Direitas velhas,
direitas novas é o título do mais recente livro de Fernando Rosas.
Uma obra que traça o percurso histórico da extrema-direita do surgimento
do fascismo aos dias de
hoje. Por entre as linhas estão a análise dos fatores objetivos e econômicos
desse percurso, mas também da batalha hegemônica e da derrota do movimento
revolucionário.
De uma crise
econômica, social e de valores surge o primeiro impulso do nazifascismo,
que é derrotado na Segunda Guerra Mundial. Durante os trinta anos de
crescimento econômico que se seguiram, a extrema-direita é
escorraçada e marginalizada, mas aproveita a crise
do capitalismo e
a guinada neoliberal para capitalizar sobre os problemas dos trabalhadores.
Hoje, está em posição de poder em várias das potências ocidentais.
Fernando
Rosas foi fundador e dirigente do Bloco de Esquerda, Portugal. É
historiador, o seu trabalho incide sobre a revolução portuguesa de 1974 e o
estudo da extrema-direita, do surgimento do fascismo aos dias de
hoje. Escreveu também sobre a questão colonial e a Primeira República
portuguesa. Em entrevista ao Esquerda.net, explica o percurso
da extrema-direita no último século e a sua caracterização hoje em
dia.
Eis a entrevista.
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Este
livro trata de várias crises que levam ao surgimento do fascismo: econômica,
social e de valores. Como é que se concretizam essas crises nos vários países
da Europa?
O fascismo dos
anos 20 e 30 surge na sequência da primeira crise histórica dos sistemas
liberais do ocidente. Essa crise vai traduzir-se no aparecimento
do movimento comunista e do fascista, sendo que nesse embate
o fascismo chega ao poder em toda a periferia europeia. Desde
a Polônia, a Romênia, a Grécia, a Itália, Espanha, Portugal,
e a Alemanha, que foi empurrada para uma posição periférica por causa da
crise. Portanto, a crise do sistema deu origem a uma revolução
social que foi derrotada em todo o lado exceto na própria União
Soviética. As demais revoluções proletárias que ocorreram na Europa nesse
período foram esmagadas e o que se lhes sucedeu foi o advento de regimes
fascistas praticamente em toda a Europa.
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Mas
os regimes fascistas têm na Segunda Guerra Mundial um ponto de ruptura.
A derrota do
nazifascismo é a derrota das potências do Eixo na Segunda Guerra
Mundial. E a época que sucedeu a seguir à guerra, a época do capitalismo
neokeynesiano, é uma época em que se conjugam vários fatores.
A reconstrução econômica da Europa, o medo do comunismo, a
necessidade de tentar preventivamente satisfazer muitas reivindicações das
massas trabalhadoras para impedir o advento do socialismo. Além disso, é
uma época em que o capitalismo consegue, em grande parte por virtude
da própria reconstrução econômica, sustentar taxas de lucro e de acumulação
vultuosas associadas a uma revolução tecnológica importante.
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E
nesse período de crescimento como é que você caracteriza a extrema-direita?
Nesse período
surgem aqueles que são os herdeiros do fascismo, ou seja, uma nova
extrema-direita, subsistente, que tenta agarrar-se ao paradigma da velha
extrema-direita, mas que é muito residual. Era muito difícil à extrema-direita,
depois do Holocausto, do terror da ocupação e da barbárie nazista,
ganhar relevância política.
Primeiro porque
muitos dos seus responsáveis são julgados por colaboracionismo ou até
por crimes de guerra, e depois porque a opinião pública tinha muito viva a
lembrança do que foi o fascismo e do que foi o nazismo. Esses
grupos vivem numa grupusculização a paredes meias com o terrorismo e com a
violência subversiva.
Sobretudo
na França e na Itália, os grupos neofascistas que
sobrevivem à Segunda Guerra Mundial e que continuam o paradigma
fascista no pós-guerra são grupos frequentemente terroristas, marcados
pela violência e, sobretudo, por uma grande marginalidade política. São grupos
que não contam politicamente, a maior parte deles nem sequer concorre às
eleições.
·
Ao
mesmo tempo, durante esse período, em Portugal e na Espanha mantêm-se regimes
fascistas.
