segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Os rios enterrados de São Paulo

O rio da minha aldeia era um córrego sujo que passava atrás de casa, escorrendo pelos fundos dos terrenos vizinhos, todos de costas para suas duas margens. Nunca ninguém concebeu que houvesse peixes naquelas águas cinzentas. Mas alguma vida tinha: lembro de passar um bom pedaço de uma manhã observando uma ratazana escalar calmamente a parede da margem oposta. A figura desse rio era a de um esgoto a céu aberto. Àquela altura, já era uma entidade sem nome, sem história, sem o seu deus: um cadáver de rio. Não tardou para que tivesse o destino de quase todos os seus congêneres paulistanos: foi enterrado, e como lápide tem hoje sobre si a avenida Hélio Pelegrino, ligando a avenida Faria Lima à avenida República do Líbano, em São Paulo.

Ocorre que, mesmo morto, o rio continua passando, ainda que seu deus tenha se tornado uma assombração, que a qualquer momento, se falhar a macroestrutura de exorcismo em forma de gigantescas catedrais subterrâneas chamadas “piscinões”, pode emergir espalhando sua pestilência e suas maldições. A corrida permanente das autoridades sobreterrâneas é a de manter o aparato funcionando para que os mortos não voltem. Se forem bem-sucedidas, a comunidade esquecerá que naquele curso de veículos um dia houve água. É o que aconteceu nesse pedaço de mundo onde passei um bom pedaço de minha infância e adolescência. Quando levo meus filhos para visitar a avó, na mesma casa, é bem difícil para eles acreditarem nas minhas descrições do que foi aquele lugar.

Mais difícil ainda é imaginar que a paisagem das minhas narrativas já era irreconhecível para os mais velhos de então. Ao descrever o mesmo lugar no seu tempo, os anos 1940 e 1950, a Dona Rita, mãe de minha amiga Ritinha, falava de chácaras e riachos onde se buscava água, se pescava e nadava. Suponho até que o principal rio de suas descrições fosse aquele mesmo, o da minha… “aldeia”. É forçoso constatar que entre o meu rio, o rio dela e a ausência hodierna não há qualquer continuidade, cada um existe em um regime de linguagem diferente, cada um a mitologizar uma relação entre uma “cidade”, uma “sociedade” e uma “natureza”, as quais convivem mais do que por vezes supomos.

Nesta hora, sinto-me como os habitantes de Maurília, uma das cidades invisíveis de Italo Calvino (1990 [1972]: 30) catalogada sob a inscrição “As cidades e a memória 5”.

Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi. 

Com o tempo, minha resistência à poderosa gentrificação do meu bairro foi convertendo o meu rio em um cartão-postal inexistente que eu imagino a partir das descrições de Dona Rita. Mas muita gente por certo admira com estupefação o que se tornou a Vila Uberabinha, que era um rincão de classe média encostado em duas vizinhanças de alta elite – os edifícios e praças da Vila Nova Conceição e as mansonetas do Jardim Lusitânia, ambas ladeando o Parque Ibirapuera – e que foi engolida pela expansão do bairro novo-rico de Moema. O velho bairro de casas térreas e uns poucos sobrados se converteu, até a Vila Olímpia, em um labirinto de espelhos (shoppings, edifícios comerciais, lojas de automóveis) entre monumentos neoclássicos com varanda gourmet, de cuja garagem saem veículos imensos, largos, longos e altos, que se espremem por ruazinhas feitas para brasílias, fuscas e bicicletas.

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Igual a cada um dos habitantes da cidade, minha mitologia pessoal se aninha em uma mitologia bem mais ampla, que encontra origem na própria fundação da cidade. Contam os antigos – e os historiadores – que São Paulo nasceu numa encruzilhada entre rios. O colégio construído por Anchieta no alto de uma colina tinha ao final de uma encosta o grande e navegável Piratininga (hoje Tamanduateí) e na outra o riozinho Anhangabaú, bom de pegar água, lavar roupas etc. Porém, passados três séculos e meio, quando em 1922 o jovem modernista Mário de Andrade concebeu as “Enfibraturas do Ipiranga” como uma delirante cantata ocupando o Vale do Anhangabaú, do Teatro Municipal ao então vigente Automóvel Clube, o rio onde os jesuítas iam beber água já estava enterrado desde 1904.

