Com Argentina
'insustentável', estudantes de medicina voltam ao Brasil com esperança de concluir
o curso
Reajustes
constantes no valor das mensalidades, aumento no curso de vida e cobranças de
aluguel em dólar são algumas das mudanças que fizeram com que estudar no país
vizinho deixasse de ser vantajoso para jovens brasileiros.
##
Danilo*
chegou à Argentina em 2022, aos
25 anos. Ele diz que tudo parecia um sonho, até se tornar um pesadelo neste
ano, seu terceiro no país.
“O
custo de vida se tornou insustentável, a mensalidade da universidade foi
aumentando mês a mês e eu precisei gastar cada vez mais com moradia,
transporte, alimentação e até material para a universidade”, diz ele, que hoje
tem 28 anos.
O
jovem lembra que, até 2023, seus gastos mensais, convertidos
em reais, ficavam em torno de R$ 3,5 mil, incluindo a mensalidade da
faculdade. Em
setembro deste ano, ele já gastava quase o triplo.
Em
outubro, Danilo arrumou as malas e voltou para o Brasil.
Casos
como o de Danilo se tornaram comuns ao longo deste ano. Até 2023, a Argentina
era um dos principais destinos escolhidos por brasileiros que queriam cursar
medicina no exterior. Em 2022, mais de 20 mil brasileiros estudavam medicina no
país vizinho, segundo um relatório argentino do Ministério do Capital Humano.
No
entanto, dezenas de brasileiros estão voltando para o Brasil ou se transferindo
para outros países, especialmente o Paraguai.
O
principal motivo é o aumento de preços alavancado pelas políticas econômicas do
presidente argentino Javier Milei, que impactou todos os setores do país,
inclusive o de aluguéis e o de educação.
·
Saindo
da Argentina
Muitos
dos brasileiros que estudavam na Argentina confiavam na desvalorização
do peso argentino com relação ao real, e na
estabilidade dos preços de serviços e custo de vida em
geral no país.
Isso
era necessário porque muitos deles ainda mantinham algum vínculo empregatício
no Brasil e recebiam em real ou porque recebiam auxílio financeiro da família
que havia permanecido no país.
E, por algum tempo,
mesmo com o aumento de preços no início do governo Milei, o cenário ainda era
viável, já
que os gastos totais, incluindo mensalidade das universidades privadas, ficavam
abaixo de muitos cursos
de medicina privados no Brasil, que podem chegar a custar quase R$ 16 mil por
mês.
No
entanto, muita coisa mudou de lá para cá:
·
As
universidades passaram a reajustar os preços mensalmente e de maneira
imprevisível. Se, em um mês, o aluno pagou R$ 1,2 mil, no outro poderia pagar
R$ 1,8 mil, R$ 2 mil ou mais, sem controle ou aviso prévio.
·
O
preço do aluguel disparou, e muitos locatários passaram a cobrar o
valor em dólar, para contornar a baixa do peso argentino, e com contratos de
apenas 3 meses, com aumentos frequentes.
·
Houve
um aumento nos casos de xenofobia, segundo brasileiros, e frases como “se
está achando que aqui está ruim, então volta para o Brasil”, “se a faculdade
aqui está cara, vai estudar em uma particular do Brasil”, se tornaram mais
comuns.
Tudo
isso, somado à pressão de estar um país diferente, falando
outro idioma e ficando longe da família,
contribuiu para que muitos brasileiros decidissem voltar para o país.
·
De
volta ao Brasil. E agora?
Voltar
para o Brasil pode significar uma oportunidade de
continuar o sonho da medicina. É o que acredita o mineiro
Bruno*, de 33 anos.
Ele
voltou ao país após concluir o 5º ano de medicina pela Universidad Abierta
Interamericana (UAI). Mesmo faltando um ano para concluir o curso, ele avaliou
que voltar era a melhor alternativa.
Para
ter a chance de concluir o curso no Brasil, Bruno fez o vestibular de uma
universidade privada do interior de São Paulo. Já aprovado, ele agora luta para
conseguir a documentação necessárias da universidade argentina para eliminar as
disciplinas que já cursou.
Para
Marcela*, de 32 anos, o retorno tem um sabor mais agridoce. Ela conta que os
quase 6 anos que passou na Argentina deixaram marcas psicológicas profundas, e retornar
para seu país natal foi uma maneira de autocuidado.
"Eu
voltei em outubro para o Brasil, faltava só um ano para eu me formar, mas além
da questão financeira, voltei também por minha saúde mental. Lá, infelizmente,
sofremos muita xenofobia, discriminação, inclusive na faculdade, e aguentar
tudo isso por anos longe da família não é fácil", confidencia.