Em Portugal e
na Espanha a situação é diferente, precisamente porque é
o fascismo que está no poder. Em Portugal não há lugar para
estes grupos de extrema-direita propriamente ditos, a não ser quando
começa a guerra colonial, a partir de 1961. Surge sobretudo um grupo mais
relevante que é tolerado pelo regime, que é um grupo chamado Jovem
Portugal. Um grupo fascista que tem uma intervenção muito ativa
no movimento estudantil contra a emergência de grupos de esquerda e
de extrema-esquerda nas universidades a partir dos anos 60.
·
Mas
já na democracia, essa participação da extrema-direita sintoniza-se mais com o
resto da Europa?
Antes há uma
terceira etapa a considerar do ponto de vista global, que é a conjugação de
dois fenômenos. O primeiro é o desenlace da Guerra Fria e
o colapso da União Soviética, do mundo tutelado pelo império
soviético. Essa implosão da União Soviética não se limita à queda
de regimes totalitários, acaba sendo uma guinada nas hegemonias
ideológicas. É uma crise das ideologias de esquerda, crise do
marxismo, crise das ideologias emancipatórias. Isso opera uma mudança na
relação de forças muitíssimo importante, e é conjugado com a crise
do sistema capitalista que origina o capitalismo neoliberal.
O capitalismo
neoliberal é uma grande contrarrevolução. Tudo o que eram algumas
aquisições do próprio capitalismo no período keynesiano desaparecem
completamente para dar lugar à financeirização da economia,
à privatização, à acumulação financeira conjugada com uma grande
ofensiva sobre o mundo do trabalho. Obriga a classe operária e os trabalhadores
a vergarem-se perante as necessidades imperiosas da acumulação. E tudo isso se
dá conjuntamente com uma nova revolução tecnológica do digital.
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Isso
significa que estamos novamente perante a crise social, a crise econômica, a
crise de valores?
Significa que,
perante a crise do sistema, marcada pela queda das taxas de lucro e de
acumulação, a resposta que o capitalismo dá é o neoliberalismo.
impor pela força estas políticas de restauração das taxas de lucro e de
acumulação. Isso provoca uma crise profunda no mundo assalariado.
O desemprego, a precarização, a uberização, a segmentação
da classe operária, o aumento da jornada de trabalho, a degradação
dos serviços públicos fundamentais que são privatizados.
Isso faz surgir uma
enorme massa de descontentamento e de frustração, que está ligada a quem dirige
o sistema, o centro, que é uma espécie de coligação entre
aquela social-democracia que se rendeu ao neoliberalismo e
uma direita clássica que acha que só com o neoliberalismo é
que pode subsistir a sua posição oligárquica. Forma-se uma espécie
de oligarquia ao centro e à direita e que se desvia toda ela no seu
conjunto para a direita.
·
É
aí que surge um novo impulso na extrema-direita?
Sim, porque há uma
frustração de grande parte do mundo assalariado, classes médias e as
classes populares mais desfavorecidas. Os desempregados, os precários, as
pessoas com emprego incerto, boa parte da juventude sem trabalho ou sem
perspectivas de futuro, que se torna receptiva a um discurso de
extrema-direita populista, nacionalista e corporativo, que diz que a
salvação está em restaurar a grandeza nacional, e a grandeza nacional é o
abraço entre patrões e trabalhadores, entre exploradores e explorados, em torno
de políticas que são políticas autoritárias e neoliberais.
·
E
a receptividade à extrema-direita vem também do fato de a hegemonia ter virado
à direita?
A receptividade vem
do fato de ter havido um deslocamento para a direita em toda esta situação, e
depois também porque a esquerda revisionista, ligada às tradições ortodoxas
dos partidos comunistas, desapareceu ou foi muito reduzida com a
transformação da Guerra Fria. E as alternativas à esquerda que surgiram
não foram suficientes para agarrar a situação.
Portanto, existe
uma massa de certos setores da pequena burguesia, pequenos proprietários,
pequenos lojistas, pequenos e médios industriais, profissões liberais, e também
assalariados, que veem que a esquerda enfraqueceu e que acham que é
este discurso nacionalista e de maximização da concorrência e do
lucro que nos pode valer. Porque é gente que se sente ameaçada
pelo capital financeiro, mas que acha que a alternativa não são as
propostas socialistas de resolver estes problemas pela ação coletiva das
pessoas, mas que a resolução do problema está em soluções de ordem por parte de
chefes carismáticos. De bufões políticos que possam constituir uma alternativa
à desgraça.
Portanto, abriu uma
janela de oportunidade à extrema-direita.