Exemplo da doxa sobre o tema encontra-se no site do projeto Novo Anhangabaú: fala da canalização que ocorreu no início do século XX como a resposta a uma inescapável fatalidade: “no fim do século XIX, o Rio Anhangabaú era poluído, mau cheiroso e foco de doenças, o destino trágico dos rios urbanos”. Esse “destino trágico” realmente tomou conta dos rios de São Paulo como a propagação de uma verdade, com suprema eficácia. Vemos aí representadas as três idades de um rio paulistano, desde o bucólico curso d’água que haveríamos descrever com a linguagem de José de Alencar, passando pela morte trágica e chegando ao atual logradouro onde ele é invisível. Os anhangás da origem terão sido sucedidos por outras assombrações. Na última reforma do Vale, instalaram uns esguichos d’água no chão para lembrar que ali um dia houve um rio – nunca vi colocarem em funcionamento, quiçá porque nesse centre-ville não interesse muito molhar os sapatos hoje em nome da memória do brejo de antanho.

Todo esse processo é analisado com muita acuidade no documentário Entre Rios – a urbanização de São Paulo (2009), dirigido por Caio Ferraz. Um momento decisivo dessa história é o planejamento urbano concebido por Prestes Maia e João Florence, o Plano de Avenidas de São Paulo, que começou a ser implementado quando o engenheiro Prestes Maia foi prefeito da cidade. Foi ali que se converteu em projeto a ideia de canalizar os grandes rios Tietê e Pinheiros, retificá-los e escoltá-los com um viário urbano imenso, as Marginais, que chegam a ter mais de cinco pistas de cada lado. O mesmo aconteceu com o Tamanduateí, que passou a ser a avenida do Estado. Outras avenidas estruturais da cidade foram projetadas sobre leitos de rios: a avenida 23 de Maio, que no final dos anos 1960 empanou o rio Itororó, e a avenida Nove de Julho, que tem sob si o córrego da Saracura.

O projeto de Prestes Maia prosperou e se estabeleceu, movido pelo interesse econômico nas áreas das várzeas dos rios. Áreas estas muitas vezes ocupadas por populações de baixa renda, empurradas para lá por falta de opção de moradia, e que viviam um outro destino trágico, o de ter suas casas invadidas quando ocorriam grandes cheias. As imagens dos desabrigados foram amplamente usadas para mostrar a urgência de uma solução para os rios. E finalmente o desejo de que a pujante São Paulo tivesse uma cara de cidade moderna, uma “Chicago da América do Sul”, não condizia com os rios putrefatos, era melhor escondê-los logo sob a terra. O crescimento explosivo e absolutamente desordenado que nas décadas seguintes transformou essa provinciana capital numa megalópole apenas reforçaram a visão neocartesiana de que o destino da “cultura” e da “técnica” é o de se apossar e controlar a “natureza”, sem considerar que é a moderna cidade que apodrece os rios e não o contrário.

Porém, naquele momento, como conta Entre Rios, havia em São Paulo um projeto concorrente, que pensava os rios não como fadados à morte e enterro, mas como as entidades naturais que deveriam ordenar uma relação viva entre a cidade e seu ambiente. A proposta do também engenheiro Francisco Saturnino de Brito era a de preservar as várzeas dos principais rios como vastos parques urbanos. Sua atenção se voltava aos rios Tietê e Pinheiros, que apesar de correr pelo planalto têm características de rios de planície: seus leitos desenhavam percursos serpenteantes que desapareciam nas suas periódicas enchentes, e acontecia até de, ao baixar as águas, os desenhos se reconfigurarem em novas curvas e ilhas. Para criar um poderoso cinturão verde na cidade e permitir aos rios expandir e recolher-se conforme sua respiração regulada pelas chuvas e estiagens, a proposta seria, portanto, criar largos e extensos parques acompanhando as duas margens desses dois rios, criando áreas de mais de um quilômetro de largura ao longo de toda a região urbana dos rios. Mais ou menos o que hoje é o Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste da cidade, só que costeando as dezenas de quilômetros de sua extensão, uma imensa área.

