Partido de Sahra Wagenknecht, na Alemanha,
é mau exemplo para a esquerda
O bom desempenho da
Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) nas últimas eleições regionais da Alemanha
chamou atenção da esquerda no nível internacional. Com sua liderança homônima,
a ex-porta-voz do Die Linke, a BSW angariou mais de 10% de apoio nos estados da
Saxônia, Turíngia e Brademburgo e agora pode até entrar no governo nessas três
regiões no leste do país.
Mas se esse novo
partido que se autointitula de “esquerda conservadora” está conquistando
relativo sucesso eleitoral — superando os antigos companheiros do Die Linke —,
seria esse um bom exemplo para partidos de esquerda de outros lugares? Em uma
palavra: não. A BSW copia tanto a estrutura política quanto as principais
propostas políticas da extrema direita e da direita, sobretudo no tema da
migração, mas também em áreas como economia, clima e liberdade de expressão.
Crescimento eleitoral,
mas sem parar a extrema direita
Não há dúvida do
avanço eleitoral em si. As eleições europeias de junho viram a primeira
participação da BSW em um pleito, alcançando 6,2% dos votos — desempenho melhor
que tanto o Die Linke quanto o neoliberal Partido Democrático Liberal (FDP, na
sigla em alemão), menores legendas do governo nacional do chanceler Olaf
Scholz.
A líder da BSW,
Wagenknecht, já foi uma das figuras de maior visibilidade do Die Linke, mas
fazia críticas frequentes à liderança do partido. Ela atacava sobretudo a
guinada ecológica da agremiação, seu apoio à política de portas abertas para a
imigração implementada por Angela Merkel em 2015 e 2016 e a posição do partido
sobre a pandemia, ecoando, por sua vez, uma visão cética sobre a vacina. Depois
do fracasso do breve “movimento” Aufstehen (“Levantar-se”) promovido por
Wagenknecht em 2018, a veterana da política acabou rompendo com o Die Linke,
levando com ela boa parte das lideranças e parlamentares do partido.
O nascimento da BSW
foi acompanhado de considerável atenção midiática, também
motivada pela esperança de que a legenda
ajudaria a interromper a ascensão do partido de extrema direita “Alternativa
para a Alemanha” (AfD, na sigla em alemão). Infelizmente, essas previsões não
se concretizaram. Na verdade, a AfD venceu as eleições na Turíngia e ficou em
segundo em uma disputa apertada na Saxônia e em Brandemburgo, alcançando, no
limite, os melhores resultados de sua história.
Ainda assim, o
eleitorado da BSW parece vir de outros campos. Pesquisas realizadas após
a eleição mostraram que a principal fonte de votos da BSW na Turíngia e na
Saxônia foi o Die Linke, que já estava mergulhado em uma crise muito antes de
Wagenknecht decidir romper com o partido. Fundado em 2007 na esteira da guinada
neoliberal do Partido Social-Democrata (SPD, na sigla em alemão) e com
profundas raízes nos movimentos sociais, o Die Linke derreteu nas eleições de
2021. Durante a campanha daquele ano, o partido de esquerda parecia estar mais
concentrado na formação de uma coalizão com o SPD e os Verdes (Die Grünen) do
que em buscar explicar a própria plataforma. A guerra na Ucrânia agravou ainda
mais a disputa interna já existente no Die Linke, opondo, de um lado, a
liderança que apoiava o alinhamento do governo de coalizão com Kiev e, de
outro, a ala de Wagenknecht, que expressava crescente objeção a esse
posicionamento.
As críticas às sanções
contra a Rússia e o apoio militar de Berlim à Ucrânia, foi, com efeito, um dos
elementos que mais atraiu eleitores para a plataforma da BSW: Wagenknecht
convenceu uma parcela considerável do eleitorado de que a posição do governo a
favor da Ucrânia é um desastre para a economia alemã, que depende em grande
medida do gás russo. Nesse sentido, Wagenknecht conseguiu copiar a AfD, até
então único partido a criticar abertamente as sanções contra a Rússia e o apoio
militar a Kiev. Esse também foi um dos motivos para o crescimento eleitoral da
extrema direita, sobretudo na antiga região Oriental.
Mas Wagenknecht não
conseguiu atrair muitos dos eleitores da AfD nas eleições regionais de
setembro. A BSW conquistou mais apoio entre antigos
eleitores do Die Linke, dos Democratas Cristãos, do SPD e de pessoas que se
abstinham de votar do que entre o antigo eleitorado da extrema direita. Esse
partido, portanto, representou muito mais uma reordenação de um eleitorado
amplo da esquerda do que um rival para a AfD.