Abriu duas coisas.
O ressurgimento de uma nova extrema-direita que é uma base social que
é cavalgada com êxito por um novo discurso de extrema-direita, e
simultaneamente o deslocamento do centro e da direita para a direita. Ou seja,
a direita clássica encontra-se com a extrema-direita para
alianças parlamentares ou alianças do Governo ou até, a curto ou médio prazo, a
constituição regimes autoritários de novo tipo.
·
No
livro, você fala de uma extrema-direita que usa como tática a transição dos
regimes democráticos. O que é que isso significa?
Há, na
multiplicidade de grupos neofascistas, alguns que seguiram o conselho dos
teóricos da nova direita francesa, que é mudar de discursos, mudar de
métodos, apresentar-se como uma direita respeitável que aceita o jogo
eleitoral, que prescinde da violência e que aparenta integrar-se na vida
política ou parlamentar com vista a fazer alianças com a direita
tradicional. Alguns grupelhos neofascistas transformaram-se numa nova
extrema-direita com novas vestes, com um novo discurso mais apaziguador.
E apropriando-se do
neoliberalismo também.
À medida que se
aproximam do poder, tornam-se neoliberais. Mas alguns mantêm um discurso
social chauvinista, ou seja, cuidar de políticas sociais para os nativos,
contra os imigrantes. Há duas características a que eu queria chamar a atenção.
Primeiro, um regime de subversão desta ordem.
O neoliberalismo significa privatizar os setores fundamentais da
economia, rever radicalmente as relações de trabalho, capturar o Estado para
poder impor autoritariamente um regime político que restrinja a liberdade
política e sindical. E tudo isto é precedido e acompanhado por uma batalha
cultural decisiva, que é uma batalha pela hegemonia, que se destina a
preparar socialmente o terreno para aceitar estas coisas. É a luta contra
o marxismo, contra o feminismo, contra os direitos LGBTI,
o racismo.
Uma batalha que
tinha sido começada já pelos neoliberais.
É a batalha
dos neoliberais. Ou seja, não há nenhuma diferença entre a batalha dos
neoliberais e a batalha da nova extrema-direita, só que a nova
extrema-direita fala mais abertamente e mais radicalmente, mas é preparar
o advento de um novo tipo de regime neoliberal autoritário. A direita
tradicional toma o programa da extrema-direita e o torna seu e
a extrema-direita fica pendurada, ou então alia-se à extrema-direita num
regime de novo tipo. É para aí que eu acho que se caminha. Uma mudança destas
exige necessariamente uma batalha gigantesca ao nível da hegemonia e da
consciência. É preciso impor uma nova mundivisão que valorize o individualismo,
valorize a concorrência e que banalize o mal.
·
E
que comece a usar a guerra como ferramenta, não?
É preciso
compreender que a transformação do imperialismo numa coisa destas
significa a guerra, porque naturalmente vai haver combates por esferas de
influência. Os americanos combatem com os russos na Ucrânia, tentam cercar
a China no extremo-oriente. O que se está sendo preparado com a
eleição do Trump é o ataque ao Irã e o estabelecimento de
uma guerra de grandes proporções também no Oriente Médio. Guerras pela
hegemonia, porque naturalmente as quebras na globalização atual
significam que de repente cada polo imperial pretende defender o seu próprio
mundo econômico. E há uma quebra no mercado livre universal, que era a grande
panaceia inicial do neoliberalismo.
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No
livro, você faz um debate teórico sobre a nova extrema-direita onde dialoga com
várias ideias diferentes. Que ideias são essas?
Há várias teorias.
Há uma teoria que defende a pura continuidade entre os grupos neofascistas
do pós-guerra e o e a nova extrema-direita, mas passa um pouquinho
por cima daquilo que são as transformações reais que
a extrema-direita teve. O que é fato é que eles tomaram o poder
eleitoralmente numa série de lugares. Mudaram porque seguiram os conselhos
da nova direita francesa, adaptaram-se ao jogo democrático. E há uma
teoria oposta a esta que diz que entre o neofascismo do pós-guerra e
a nova extrema-direita há duas realidades absolutamente diferentes e
que tem defensores com argumentos diferentes.
