‘Estamos putos com a incompetência do governo Lula’, diz
Stédile
A
FRUSTRAÇÃO de 90 mil famílias acampadas em barracos de lona preta país
afora pode resultar em mais ocupações de terra, segundo João Pedro Stédile, um
dos fundadores e principais líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). “É óbvio que, dia mais, dia menos, essa base vai se mobilizar, vai
pressionar, diante da ineficácia [do governo], afirmou em entrevista exclusiva
à Repórter Brasil.
Fiel apoiador do presidente Lula e do Partido dos
Trabalhadores, Stédile deixa claro que perdeu a paciência com o governo,
principalmente com o primeiro escalão escolhido por Lula.
Stédile, contudo, poupa o presidente: “com aquele
idealismo dele de querer atender às necessidades do povo, mas que não anda”. O
dirigente do MST deu nota 3, de 1 a 10, para a atuação do governo petista na
reforma agrária.
Também sugeriu que o presidente do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), César Aldrighi, peça para sair. “Eu,
se fosse o presidente do Incra, pode escrever aí, pediria demissão se tivesse
dignidade. Ou arranja dinheiro para resolver os problemas ou entrega o cargo”,
afirmou Stédile.
A entrevista foi realizada por chamada de vídeo, com
Stédile em frente a uma estante repleta de livros, no apartamento onde vive em
São Paulo. Enfeitada com as bandeiras do Brasil, da Venezuela, do MST, além de
uma ilustração da Palestina, a estante é uma amostra de como o movimento
compreende a força de símbolos para expressar o que pensa.
O maior deles, sem dúvida, é o boné vermelho. O
sucesso, contudo, não foi planejado, mas ele acredita que o acessório, que se
popularizou entre artistas, intelectuais e jovens, ajuda a ampliar o alcance da
mensagem do MST: “Quem usa o boné do MST está dizendo que apoia a reforma
agrária”.
<><> Leia a entrevista na íntegra:
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Assisti a um vídeo recente em que o
senhor fez uma análise de conjuntura para a militância do MST e classificou o
governo atual como uma “tragédia” em relação à reforma agrária, liberação de
créditos, ausência de medidas para combater a grilagem de terras e a violência
no campo. Por que o senhor considera o governo Lula uma tragédia?
João Pedro Stédile – Na verdade,
vou procurar ser mais preciso. Entre nós, do MST e da militância, temos
comentado que o governo Lula, no geral, é um governo encalacrado. Isso porque
ele chegou ao poder por meio de uma frente ampla, que foi importantíssima para
derrotarmos o bolsonarismo e a extrema direita. Porém, no desenrolar desses
dois anos, por essa falta de unidade e de projeto unitário, o governo não
conseguiu desenvolver e implementar políticas públicas que consigam, por um
lado, enfrentar os problemas estruturais da sociedade brasileira e, por outro
lado, fazer com que a reedição de políticas públicas boas, como Bolsa Família,
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Minha Casa Minha Vida,
cheguem à maioria da população pobre que vive nas periferias.
A dificuldade na nossa interlocução com os ministérios
do governo se dá porque, em geral, os ministros são ufanistas. Eles acham que
estão fazendo o melhor governo de toda a vida. E o pior enfermo é aquele que
não reconhece a doença. Então, não há remédio que funcione. Essa é a avaliação
geral, e não é só nossa, do MST. E o que a gente nota, inclusive, é o
presidente Lula muito sozinho, com aquele idealismo dele de querer atender às
necessidades do povo, mas que não anda.
·
E em relação à reforma agrária?
A reforma agrária está absolutamente parada nesses dois
anos. Todo mundo tem as suas desculpas. “Ah, tivemos que remontar o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA). Ah, não tivemos orçamento no primeiro ano”.
Tudo bem, nós somos pacientes, mas isso pode explicar a inoperância do primeiro
ano. Mas já estamos no segundo ano, e em 24 meses avançou muito pouco, quase
nada, a reforma agrária.
Primeiro, não houve nenhuma desapropriação. Ora,
reforma agrária se faz com desapropriação de latifúndio, senão você não
interfere na estrutura da propriedade da terra. Não houve nenhuma solução de
conflitos agrários que poderiam ter uma solução mais célere. Eu lembro do
acampamento lá de Parauapebas (PA), que é o maior que nós temos, com quase 3
mil famílias. Houve um incêndio,
morreram nove pessoas, o Lula ficou consternado e determinou que até o Natal
todas as famílias deveriam estar em cima da terra. Já se passou um ano daquela
determinação do presidente e nada aconteceu, as famílias estão lá acampadas,
sem nenhuma solução.