·
Um ordoliberalismo de esquerda
Amaior parte da
energia por trás das críticas à esquerda do BSW se refere às posições do
partido com relação à imigração. Mas há outros motivos para considerar essa
nova legenda uma ameaça, e não uma oportunidade para a esquerda radical.
O primeiro são as
posições econômicas de Wagenknecht. O partido herdou do Die Linke posições de
esquerda sobre taxação e o controle de empresas estratégicas pelo Estado e os
trabalhadores. Além disso, Wagenknecht tece uma crítica necessária à natureza
neoliberal da União Europeia: ela já censurou o chamado Pacto de Estabilidade e
Crescimento — que impede o investimento público — e defende a eliminação de
paraísos fiscais, efetivamente tolerados pela UE mesmo dentro de suas
fronteiras. Mas não é só isso. A ex-comunista Wagenknecht elogiou representantes
das restrições orçamentárias ordoliberais, como o conservador Ludwig Erhard.
Sua admiração pela versão alemã do
neoliberalismo se traduz em um discurso econômico em que o principal sujeito
não é a classe trabalhadora, mas pequenas e médias empresas (chamadas de Mittelstand).
“Elas têm sua própria
cultura empresarial, com foco no longo prazo, na próxima geração, e não nos
retornos trimestrais. Estão integradas nas comunidades locais, muitas vezes
fazendo negócios entre empresas”, afirmou Wagenknecht em uma entrevista recente à New
Left Review. Para essa antiga integrante do Partido da Unidade Socialista
(SED, na sigla em alemão), “o que importa na Alemanha é a Mittelstand,
o forte bloco de empresas menores que podem se posicionar para enfrentar as
grandes corporações. Essa oposição é tão importante quanto a polaridade entre
capital e trabalho”.
Essa visão é, com
certeza, diferente da retórica “social” própria do Die Linke, cuja premissa são
os interesses das pessoas de baixa renda. Ainda assim, a linha da BSW também
reverbera com uma certa tradição da Alemanha Ocidental do pós-guerra, que colocou
a classe média como pivô da democracia e do chamado sistema social de mercado.
Por falta de um movimento de trabalhadores e trabalhadoras forte e combativo,
essa visão idealizada de consenso social construída em torno de pequenas
empresas parece conseguir atrair partes da própria classe trabalhadora e,
notadamente, muitos antigos eleitores dos partidos Social-Democrata e Democrata
Cristão. Mas a BSW não está enfrentando essa ideologia de aliança entre
classes, mas sim ativamente promovendo-a.
A nova formação
política também está longe da esquerda quando o assunto é política climática.
O programa da BSW afirma
que espera atingir a neutralidade climática por meio do “desenvolvimento de
tecnologias inovadoras importantes”, enquanto sua plataforma para as eleições
europeias defende o desenvolvimento de “combustíveis neutros para o clima”.
Ainda assim, a debilidade do compromisso ambiental de Wagenknecht se confirma
na posição de seu partido contra o abandono de motores de combustão
interna até 2035 (conforme plano atual da UE).
A posição dela se
relaciona com uma forte antipatia pelos Verdes, principais representantes, para
Wagenknecht, do liberalismo progressista que ela busca combater. Sem dúvida, a
deriva neoliberal e militarista do partido verde alemão já distanciou, há muito
tempo, a legenda da esquerda. Mas dificilmente se poderia concluir que a agenda
verde individualista voltada para o consumidor seja de fato o limite do clamor
por justiça climática. A BSW, no entanto, não demonstra nenhum interesse de
desenvolver um ambientalismo socialista.
·
“Minorias bizarras”?
Um dos eixos
programáticos da BSW é a “liberdade de expressão”, demanda clássica da
esquerda. No entanto, na insistente retórica da BSW, a grande ameaça é a
“cultura de cancelamento” da esquerda. O programa eleitoral do partido denuncia
um “progressivo estreitamento do campo autorizado de expressão”, enquanto no
livro Die Selbstgerechten (“Os farisaicos”, em tradução
livre), Wagenknecht denuncia os progressistas preocupados com as “minorias cada
vez menores e mais bizarras”, contra as quais advoga pela “normalidade”.
