Como os EUA se
apropriaram do Canal do Panamá e por que tiveram que devolvê-lo nos anos 1990
31 de dezembro de
1999. A bandeira dos Estados Unidos desce e a
do Panamá sobe e tremula como
único emblema da Zona do Canal pela primeira
vez. Os panamenhos comemoram com alegria.
O fim do milênio se
aproxima, e a cena marca o fim de uma era que causou protestos, tensões e
mortes. É a resolução do acordo assinado em 1977 entre o então presidente dos
Estados Unidos, Jimmy Carter, e o líder panamenho, o general Omar Torrijos
Herrera.
O pacto abriu
caminho para devolver o controle do canal estratégico ao país centro-americano.
"Foi
impressionante ver a reação do povo do Panamá. Foi um momento muito delicado e
realmente muito bonito na história moderna", disse Alberto Aleman Zubieta,
que foi administrador do canal durante vários anos, à reportagem.
Hoje, a soberania
da hidrovia interoceânica está mais uma vez no centro das notícias após as
polêmicas declarações do
presidente eleito dos
Estados Unidos, Donald Trump.
"Estamos sendo
enganados no Canal do Panamá", disse Trump no
domingo (22/12),
fazendo alusão às taxas cobradas aos navios americanos.
O político
republicano sugeriu que, se isso não mudar, "exigiremos que o Canal do
Panamá seja devolvido na íntegra aos Estados Unidos, rapidamente e sem
perguntas". Não disse, no entanto, como pretende fazê-lo.
Por sua vez, o
presidente panamenho, José Raúl Mulino, respondeu contundentemente num
comunicado publicado na rede social X: "Cada metro quadrado do Canal
continuará pertencendo ao Panamá".
Mas, voltando ao
passado, como os Estados Unidos se apropriaram da Zona do Canal e o Panamá
conseguiu recuperá-la há 25 anos?
A BBC News Mundo,
serviço em espanhol da BBC, relembra os acontecimentos que levaram ambas as
nações a um acordo sem precedentes sobre a rota interoceânica que reconfigurou
os padrões do comércio regional e global.
·
Uma
guerra civil e uma oportunidade
A necessidade de
construir uma passagem que ligasse o Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico era
algo que preocupava os colonizadores europeus desde o século 16.
Naquela época, o
único acesso que tinham aos mares do sul era o Estreito de Magalhães, no sul do
Chile, o que significava navegar enormes distâncias e enfrentar o perigoso
clima do Cabo Horn.
Foram avaliadas
inúmeras ideias: um canal na Nicarágua, um em Tehuantepec (México), outro
em Darién, na fronteira do
Panamá com a Colômbia, e uma passagem pelo istmo panamenho, que na época era
território colombiano.
Mas nenhuma dessas
ideias se concretizaria até o século 19. A primeira grande aposta ocorreu em
1880, quando a Colômbia concedeu a concessão para a construção do canal a
Fernando de Lesseps, engenheiro francês que havia construído o Canal de Suez, no Egito.
Mas as doenças dos
trabalhadores, muitos deles africanos escravizados, a umidade do território e
as chuvas constantes levaram o projeto à falência.
É aí que o
interesse dos Estados Unidos por essa rota marítima se junta à dificuldade do
Estado colombiano em ter o controle do seu território.
A Colômbia emergia
de uma guerra civil que havia deixado milhares de mortos e enfrentava elevados
níveis de tensão política, o que acabaria por abrir caminho à independência do
Panamá.
Naquela época, os
Estados Unidos eram uma potência emergente que mantinha o controle de Porto Rico e Cuba - e
souberam ler a crise interna colombiana como uma grande oportunidade:
propuseram pagar 40 milhões de dólares para ter a concessão para a construção
do canal.
Esse acordo
materializou-se com o tratado Herrán-Hay entre a Colômbia e os Estados Unidos,
que estabeleceu as diretrizes da licitação e foi acordado entre o secretário de
Estado norte-americano, John Hay, e o ministro colombiano Tomás Herrán.
Foi uma negociação
complexa na qual cogitaram construir o canal na Nicarágua, mas também tinham
que levar em consideração que os franceses já haviam feito um investimento
inicial no Panamá.
Por fim, ficou
decidido que o canal seria construído no Panamá com capital dos Estados Unidos,
que, por sua vez, pagariam à Colômbia e à empresa francesa.
Mas, no dia 5 de
agosto de 1903, o governo colombiano, depois que o Congresso se opôs a vários
pontos do acordo, alegando que o texto violava a soberania do país, informou
que o rejeitava.
Esta última decisão
da Colômbia levou à separação do Panamá.
"Quando a
Colômbia rejeita o tratado Herrán-Hay, e havia boas razões para rejeitá-lo,
vários fatores se combinam a favor da independência do Panamá da
Colômbia", disse a historiadora panamenha Marixa Lasso à BBC Mundo.
Finalmente, os
Estados Unidos encontraram neste descontentamento panamenho "uma excelente
oportunidade para obter o tratado que desejavam sem a interferência da
Colômbia".