Podemos imaginar que cidade seria se o projeto vencedor tivesse sido o de Saturnino, e uma outra mitologia informasse as transformações da cidade e suas gentes. Talvez as gentes se sensibilizassem e, ao invés de sepultar o rio Uberaba, nos fundos de minha casa passasse um rio vivo e brilhante cujas verdes margens se integrariam de algum modo às ruelas que chegavam até ele e cercariam minha casa de árvores apinhadas de aves e outros animais, que teriam nesses rios e matas/parques ciliares as vias concretas para a continuidade de todos os parques da cidade. Minha mitomania delirante, evoé Mário!, me faz sonhar o Ibirapuera, logo ali no bairro de cima, ligado por uma via verde e fresca com o grande parque do rio Pinheiros. E talvez a disputa política na cidade se desse em bases tais que pelo menos este modelo pudesse estar em disputa com o outro.

Porém, a vitoriosa ideia de canalizar os rios e construir as Marginais, movida por imensos interesses em liberar terras para projetos imobiliários pensados isoladamente, foi o que se tornou o paradigma para toda a cidade. Para que o mito do controle técnico sobre a natureza perdida fosse vitorioso sobre a ideia do convívio saudável com uma natureza da qual seríamos parte, foi preciso acoplar a ele um outro mito, que o contrabalançasse com uma “mais-natureza”, uma natureza mais “pura”, não violada pelos resíduos humanos/urbanos de nenhuma espécie. Fortaleceu-se a ideia de que o abastecimento de águas da cidade deveria ser feito com as fontes vindas das serras próximas à cidade. De fato, a primeira empresa de abastecimento da cidade fora constituída em 1878, a Companhia de Águas e Esgotos Cantareira. Também foram construídas as represas Billings, em 1923, para abastecer a cidade com águas da Serra do Mar, e a Guarapiranga, construída antes para mover uma usina hidrelétrica, mas que passou a abastecer a cidade a partir de 1928. Ambas represas estão ao sul da cidade. O crescimento da cidade levou à formação do Sistema da Serra da Cantareira, na Zona Norte, nos anos 1960. Buscar água longe da cidade significava, portanto, ratificar a ideia de que os rios que a cruzam estavam irremediavelmente condenados, devendo ser canalizados, entubados e escondidos sob a terra.

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As décadas foram se sucedendo e os rios, convertidos em esgotos, foram sendo todos enterrados. Esse avanço, que passou pela casa de minha família nos anos 1980, prossegue hoje pelas periferias, onde ainda está na pauta da administração pública, até como reivindicação da população. Tivemos exemplo disso nas eleições deste ano. Pouquíssimos candidatos à vereança vocalizaram a possibilidade de uma virada mitológica na cidade para com o seu corpo vivo, e um exemplo raro e notável foi o professor de arquitetura e urbanismo Nabil Bonduki. Nos programas de candidatos a prefeito, o que se viu foram os córregos ainda não canalizados na periferia, entupidos de lixo de toda espécie, e a acusação da inépcia do prefeito atual em não tê-lo enterrado inteira e “adequadamente”. O mito segue seu avanço radial e centrífugo.

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O principal resultado disso é que São Paulo foi se tornando um lugar que não respira, que não enxerga a natureza de que continua sendo parte, de um modo ou de outro. O rio Pinheiros é uma massa parada, sem fluir como todo flumen, um ex-rio.

Como se a cidade recalcasse o seu próprio corpo sob a terra, distraindo-se do fato de que o recalcado sempre volta, por vezes da maneira mais despudoradamente e transbordante. É assim que os rios, lá no fundo, extravasam os canais (sempre subestimados) para eles construídos, alagando ruas e avenidas, travando o fluxo de carros. Para resolver esse problema – em nome do eternamente buscado triunfo do automóvel –, constroem-se gigantescas galerias, os piscinões, bolsões de contenção para que o recalcado se expanda sem ser visto, sem ser sentido, o mais possível. Gastam-se montanhas de dinheiro para manter a cidade alijada da visão de seu corpo, funcionando sempre igual a qualquer estação, sem importarem as chuvas ou secas. E aí está a cidade, sempre desfuncional, independente da estação ou do tempo, sem ter sequer um riozinho em cuja margem amarrar a bicicleta e dialogar um pouco consigo mesmo.