O programa da BSW tem
o intuito de combater um “novo autoritarismo político que se arroga o poder de
educar as pessoas e regular sua forma de viver ou sua linguagem”, enquanto sua
líder adota em seu livro a retórica da direita sobre uma “teoria de gênero
liberal de esquerda”, que despreza as lutas feministas e queer.
Ao opor a defesa das
minorias à defesa do povo, Wagenknecht ignora que a esquerda tem muitas vezes
combinado as duas coisas ao longo da história. Com efeito, lideranças
populistas de esquerda do período recente, como Bernie Sanders, Jeremy Corbyn e
Pablo Iglesias, fazem isso muito bem. Os comentários de Wagenknecht, ao
contrário, apresentam ameaças à liberdade de expressão de maneira quase
indistinguíveis daquelas vindas da extrema direita, e não um ataque às
políticas realmente graves de Estados e monopólios digitais.
Ainda mais preocupante
é a proximidade da BSW com a AfD no tema da migração. Wagenknecht concorda com
a extrema direita ao apontar para a chegada de trabalhadores estrangeiros como
um grande problema social. Vale admitir que esse enquadramento também foi
adotado por partidos do governo federal (SPD, os Verdes e o FDP), que
recentemente anunciaram a adoção de controles nacionais das fronteiras e restrições ao direito de asilo. Wagenknecht tentou dar
uma base social a sua oposição à imigração, argumentando no livro Die
Selbstgerechten que os imigrantes “concorrem diretamente pelos
empregos dos alemães”, reduzindo o nível dos salários e aumentando o valor dos
aluguéis. Essa retórica supõe inevitável o enquadramento liberal de oferta e
demanda, em vez de defender com veemência políticas públicas fortes para
limitar o preço dos aluguéis e aumentar os salários. Talvez a rendição de
Wagenknecht à mão invisível do mercado tenha a ver com sua admiração pelos
fundadores do ordoliberalismo alemão.
Acompanhando um
diagnóstico que culpa a população migrante pelas desigualdades que são
essenciais ao capitalismo neoliberal, o programa europeu da BSW defende “o fim
da imigração descontrolada para a UE”, retórica indistinguível daquela da
extrema direita, e se traduz na proposta de transferir os procedimentos de
solicitação de asilo para fora das fronteiras europeias – exatamente o mesmo
argumento da AfD. Wagenknecht definiu a política de “fronteiras
abertas” como “o vazio das políticas imigratórias neoliberais”. Na verdade, a
neoliberal União Europeia fez exatamente o oposto: reforçou as barreiras de
suas fronteiras externas, o que levou à morte mais de 30 mil pessoas no
Mediterrâneo na última década. No programa da BSW, não há nenhum traço de
formulação de políticas para abrir rotas legais e seguras para a migração, um
vácuo compartilhado tanto com a extrema direita quanto com os grandes partidos
europeus.
Ainda que Wagenknecht
declare oposição ao racismo, sua retórica por vezes pende para a xenofobia,
como quando exclamou: “A Alemanha está sobrecarregada, a Alemanha não tem mais
espaço.” O programa eleitoral da BSW para a UE alegou que, na França e na Alemanha,
existem “sociedades paralelas influenciadas por islamistas” em que “as crianças
crescem odiando a cultural ocidental” – descrição alarmante que parece copiada
do manual de estratégias de Marine Le Pen. A líder da BSW também recorreu ao
que acadêmicos chamam de “femonacionalismo”, apresentando o patriarcado como um
fenômeno meramente importado de fora para a Alemanha: “As mulheres no nosso
grupo [BSW] particularmente estão felizes de viver em um país que, em grande
medida, superou o patriarcado, e elas não querem vê-lo reintroduzido pela porta
dos fundos” – ou seja, pela imigração.
A intenção de
Wagenknecht de atrair os eleitores da AfD se traduz em uma atitude mais
cuidadosa com relação ao partido xenofóbico. A líder do BSW se recusou a
participar das grandes manifestações antifascistas realizadas neste ano, e se
recusou também a definir a AfD como extrema direita, apesar de ser um rótulo
amplamente aceito. A brandura da ex-comunista para com a AfD rendeu a ela em
2022 a capa da Compact, revista conservadora aberta a algumas
formas de social-democracia, e um convite para se unir ao partido vindo de
Björn Höcke, liderança da legenda na Turíngia.