E foi então que o
Panamá ignorou a rejeição do tratado e, em aliança com os Estados Unidos — que
disseram que iriam intervir se houvesse retaliação militar da Colômbia — declarou
sua independência no dia 3 de novembro de 1903.
Um país dividido e
o início das tensões
Após a
independência do Panamá, ambas as nações assinaram o tratado Hay-Bunau Varilla
durante a presidência de Theodore Roosevelt, nos Estados Unidos.
Nesse pacto, os
Estados Unidos garantiam que manteriam a independência do Panamá desde que o
país concedesse a concessão perpétua do canal, além do domínio da chamada Zona
do Canal, que incluía 8 km de cada lado da via estratégica.
O Panamá receberia
US$ 10 milhões como compensação.
Concluída a obra,
em 1913, o barco a vapor Ancón tornou-se a primeira embarcação do tipo a cruzar
as suas águas, constituindo-se como um símbolo da sua abertura ao mundo.
Mas as tensões não
demorariam a aparecer.
Na prática, o país
estava fisicamente dividido em dois. Milhares de americanos e suas famílias
viviam na área sob suas próprias leis e costumes enquanto trabalhavam no canal,
que foi formalmente inaugurado em 1914.
Os
"zoneítas" (de zonians, em inglês) viviam praticamente isolados
e sem contato com a população panamenha, que não podia acessar aquele
território sem autorização especial.
O ressentimento dos
panamenhos contra os privilégios dos zoneítas aumentou ao longo dos anos, até
que décadas mais tarde começaram os protestos para recuperar o controle do seu
território.
E há dois marcos
que seus protagonistas lembram como fundamentais.
Uma delas é a
"Operação Soberania" de 1958, na qual um grupo de estudantes
universitários surpreendeu a polícia da Zona do Canal ao entrar para "plantar"
pacificamente 75 bandeiras panamenhas.
"Isso marcou o
novo rumo das negociações do canal, porque a partir daquele momento derrotamos
a agressão psicológica que os EUA realizavam no Panamá desde 1903", disse
Ricardo Ríos Torres, um dos líderes dessa manifestação, à BBC Mundo em 2019.
"Disseram-nos
que este não era um território de acesso para os panamenhos. Naquele dia,
dissemos que não tínhamos mais medo e que queríamos um novo tratado que
acabasse com a perpetuidade da presença colonial."
O outro acontecimento
que influenciou o caminho para a recuperação da hidrovia interoceânica foi a
Marcha Patriótica de 1959, na qual o povo panamenho foi convidado a entrar na
Zona do Canal portando sua bandeira.
Esta marcha também
começou de forma pacífica, mas, quando o governador da Zona do Canal proibiu a
entrada de manifestantes, ocorreram confrontos entre panamenhos e policiais -
dezenas de pessoas ficaram feridas.
Ambas as
mobilizações foram a origem de uma frase que mais tarde se tornaria popular no
Panamá: "Quem semeia bandeiras colhe soberania".
·
Dia
dos Mártires
Esses
acontecimentos históricos desencadearam mais mobilizações nos anos seguintes.
A população
panamenha não estava disposta a recuar nas suas exigências e era cada vez mais
evidente que o governo dos EUA não podia fazer ouvidos de mercador aos
protestos.
Assim, as
negociações lentas culminaram num acordo em 1962 entre o presidente panamenho
Roberto Chiari e o americano John F. Kennedy, graças ao qual se
estabeleceu que as bandeiras de ambos os países deveriam hastear nas áreas
civis da Zona do Canal.
Mas quando chegou o
dia 1º de janeiro de 1964, data em que o acordo entraria em vigor, os zoneítas
ignoraram as ordens do próprio governador da Zona do Canal e recusaram-se a
hastear a bandeira do Panamá.
As autoridades da
região nada fizeram a respeito, e a notícia irritou os panamenhos.
No dia 9 de janeiro
daquele ano, dezenas de estudantes do Instituto Nacional do Panamá dirigiram-se
à Zona do Canal carregando a bandeira de sua escola para que também pudesse ser
hasteada no Colégio Balboa, instituição mantida pelos americanos.
Mas alguns
policiais americanos os impediram, e o confronto terminou na violação da
bandeira panamenha. A atmosfera de tensão era total.
O dia terminou com
mais de 20 manifestantes mortos e centenas de feridos no que é conhecido como
"Dia dos Mártires".
Esse fato,
concordam todos os analistas, foi o grande gatilho para que o Canal do Panamá
acabasse por ser transferido para mãos panamenhas mais de 35 anos depois.
A dureza da
resposta do Exército americano às mobilizações levou o então presidente do
Panamá, Roberto Chiari, a anunciar que o país estava interrompendo as relações
diplomáticas com Washington até que um novo tratado fosse assinado entre os
dois países.
Esta decisão - sem
precedentes para um país onde os EUA estavam presentes - é o que fez com que,
ainda hoje, muitos se refiram a Chiari no Panamá como "o presidente da
dignidade".
A pressão
internacional foi decisiva para que os Estados Unidos concordassem em negociar.
