gabriel Galípolo, o próximo presidente do Banco Central, foram espalhadas pelas redes sociais na terça-feira, 17 de dezembro, a fim de aumentar a incerteza e jogar a cotação do dólar ainda mais para o alto.

E pra quem acha que tudo isso é mera teoria conspiratória da história, vale prestar atenção no que diz um dos famosos especialistas do mercado financeiro:[i] “Essa queda pontual de hoje, depois da superalta da manhã, [ele se refere ao movimento do câmbio na mesma terça, 17 de dezembro] é mais um recado do mercado, mostrando ao governo que não há espaço para erros; se as reformas não andarem, ele joga o dólar na máxima novamente”. A chantagem está aí configurada com clareza cristalina.

E com isso estamos nós presos nessa ardilosa teia de aranha, cuja “racionalidade” é reverberada pela grande mídia, em que a dificuldade em aceitar um déficit primário de pouco mais de R$ 60 bilhões (que alude, em sua maior parte, a gastos sociais) desencadeia um movimento que faz a despesa do governo crescer em mais de R$ 200 bilhões anuais – resultado da elevação de mais de três pontos percentuais na taxa básica de juros em relação ao nível em que ela poderia estar sem a chantagem do andar de cima (sendo que esta última despesa vai toda para os bolsos dos donos da riqueza financeira).

Ressalve-se, pra concluir, que mesmo tal resultado primário negativo (indesejável, mas em nada escandaloso comparado ao que ocorre hoje, mesmo nas economias mais desenvolvidas) seria ainda substantivamente menor e ficaria dentro dos parâmetros previstos pelo arcabouço fiscal (resultado primário zero com intervalo de 0,25% para cima e para baixo), não fosse outro fator de enorme importância: a reiterada insistência do Legislativo – a outra cobertura ampla e confortável em que desfila o andar de cima – em não abrir mão dos privilégios fiscais detidos por vários setores, desonerações de folha à frente, e que implicam enorme gasto tributário para o país.

Por conta desse poder do Legislativo, alguns analistas políticos dizem que vivemos hoje num sistema semipresidencialista, ou seja, um sistema em que o Executivo tem efetivamente muito menos poder do que parece ter. Olhando para o que aconteceu neste segundo semestre de 2024, somos obrigada a dizer que o Legislativo pratica uma parceria muito harmoniosa com o mercado financeiro, contribuindo ambos, igualmente, para impedir que o resultado das urnas ganhe concretude. Sob o comando desse duplo sequestro, de fato acaba por fazer pouca diferença que partido está no comando do Executivo.

A necessidade de dar um cavalo de pau na forma auspiciosa como vinha se desenhando o cenário econômico sob o governo Lula foi o que levou Campos Neto, famigerado entusiasta do bolsonarismo, que via se aproximar o fim de sua gestão à frente do Banco Central, a iniciar o movimento de reversão das expectativas cerca de oito meses atrás. Ele cumpriu com bravura covarde sua missão pusilânime, criando uma situação em que as margens de manobra da nova direção do Banco Central tornaram-se extremamente reduzidas, como o atesta a previsão do último Copom em elevar a Selic em mais dois pontos percentuais até março de 2025. Resta torcer que, mesmo em ambiente tão adverso, os resultados econômicos desta terceira gestão de Lula sejam suficientes para mais uma vez livrar o país do monstro do fascismo, que permanece perigosamente à espreita.

 

¨      Nota sobre o ataque especulativo. Por João Carlos Brum Torres

Havia afirmado o propósito seguinte: não vou mais incomodar os leitores e os amigos com comentários sobre os impasses econômicos do Brasil. Voltei atrás, porém, ao ver a página de economia do jornal Zero Hora do dia 18 de dezembro de 2024, na qual se encontra não só a entrevista em que o professor Marcelo Portugal tem destacadamente registrada a opinião de que 2025 vai repetir o desastre de 2014, funesto resultado este que “decorre das incertezas acentuadas pelo insuficiente pacote fiscal do governo”, mas também os oportunos e precisos comentários do senhor Alex Agostini, “economista chefe da Austin Rating”.

Alex Agostini teve a honestidade de dizer o seguinte: “como a alta do dólar está relacionada à ‘perda de credibilidade’ da política fiscal, não entram na conta do mercado fundamentos macroeconômicos para formação do preço do dólar. O Brasil tem boa solvência e boa capacidade de pagamento em moeda estrangeira. Mas o que pesa mais agora são fatores subjetivos de perda profunda de credibilidade, de confiança.”

Pois, muito bem, permitam-me, contudo, a filosofada de quem é professor de filosofia.

Se acordo de manhã e vejo uma réstia de sol, formo uma crença: amanheceu e o tempo é bom. No vocabulário da filosofia analítica contemporânea, isso se chama uma “atitude proposicional” de caráter epistêmico, quer dizer, de caráter estritamente cognitivo, cujo fundamento é o registro simplesmente perceptivo de que amanheceu e o dia é claro. Ora, fora de trabalhos científicos de caráter estritamente teórico, atitudes proposicionais epistêmicas raramente vêm sozinhas, o mais comum sendo suas ligações com atitudes proposicionais práticas, como, para ficar com meu exemplo, “hoje vai dar para caminhar no Parcão”.