·
E como é que tem sido o diálogo do MST,
tanto com o ministro do Desenvolvimento Agrário, quanto com o INCRA?
O diálogo é muito bom. Nós ficamos conversando toda
hora. Há muitas audiências, mesmo lá nos estados. O problema é a incompetência
deles. Eles não estão cumprindo a sua função social. Então, ficam nos
enrolando: uma hora porque falta recurso, outra hora porque falta norma, outra
hora porque não sei o quê. Me diz: qual é a explicação que um servidor público,
pago para isso, lá no Incra, pode me dar? Por que não tem recurso para o
Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária)?
“Ah, no primeiro ano não estava no orçamento do
Bolsonaro”. E agora? O Pronera é a política pública talvez mais interessante,
ou mais civilizatória, do Incra, porque é dinheiro que vai para a educação
superior, que vai libertar os camponeses da ignorância. É a única maneira de um
filho de camponês entrar na universidade. E ele disputa entre os filhos de
camponeses. Mas ele pode fazer Direito, fazer Pedagogia, fazer Enfermagem,
fazer Veterinária, fazer Agronomia. Está lá, cursos aprovados que somam em
torno de R$ 70 milhões. É uma merreca no orçamento da União.
Durante o ano inteiro, eles devem ter liberado uns R$
10 milhões. Isso é inaceitável. Eu, se fosse o presidente do Incra, pode
escrever aí, pediria demissão se tivesse dignidade. Ou arranja dinheiro para
resolver os problemas ou entrega o cargo.
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O MDA apresentou o programa Terra da
Gente. Está funcionando?
É uma boa intenção, mas não funciona. Não adianta
dizer: “Vamos pegar as terras dos devedores do Banco do Brasil”. Ótimo, nós
batemos palmas. Sim, mas e daí? Qual é a fazenda? Lá no meu estado (Rio Grande
do Sul), tem uma fazenda em Viamão, pequena, deve ter uns 700 hectares, que é
do Banco do Brasil, registrada em cartório, que ele recolheu de algum devedor.
Mas, pelo amor de Deus, recolhe essa fazenda e assenta lá as famílias, porque
tem muitas famílias atingidas pelas enchentes que não querem mais voltar.
Ficaram tão traumatizadas pela enchente, a enchente do Rio dos Sinos, porque
foi a terceira vez que foram inundados, que eles querem sair dos assentamentos
atuais. Então, tem que encontrar áreas alternativas.
Da mesma forma, o Ministério da Fazenda teve uma boa
intenção e determinou que terras públicas estaduais podem ser trocadas pelas
dívidas que os estados têm com o governo federal, e essas terras, então, seriam
destinadas à reforma agrária. Muito boa iniciativa, mas não fizeram nenhuma.
Então, nós estamos “putos da cara” com a incompetência generalizada do governo
federal em resolver problemas. Porque se você não resolve o problema, ele só se
agrava.
·
No governo Bolsonaro, o Nabhan
Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários, lançou o programa
Titula Brasil e distribuiu cerca de 370 mil títulos de propriedade para
acampados e assentados, muitos deles no sul e sudeste do Pará e no norte do
Mato Grosso. Andando por esses lugares, fazendo reportagem, eu vejo um
encantamento dos camponeses em relação a esse programa de titulação.Os
movimentos sociais, por sua vez, dizem que esse programa só serviu para colocar
as terras no mercado. Por que parte dos sem-terra se encantaram com o programa
do governo Bolsonaro?
Bom, isso é um engodo generalizado. No caso do
Bolsonaro, só servia para falsa propaganda, porque daí ele transformava esses
documentos como se ele tivesse assentado as famílias, o que não era verdade.
Mas nós, do MST, defendemos a titulação dos assentados. Toda família quer ter
um documento que a proteja, até dos grileiros, ou lhe dê condições de acessar
crédito e ter, digamos, uma autonomia.
A nossa crítica é que a titulação não pode ser o título
de propriedade privada, por duas razões. Primeiro, porque esse título de
propriedade privada que existe na lei vai implicar que, então, o assentado vai
ter que pagar para o Incra. Claro, pode ter uma política de subsídio aí, mas
não tem sentido o assentado pagar pela terra. Até porque, se essa fosse a
solução, então, para que existe reforma agrária? Qualquer pobre poderia comprar
terra.