Há uns que defendem
que o fascismo acabou e continuou nos grupelhos neofascistas, mas que
a nova extrema-direita é assimilável pelo sistema e, portanto,
concorre às eleições. Ou seja, aceitam como bom o discurso que a nova
extrema-direita faz sobre ela própria. E há outros que dizem que se trata
de um fenômeno novo, para o qual as características históricas do fascismo são
importantes de considerar, mas que são uma coisa diferente. E nesse sentido,
o Enzo Traverso fala do pós-fascismo, porque considera que
o capital financeiro continua apostando nos gestores tradicionais, ou
seja, na social-democracia.
·
E
a que conclusão você chega?
Há uma
continuidade, mas há uma qualidade essencial. Há um novo disfarce que é
importante ter em conta porque é eficaz. Porque eles ganham votos com isso,
conseguem implantar-se. Se fossem exatamente a mesma coisa, continuavam na
mesma. São grupos de natureza fascista, mas com um disfarce muito importante
que é preciso considerar. Eu no livro analiso detalhadamente todos os
documentos programáticos do Chega e o que é fato é que são coisas de
natureza fascista, mas bem disfarçadas e bem embaladas para uma base social que
nem liga muito a isso. O que eles querem é protestar. É acreditar que vem um
mundo novo com o bufão-mor histriônico a gritar.
·
No
livro, você faz também a crítica a uma visão economicista de como combater a
extrema-direita. Porquê?
Começou a existir
uma visão muito economicista que dizia que o problema das pessoas era
o desemprego e a crise econômica, e que no fundo isso era uma
espécie de problema sindical-reformista. Mas desvalorizava toda a componente
ideológica deste problema, porque o que subjaz este problema é uma nova
cultura. É uma nova hegemonia ideológica, uma mundivisão que dobra as
pessoas. A batalha cultural neste momento é uma batalha essencial e
não é desligável da batalha econômica. A batalha econômica tem de ser
uma batalha ideológica pelo socialismo e pela transformação social.
É de fato um
problema econômico, mas esse problema econômico só se resolve pela luta, pela
emancipação, pelo socialismo. A luta antifascista é indissociável da
própria luta pelo socialismo, da luta pela transformação social contra
o patriarcalismo, da luta contra o racismo, porque
o capitalismo age como um todo. A extrema-direita vence
porque há descontentamento econômico e porque há uma crença que se espalhou
sobre as vantagens político-ideológicas
de regimes autoritários para resolver a situação.
Em relação à
evolução da nova extrema-direita a partir do século XXI, há tendências
diferentes. Sobre a Europa já falamos, mas no Brasil e nos Estados Unidos temos
um processo muito mais acelerado dessa evolução. Porquehá essas diferenças e
como é que elas se expressam?
Porque
na Europa há toda uma história por trás. Houve a revolução russa
de 1917, houve a resistência ao nazifascismo, houve o Maio de 68.
A Europa tem uma tradição de combate e de luta progressista muito
enraizada. O fascismo tem que se disfarçar bastante para, apesar de tudo, poder
passar. E porque são realidades econômico-sociais muito diferentes.
A oligarquização
do sistema político e econômico, quer nos Estados Unidos, quer
no Brasil, é brutal. O nível de concentração da riqueza é
gritantemente maior, e há um sistema político muitíssimo enfeudado na
oligarquia. Há um enorme setor do povo no interior da faixa central
dos Estados Unidos, do mundo dos antigos operários que foram vítimas
da globalização, que se sente desamparada por um governo oligarca e é
recetiva a um palhaço gigantesco como Trump.
·
Você
falava há pouco das dinâmicas entre a extrema-direita e a direita
tradicional. De compactuação ou assimilação. Que análise você faz
da situação em Portugal?
Em Portugal,
há uma direita social democrata essencialmente alinhada com
a direita tradicional. Esse centrão tem duas alternativas. Ou chama a si
o programa da extrema-direita e esvazia a votação da extrema-direita porque
recebe esses votos, que é a tentação aparente do Governo, ou caminha para uma
aliança formal de Governo com a extrema-direita. A situação ainda é um
pouco incerta, mas o que é fato é que nos Açores, essa aliança já existe e na Madeira
vai e vem.
O Chega precisa
vitalmente dessa aliança porque se se apresenta sucessivamente perante o
eleitorado como um partido que tem muitos votos, mas não chega ao poder, tende
a voltar para trás. No fascismo paradigmático a tática utilizada foi
impor a aliança, ou seja, um movimento de massa suficientemente forte para
obrigar a direita clássica a recorrer a eles, a aliar-se a eles.
Fonte: Esquerda.net
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