O ponto que distingue o comentário do Sr. Alex Agostini é a honesta franqueza de dizer claramente que estamos diante de um fenômeno econômico desligado de fundamentos macroeconômicos, que estamos diante de uma atitude proposicional de caráter subjetivo, quer dizer: algo cuja base não só não é o registro simples do fato de que o déficit primário não será eliminado rapidamente, mas que é a antecipação de uma deterioração da situação econômico financeira do país para a qual contribuirá, exata e muito potentemente, essa mesma antecipação subjetiva da deterioração das contas públicas. O que é dizer que o mercado trabalha, querendo ou não, para fazer acontecer o desastre.

Mas cabe perguntar: a atitude proposicional prática de antecipar o resultado fiscal de 2025 como equivalente ao de 2014 resulta simplesmente do medo de uma quebra da capacidade de pagamento da dívida por parte do governo federal? Ou de que em futuro próximo posições em real só trarão prejuízos?

Se as atitudes proposicionais práticas de (i) forçar a elevação da taxa de juros mediante a auto provocada desancoragem das expectativas dos agentes econômicos e (ii) de comprar dólares em grande escala expressassem simplesmente o medo de perda financeira dos detentores de grandes aplicações, deveríamos reconhecer que ela seria moralmente inocente, porque afinal ter medo não é algo que se possa censurar, mesmo quando esse sentimento seja infundado, caso em que o que cabe fazer são ponderações de que não há razão para tanto temor.

Ocorre, porém, que nossas condutas práticas não se tornam subjetivamente enviesadas somente em função de nossas emoções, como no exemplo, o medo. Elas se tornam subjetivamente práticas também em função de (i) nossos interesses e de (ii) intenções associadas tanto a (II.i) defesa de tais interesses, quanto a “(II.ii) a promoção de nossos ideais, religiosos, morais ou políticos.

É evidente, no entanto, que, no caso da conjuntura político-econômica presente no Brasil, a movimentação do Mercado nestes dias está dirigida em parte a obter ganhos ou evitar perdas financeiras com a instabilidade de preço dos ativos e, por outra parte, com o propósito político de desestabilizar o governo. Essa ação não é a mera agregação atomizada de condutas individuais, mas é estruturada com os grandes investidores dando o rumo dos movimentos de compra e venda de ativos seja por meio do mecanismo indireto e do efeito demonstração da compra de dólares em grande escala, seja de modo explícito por meio de telefonemas, falas de corretores e assessores com seus clientes, os quais, aliás, conforme pesquisa recente, são quase unanimemente posicionados politicamente contra o governo Lula.

A esses mecanismos de ordenação serial, próprios da ação de agentes dispersos e que se encontram no ponto exato da passagem das condutas serializadas à ação concertada própria dos grupos, para valer-me aqui das precisas e preciosíssmas análises de Jean-Paul Sartre, agregam-se ainda as entrevistas dadas aos muitos jornalistas que cobrem as ações e reações do mundo financeiro, cujo destaque na mídia é enorme, como se constata nos jornais impressos e televisivos, assim como nas redes sociais.

Em resumo, estamos diante de uma crise política criada pelo antagonismo entre o governo que se comprometeu com um ajuste fiscal mais lento e cujos ônus sejam melhor distribuídos e forças sociais hegemônicas que querem um governo menor e que não tenha compromisso com a redução de desigualdades, nem preocupação com o desenvolvimento econômico do país, e para o qual 40 anos de mediocridade de crescimento e desenvolvimento social é indiferente, ou, pelo menos, algo que, deixando o mercado funcionar, acabará ocorrendo, cabendo aos que enquanto isso e desde sempre não vão bem, ter o quê? Paciência, ora bolas, e esforçar-se por si mesmos para vencer suas limitações e carências, não importa com que capital pessoal e social tenham ou deixem de ter.

A verdade é que a disparada do dólar é um ataque especulativo do mais poderoso dos atores políticos do Brasil, o partido do mercado, cujo objetivo é impedir que o atual governo venha a haurir qualquer reconhecimento pelo excelente momento da economia – crescimento do PIB, depois de anos, finalmente além de 3%, redução do desemprego, diminuição da pobreza e mesmo aumento na taxa de formação de capital fixo –dados todos que refletem o anseio da sociedade brasileira de voltar a ter um país economicamente dinâmico e capaz de fazer disso o vetor e o motor de nossa passagem a uma fase de maior confiança em nós mesmos, de compromisso com retirar o Brasil do campeonato da maior desigualdade econômica do mundo, e nos devolver a esperança de que nosso país venha estar à altura de suas potencialidades, à altura de si mesmo.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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