A nossa defesa é que deve ter um título, pode ser
individual, familiar, porém de concessão real de uso (CRU), que é uma forma
jurídica que nós conquistamos na Constituição, e ele tem uma característica
fundamental. Primeiro, ele é concessão de uso, portanto, o Incra não está
vendendo para o assentado e, portanto, ele não precisa pagar. Mas, na
contrapartida, o assentado não pode vender essa terra, até porque ela é fruto
de uma política pública.
O que o Bolsonaro fez? O Bolsonaro entregou um
documento que não é nenhum nem outro. O documento que ele entregou é tipo um
atestado provisório de que o sujeito é assentado. Mas aquele documento que o
Bolsonaro inventou não pode ser registrado em cartório e nem serve como
garantia em banco. Ele só atesta que você é assentado. Coisa que até o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais faz, esse tipo de documento, na hora que
você se credencia para pegar o talão de produtor, na hora que você tem
credenciamento para aposentadoria. É a mesma coisa que o sindicato faz.
·
O senhor tem falado muito da agroecologia
como uma opção e como um caminho para o MST. Sempre que se fala disso,
questiona-se se é possível conciliar a agroecologia com a produção de alimentos
para atender a sociedade. É esse mesmo o caminho do MST: agroecologia
para conseguir alimentar a população?
Antes, nós só lutávamos pela terra para quem nela
trabalhava, que era uma forma de resolver o problema do pobre do campo. Então,
o Incra, em nome da sociedade, tomava o lote e dizia: “Vá trabalhar, saia da
pobreza com o trabalho”. Agora, isso é insuficiente. Então, nós agregamos dois
novos paradigmas na nossa concepção da reforma agrária. Só tem sentido um
camponês pobre receber terra se ele se comprometer com, primeiro, defender a
natureza.
Ou seja, ele tem que proteger as florestas, ele tem que
reflorestar, ele tem que proteger as nascentes, ele tem que contribuir com a
sociedade para combater as mudanças climáticas, ele tem que se comprometer em
não usar agrotóxico, que é o que mata a biodiversidade. Então, nós dizemos: um
assentado tem que ser, além de agricultor, ele tem que ser zelador da natureza.
Isso é uma mudança na nossa visão do mundo.
A segunda mudança de paradigma é: você tem que se
comprometer a produzir alimentos. Você já vinha produzindo alimentos para sua
família. Agora, nós queremos que você produza alimentos para todo o povo.
Porém, não é qualquer alimento. É um alimento saudável, portanto, sem
agrotóxico. E como é que as famílias vão produzir alimentos saudáveis sem
agrotóxico? Só adotando a matriz, digamos, tecnológica – vamos usar um jargão –
da agroecologia.
Então, a agroecologia é a forma técnica de você
aumentar a produtividade da área, de você aumentar a produtividade da mão de
obra do camponês, e ele produzir alimentos em escala, em abundância, se
quiserem, para ele atender ao mercado interno.
·
O que é preciso para conseguir fazer
isso?
Para você praticar agroecologia em escala, nós
precisamos enfrentar alguns desafios que, infelizmente, o MDA não nos tem
ajudado. Primeiro desafio: nós precisamos produzir as nossas sementes. Nós
temos experiência em produzir sementes de hortaliças, mas nós temos que
produzir grãos: feijão, milho, inclusive soja orgânica, porque tudo isso é
dominado por multinacionais que cobram os olhos da cara e são sementes
transgênicas.
Segundo desafio: nós temos que produzir fertilizante
orgânico em escala. O agricultor, lá com sua família, usa o esterco dos animais,
ele faz algum tipo de compostagem, mas em pequena escala. Você imagina nós, lá
com 6 mil hectares de arroz no Rio Grande do Sul, arroz orgânico. Nós batemos
no teto da produtividade. Agora, nós temos que ter fertilizante orgânico para
colocar nessa lavoura. E como é que se produz para atender 6 mil hectares?
Precisa de muito fertilizante! Então, nós estamos em parceria com a
Universidade da Agricultura da China para trazer a tecnologia deles para cá e
produzir fertilizante orgânico em escala, a partir dos resíduos orgânicos da
CEASA, dos restaurantes e das terras das famílias, se elas conseguirem se
organizar direitinho.