Já
formada em administração de empresa, a potiguar agora espera poder retomar os
estudos e concluir sua gradação dos sonhos.
"Quero
tentar me transferir para alguma universidade daqui, fazer um financiamento se
for preciso, e terminar. Porque hoje, lá, quem faz uma [universidade]
particular gasta, ao todo, cerca de R$ 7 mil, R$ 8 mil, e a esse preço, a gente
faz um esforço e estuda no nosso país", avalia.
Tanto
Bruno quanto Marcela já desapegaram da ideia de estudar fora, e mesmo que a
condição econômica da Argentina voltasse a ficar favorável para os brasileiros,
eles acreditam que não voltariam.
Hoje,
se alguém me diz que quer estudar medicina na Argentina, eu falo para pensar
duas vezes. Falo que Buenos Aires é uma cidade maravilhosa, que o ensino é
muito bom, porém, com essa questão financeira, não acho que vale mais a pena. — Bruno, estudante de medicina que voltou ao Brasil.
·
Transferência
não é fácil
Apesar
da esperança que voltar ao Brasil dá a muitos estudantes, o processo de
transferência para instituições nacionais não é simples. O pricipal desafio é
conseguir o acesso rápido à documentação que comprova quais disciplinas foram
estudadas até ali.
Esse
documento é importante pois, sem ele, o candidato que tentar transferir o curso
para o Brasil pode precisar reiniciar a graduação. Em contrapartida, com a
documentação, é possível que o estudante elimine algumas disciplinas. Quase
sempre, há algum prejuízo de tempo de pelo menos um semestre, mas é a melhor
solução.
Atualmente,
segundo estudantes ouvidos pelo g1, o tempo
mínimo informado pelas universidades para envio deste documento é de 6 meses,
podendo passar de um ano. A informação teria sido confirmada pelo Ministério da
Educação argentino, que teria justificado como "demanda muito alta".
O g1 procurou
a pasta e universidades argentinas para confirmar o período de espera, mas não
obteve resposta até a publicação da reportagem.
Para
tentar reduzir o tempo de espera pela documentação, muitos estudantes estão
entrado com representação judicial contra as universidades.
·
Por
lá, o desafio continua
A
estudante Ana Clara Gazoli, de 21 anos, conitinua na Argentina, apesar das
dificuldade de permanência para os brasileiros. Ela conta que até pensa em
voltar para o Brasil e terminar o curso por aqui, mas ainda não conseguiu levar
o plano para a frente por questões burocráticas que envolvem o filho de 10
meses.
O
que pesou na escolha de Ana Clara Gazoli, de 21 anos, estudar medicina na
Argentina foi o valor das mensalidades e o reconhecimento internacional da
qualidade dos cursos da área no país.
Ela
começou o curso pela Universidade de Buenos Aires (UBA), uma instituição
pública, mas optou por se transferir para a universidade privada Maimónides,
onde precisou reiniciar o curso de ingresso, também chamado de pré-grad.
Quando
começou na Maimónides, as mensalidades ficavam cerca de R$ 1,5 mil. Agora, ao
final do 2º ano do curso, ela paga quase R$ 4 mil.
O
custo aqui está um absurdo. Quando cheguei na Argentina, eu gastava R$ 2 mil em
média e conseguia ‘luxar’ pagando aluguel, pagando convênio, conseguia sair e
fazer bastante coisa; Hoje em dia, só com aluguel, pago R$ 4 mil, sem falar em
internet, gás, luz e outras necessidades. — Ana Clara, brasileira
estudante de medicina na Argentina.
Agora,
mais do que nunca, Clara conta que precisa da ajuda do pai para permanecer no
país. "Eu trabalho, mas o que ganho é para manter o meu filho. Quem me
mantém aqui é meu pai", diz ela.
E,
apesar de as universidades argentinas continuarem entre as mais reconhecidas do
mundo, a jovem avalia que vale a pena para poucos.
"Se
a pessoa quer sair de casa, estudar em outro país, conhecer outras culturas,
conhecer outras pessoas, sair de onde vive, mas tem condições, venha. Vem e vai
ser incrível. Porém, se a pessoa está vindo pensando na questão financeira,
econômica, não vale a pena, não está valendo a pena estar na Argentina. Não
mais", conclui.
*Estudante
pediu para não ser identificado por medo de retaliação.
Fonte: g1
Nenhum comentário:
Postar um comentário