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Quando Mário de Andrade, já perto da foz de seu itinerário de vida, se achega à margem para conversar consigo e escrever a “Meditação sobre o Tietê”, mal sabia ele que o riozão estava prestes a ser canalizado menos de uma década depois. Perderia suas curvas, o movimento de caudalosa e profunda circunspecção em que o poeta se reconhecia. É dramático que o poema mencione a Ponte das Bandeiras. No fundo, a disputa de projetos urbanos é mesmo uma disputa de mitologias: o rio do Mário é o mesmo de Saturnino, e o de Prestes Maia é aquele que serviu aos bandeirantes para acelerar seu caminho de domínio e apropriação do “selvagem”, mitologia construída no século XIX e que identificou no avanço das lavouras de café “para o interior” ou para “o oeste” o mesmo impulso e ímpeto dos preadores de indígenas e caçadores de pedras preciosas dos séculos XVI e XVII. O sentido de interior é radicalmente diverso nos dois casos.

Diante da ampla vitória do projeto de recalcamento dos rios e dos corpos, surgem movimentos utópicos – ou pelo menos antidistópicos –, como o Rios e Ruas, que imaginam um tempo em que os rios voltarão a ser abertos na cidade. Saem a caçar nascentes e desenhar traçados de rios nas calçadas, a realizar performances e intervenções para lembrar dos rios que não vemos.

Mas uma mudança de matriz mitológica como essa… o que a tornaria viável? Um dos exemplos que se costuma citar é o da cidade de Seul, que teve um importante rio desenterrado, e o resultado foi uma paisagem urbana totalmente reconfigurada. Mas a Coreia do Sul viveu uma radical transformação socioeconômica nessas últimas décadas, tão grande que necessitou mostrar isso na sua epiderme urbana. Que grande mudança impulsionaria a gente de São Paulo a aceitar romper com interesses tão poderosos que seguem devastando e impermeabilizando cada centímetro de chão?

•        Foz

Recentemente, a prefeitura publicou um mapa hidrográfico de São Paulo. É curiosíssimo acompanhar a linha marcada dos cursos d’água a se sobrepor às imagens que representam ruas e quarteirões ocupados por casa e prédios. A malha fluvial da cidade é enorme, toda uma urbe aquática subterrânea. Este mapa me fez percorrer memórias fluviais ainda mais antigas da infância. Lembrei de quando nossa escola, no fundo do vale da rua Pintassilgo, uma vez alagou. O rio passava ao lado, escondido atrás de um muro, encheu e inundou várias salas de aula. Voltando ainda mais atrás, à primeira infância, lembro de quando morávamos num outro bairro, o Planalto Paulista, e nos dias de grandes chuvas alagava-se a rua José Maria Whitaker, também num fundo de vale.

Para minha enorme surpresa, constatei pelo mapa que essas enchentes aconteciam sempre no mesmo rio, o “rio da minha aldeia”, o mesmo córrego Uberaba, que nasce como córrego Paraguai lá no espigão da avenida Domingos de Morais (como continuação da avenida Paulista), desce pelas encostas do Planalto Paulista e corre pela José Maria Whitaker, se junta ao córrego das Éguas para formar o Uberaba, então contorna o Jardim Lusitânia e desce atrás de minha casa, hoje sob a Hélio Pelegrino, desenha avenidas e finalmente desemboca no Pinheiros, na altura da estação Vila Olímpia da CPTM.

O mesmo rio, já era ele. Hoje, me comovo com os militantes que pintam nas calçadas o curso do rio Iquiririm, e escrevem numa boca de lobo: “Aqui começa o Oceano Atlântico”. Também vivo a poucos metros do futuro Parque da Fonte, milagrosamente preservado como a ruína de um patrimônio em construção, fruto da luta de um movimento aguerrido de gentes do Morro do Querosene, liderados pela Cecília e o mestre Dinho. Ali ainda tem uma nascente bem viva.

E assim, o presente desta aldeia segue todo molhado: de futuro do pretérito – e algum indicativo de porvir.

 

Fonte: Por Maurício Ayer, em Outras Palavras

 

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