·
Tem mais algum desafio?
O outro desafio que nós temos na agroecologia são as
máquinas agrícolas. Sem máquinas, nós não vamos aumentar a produtividade do
trabalho e das áreas. E, aqui no Brasil, não existe máquina para camponês. E as
que existem são o olho da cara! O trator mais barato, que era da Agralle, valia
R$ 70 mil. Então, nós vamos trazer – estamos fazendo parceria com fábrica chinesa
– para colocar as fábricas aqui, de nossa propriedade. Eles só vão transferir a
tecnologia para nós fazermos pequenos tratores, pequenas colheitadeiras de
grãos e, assim, acelerar o nosso processo.
Nós já estamos testando as máquinas lá no Nordeste.
Doaram 33 máquinas. Está sendo um sucesso. Agora, estão trazendo mais 55
máquinas dentro da Universidade de Brasília para testar no Cerrado e aqui no
Sul.
E o último desafio que nós temos na agroecologia é que
nós temos que montar também agroindústrias cooperativas para poder beneficiar
esses produtos. Porque, se o pequeno agricultor, assentado ou qualquer pequeno
agricultor, só ficar vendendo matéria-prima, ele nunca vai sair da pobreza. Mas
isso tem que ser um programa! Nós estamos lá brigando com o BNDES: “Coloque
dinheiro para agroindústrias cooperativas, senão não tem como desenvolver a
agricultura familiar!”.
·
O discurso agroecológico do MST agradou
parte da população urbana do Brasil. E uma coisa que aconteceu nos últimos anos
é que o boné do MST ficou “pop”. A que o senhor atribui isso?
Isso não foi planejado. Em muitos locais, os bonés não
são feitos por nós, mas por ambulantes, como ocorre com bandeiras e camisetas
de time de futebol. Eu acho que a população da cidade começou a se dar conta de
que nós somos sérios, de que nós queremos produzir alimentos saudáveis, de que
nós adotamos a agroecologia.
E essa prática que nós temos de fazer as feiras da
reforma agrária, onde nós apresentamos a culinária, trazemos os nossos produtos
– praticamente, hoje, tem feira da reforma agrária em todas as capitais do país
–, então, isso vai se transformando em um diálogo com a população da cidade. A
última feira, aqui em São Paulo, teve a participação de 330 mil pessoas.
E eu acho que é uma maneira, no fundo, de todas as
pessoas que têm o mínimo de consciência se engajarem também na luta. Porque, de
certa forma, quem usa o boné do MST está dizendo que apoia a reforma agrária. É
uma maneira, inclusive, de você ampliar o discurso e pressionar o governo,
pressionar os meios de comunicação, que só falavam mal de nós, e assim por
diante.
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Qual é a nota que o senhor dá para o
governo Lula em relação à reforma agrária?
A nota do governo Lula em relação à reforma agrária é
3. Rodaram! Vão ter que repetir as lições. Não vão passar de ano! Espero que,
para o ano que vem, melhore.
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E o senhor acredita que essa dificuldade
do governo pode levar a um aumento das ocupações, principalmente pensando em
abril do ano que vem, no abril vermelho?
O MST sempre adotou, como método de trabalho, um
princípio que é o que nos salvou: a autonomia da nossa base. A direção nacional
é muito mais para dar unidade programática nas ideias, para onde nós vamos como
conjunto do movimento. Agora, nas ações locais, quem decide é quem está lá. A
direção não decide. São eles que têm que julgar o governo. São eles que têm que
tomar as medidas que tomam.
Agora, por exemplo, no Rio Grande do Sul, diante da
ineficácia do governo em resolver o problema dos que foram atingidos pela
enchente, na nossa base, eles acamparam lá no Incra e pressionaram. Eles que
decidiram. Eles que viram quando é que era o melhor momento. Bom, a nossa turma
do acampamento de Paraupebas, no Pará,, percebendo que não havia solução,
ocuparam os trilhos da Vale, até porque a Vale também está em dívida.
Então, a autonomia da nossa base é total. Eles decidem
o que fazer. Eu comento como um analista, e eu digo: é óbvio que, se você não
resolve os problemas, e, lá na base, você tem 90 mil famílias acampadas, é
óbvio que, dia mais, dia menos, essa base vai se mobilizar, vai pressionar,
diante da ineficácia.
Fonte: Repórter
Brasil
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