·
O
acordo Torrijos-Carter
Após aquele janeiro
sombrio, em 3 de abril de 1964 começaram as conversas entre os Estados Unidos e
o Panamá.
Ambos países se
comprometeram a nomear embaixadores especiais para conduzir um diálogo tenso.
"Não havia
volta atrás. O Panamá só aceitaria um novo tratado. O presidente Carter
compreendeu isso, e foi assim que os Estados Unidos acabaram assinando o
acordo. A população panamenha estava convencida de que era necessário eliminar
aquele enclave colonial e reivindicar o que era nosso", disse o líder
manifestante Ríos Torres à BBC Mundo em 2019.
"Ou entregavam
o canal, ou simplesmente desapareciam."
No entanto, foi
necessário esperar 10 anos até que, sob o governo de Richard Nixon, fosse
assinada, na Cidade do Panamá, uma declaração conjunta entre o secretário de
Estado dos EUA, Henry Kissinger, e o chanceler panamenho, Juan Antonio Tack.
Naquele momento, já
estava claro para ambas as partes que, antes de tudo, era preciso revogar o
Tratado Hay-Bunau-Varilla, que havia concedido os direitos do canal aos Estados
Unidos, além de encerrar sua jurisdição no país centro-americano.
E essa seria a base
para o acordo que, três anos depois, seria assinado por Jimmy Carter e Omar Torrijos.
O tratado, firmado
na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, no dia 7 de
setembro de 1977, contemplava a celebração de dois pactos: o Tratado de
Neutralidade e o Tratado do Canal do Panamá.
Em termos simples,
neles ficou acordado que a soberania da Zona do Canal estaria sujeita à
legislação panamenha e se estabeleceu uma data para a transferência do domínio
da via interoceânica ao país centro-americano: 31 de dezembro de 1999.
Para Carter, com a
devolução do canal aos panamenhos, os americanos demonstraram que "como um
país grande e poderoso, somos capazes de tratar de forma justa e honrosa com
uma nação soberana, orgulhosa, mas menor".
Em sua opinião,
esse marco selava "um novo sentimento de confiança mútua e respeito pelos
Estados Unidos" entre os países latino-americanos, conforme informou, na
época, o jornal The New York Times.
Suas palavras, após
a assinatura dos tratados Torrijos-Carter, também buscavam acalmar as águas
internas. Nos Estados Unidos, principalmente entre os setores conservadores,
havia uma forte resistência em ceder a jurisdição que o país exercera por quase
um século.
"Não somos
proprietários da Zona do Canal do Panamá, nunca tivemos soberania sobre ela. Só
tivemos o direito de utilizá-la", disse Carter.
Suas palavras
encontraram eco no Senado americano, que, posteriormente, ratificaria o pacto e
selaria os destinos do canal.
O mesmo fizeram os
panamenhos. Torrijos submeteu os tratados a plebiscito e obteve amplo apoio.
·
A
devolução
Após um período de
transição, a poucos dias da virada do século, autoridades de todo o mundo
chegaram ao Panamá para participar da cerimônia oficial do que já se tornara um
sonho histórico para seus habitantes.
No dia 14 de
dezembro, realizou-se um primeiro evento, em Miraflores, uma das comportas do
canal.
A cerimônia, que
reuniu cerca de 1,5 mil convidados, contou com a presença de mandatários e
delegações de países como Colômbia, Equador, Costa Rica, México e Bolívia. A
eles também se juntaram o rei Juan Carlos I da Espanha e o próprio Jimmy
Carter.
O porte da
delegação americana — presidida pelo secretário de Comércio e Transporte,
William Daley — e a ausência do presidente em exercício, Bill Clinton, no
entanto, não passaram despercebidos pelo governo panamenho, liderado na época
pela presidente Mireya Moscoso.
A líder inclusive
transmitiu seu desconforto aos enviados especiais dos jornais mais importantes
do mundo que foram cobrir o momento histórico.
Mas nada disso
ofuscou o que seria vivido após o meio-dia do dia 31 de dezembro. Com telões em
vários pontos da cidade e um relógio em contagem regressiva, os panamenhos
acompanharam ao vivo a devolução definitiva da via interoceânica.
Foi Mireya Moscoso
quem hasteou a bandeira panamenha naquele dia no Edifício da Administração do
Canal, selando assim a transferência, que ratificou junto ao secretário do
Exército dos Estados Unidos, Louis Caldera.
"Panamá, o
canal é dos panamenhos", disse a presidente naquele dia, conforme
reportado pela agência Associated Press. "O Panamá finalmente alcança a
plenitude de um Estado soberano".
Cantou-se o hino
nacional, houve celebração e até fogos de artifício.
"Neste dia,
atingimos a maioridade como nação", afirmou Moscoso em seu discurso,
destacando que, a partir daquele momento, os panamenhos assumiam uma nova
tarefa: gerenciar "de maneira eficiente, como uma questão de Estado e
livre de interesses políticos" o Canal do Panamá.
Fonte: BBC News
Mundo
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