·
Enquadramento de extrema direita favorece a
extrema direita
Uma análise das
propostas e discursos de Wagenknecht mostra que ela, em grande medida, copiou o
enquadramento político da extrema direita. O “conservadorismo de esquerda” que
ela quer representar esconde a contradição entre capital e trabalho em uma amálgama
de diferentes classes, apresenta a diversidade social como ameaça e divide a
classe trabalhadora ao retratar a população de origem estrangeira
principalmente como migrante, não como trabalhadora. Com essa base, a BSW não
enfrentará nem rivalizará com a ascensão de ideias de extrema direita na
Alemanha, mas sim as alimentará.
A BSW tece uma crítica
necessária à arquitetura neoliberal da UE e é uma voz poderosa contra a Otan e
o crescente militarismo europeu. Mas a adoção das linhas divisórias da extrema
direita impede o partido de Wagenknecht de se tornar uma inspiração valiosa
para a esquerda em outros países. A sigla está longe do exemplo político da
França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, que levou a esquerda a uma vitória histórica ao
atrair explicitamente o eleitorado de origem estrangeira e enfrentar
abertamente as políticas xenofóbicas e antissociais de Le Pen e Emmanuel
Macron. Sua trajetória nos mostra que não é necessário se render à visão de
sociedade da extrema direita para vencer.
¨ Maioria na Alemanha quer novas eleições, diz pesquisa
Os alemães parecem ter
perdido a paciência com a crise permanente de
seu governo – uma coalizão liderada pelo chanceler federal e social-democrata Olaf
Scholz, ao lado de verdes e liberais, e que nos
últimos meses se notabilizou mais por suas fraturas internas que pela
convergência sobre quais rumos o país deve tomar.
Pela primeira vez
desde a ascensão de Scholz ao posto, em dezembro de 2021, uma maioria de 54%
dos eleitores afirma querer antecipar as eleições para o Parlamento, marcadas
para daqui a 11 meses.
O apoio a novas
eleições chega a 93% entre simpatizantes do partido de ultradireita Alternativa
para a Alemanha (AfD) e a 75% entre apoiadores da sigla
populista de esquerda Aliança Sahra Wagenknecht (BSW).
Entre os eleitores da
principal força de oposição, os conservadores da aliança CDU/CSU, o índice chegou a 69%.
Os números são de
pesquisa ARD-Deutschlandtrend divulgada nesta quinta-feira (31/10).
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Popularidade em queda livre
O atual governo de
coalizão nunca foi tão impopular: tem 14% de aprovação, cinco pontos
percentuais a menos que no início de outubro.
Os que desaprovam ou
estão pouco satisfeitos com o governo somam 85%, sendo que a desaprovação
sozinha aumentou oito pontos percentuais em relação à última pesquisa.
O eleitorado se diz
insatisfeito com a política orçamentária e econômica do governo (83%) – o
ministro da Economia é o verde Robert Habeck, enquanto
o Ministério das Finanças é tocado pelo liberal Christian Lindner.
O índice de aprovação
do próprio Scholz é de 19% – igual ao de Lindner e muito próximo de Habeck, que
caiu oito pontos percentuais e foi a 20%.
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Sistema prevê novas eleições em caso de impasse político
A Alemanha tem um sistema parlamentarista de governo e, por isso, em casos de sério impasse político, é
possível convocar novas eleições para reequilibrar a correlação de forças no
Bundestag, a câmara baixa do Parlamento, e nomear um novo chanceler federal.
Foi o que aconteceu em
2005 no governo de Gerhard Schröder, uma coalizão entre social-democratas e
verdes que chegou a 11% de aprovação, e que foi dissolvida um ano antes do
previsto.
A julgar pelos
resultados da pesquisa, porém, parece improvável que a atual crise possa ser
resolvida com novas eleições.
O cenário político
está fragmentado, o que dificulta a formação de maiorias no Parlamento. Outro
elemento complicador é o sucesso cada vez maior da AfD,
com quem os demais partidos, até agora, têm se recusado a se aliar no nível
federal.
A pesquisa aponta o
favoritismo da aliança conservadora CDU/CSU, que governou o país por 16 anos
antes de Scholz, com 34% das intenções de voto. A AfD tem 17% e o SPD, dos
social-democratas, 16%. Logo atrás vêm os verdes, com 11%, e a BSW, com 6%. Os
liberais do FDP, com 4%, não superariam a cláusula de barreira. Outras siglas
nanicas somam 12%. A pesquisa ouviu 1.333 eleitores entre os dias 28 e 30 de
outubro.
Fonte: Por Pablo
Castaño, com tradução Aline Scátola, em Jacobin Brasil/DW Brasil
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