Neoliberais anti-China tomam conta da
política externa do Brasil
A política externa
brasileira vai mal.
O Itamaraty, concebido
como um órgão eminentemente técnico, para assessorar o poder eleito, vem
assumindo posições políticas cada vez mais independentes.
É mais grave que isso:
o Itamaraty está indo na direção oposta daquela apontada pelo presidente Lula,
expressa em todos seus discursos, de fortalecimento do mundo multipolar e
combate à desigualdade no mundo.
As consequências
políticas para Lula, para o governo e para o pais serão profundas. Uma política
externa confusa, medrosa, sem visão estratégica, pode comprometer a reeleição
do presidente e, sobretudo, destruir por décadas os sonhos de emancipar economicamente
o Brasil.
Vamos contextualizar
os motivos que me levam a abrir esse artigo com declarações tão duras e
críticas contra um governo no qual ainda depositamos tão ardentes esperanças.
O debate ocorrido nos
últimos dias, sobre a adesão, ou melhor, a não-adesão do Brasil à Rota do
Cinturão e da Seda, produziu uma intensa agitação nas comunidades que discutem
a política externa brasileira, em especial aquelas que lidam mais diretamente com
relação do Brasil com os Brics e com o gigante da Ásia.
A entrevista de Celso
Amorim ao Globo, afastando a possibilidade do Brasil assinar um “tratado” de
adesão ao projeto chinês, e falando antes em “sinergia” de projetos, pegou mal
na China, segundo fontes do Cafezinho.
Amorim, brilhante
diplomata, procurou contornar o mal estar criado por essa entrevista.
Procurado por mim,
jurou que isso não significa nenhuma posição anti-China do governo, e que o
conceito de sinergia deve ser considerado como a melhor maneira do Brasil se
aproximar do projeto chinês conhecido pela sigla em inglês BRI (Belt and Road
Iniciative), ou Cinturão e Rota da Seda.
Procurei também o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que gentilmente conversou comigo durante
alguns minutos, e usou o mesmo termo de Amorim (mostrando que o governo alinhou
o discurso sobre a China): o Brasil irá procurar estabelecer uma “sinergia”
entre os dois países.
“A viagem de ministros
e secretários de governo à China, recentemente, foi motivada pelo desejo do
governo de estabelecer sinergias entre o projeto nacional de desenvolvimento do
Brasil e o projeto chinês”, disse Haddad ao Cafezinho.
“Não entendo muito bem
essa ideia do Brasil aderir ao projeto de outro país”, disse Haddad, para
justificar a preferência pelo conceito de sinergia.
O ministro disse ainda
que o governo está tentando atrair investimentos chineses para a órbita do
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), em
especial para os projetos vinculados à principal aposta do órgão, o Nova
Indústria Brasil (NIB). “É aí que vamos tentar a sinergia entre os
investimentos chineses e esses projetos mais sofisticados – energia, trens, etc
– de que você fala”, explicou o ministro.
“Já está acontecendo”,
disse Haddad, sobre o aprofundamento das relações entre Brasil e China, aí
incluindo a famosa sinergia entre o projeto nacional e o chinês.
Entretanto, essas
falas não surtiram nenhum efeito entre os observadores mais atentos, que viram
nas declarações dos representantes do governo um recuo estratégico, com enormes
proporções e consequências geopolíticas, na relação do Brasil com a China.
Eu entrei em contato
com muitas pessoas, no Brasil e na China, que se debruçam há anos sobre as
relações diplomáticas, comerciais e geopolíticas entre os dois países, para
entender com o máximo de objetividade porque essa percepção foi tão marcante.
Evandro Menezes de
Carvalho, por exemplo, é um dos maiores especialistas em China no Brasil.
Professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito na UFF e na FGV, tem
pós-doutorado na Universidade de Pequim e na Facultade de Direito de Xangai. É
professor também na Universidade de Pequim, e tem dividido sua vida entre China
e Brasil. Ganhou há pouco um dos prêmios do Estado chinês mais importantes do
país, o de “Amigo da China”, entregue a ele diretamente pelo primeiro ministro.
Carvalho entendeu as
falas de Amorim como malabarismo retórico e como um “não vacilante” à adesão do
Brasil à Rota da Seda. Ele entende ainda que o conceito de “sinergia” não faz
jus à magnitude de oportunidades que uma posição mais assertiva e corajosa do
presidente Lula poderia trazer ao país, caso assinasse um Memorando de
Entendimento, durante a visita do presidente da China ao Brasil, Xi Jinping,
entre os dias 18 e 20 de novembro.
“Considerar a relação
com a China apenas na perspectiva bilateral é não enxergar as potencialidades
desta parceria no âmbito regional. A China parece ter uma visão e uma execução
de política externa na América do Sul mais integrada do que o próprio Brasil.
Os projetos de rodovias na Bolívia, os projetos elétricos no Uruguai, a
ferrovia de Belgrano na Argentina são exemplos de projetos na América do Sul
inseridos no âmbito da BRI. Sem contar outros projetos no resto da América
Latina tais como o porto de águas profundas em Antígua e Barbuda, o parque
industrial em Trinidade e Tobago e a estrada Norte-Sul na Jamaica. Vale
ressaltar que entre 2000 e 2022, o comércio entre China e América Latina
aumentou 35 vezes ultrapassando, em 2023, a marca de 480 bilhões de dólares. A
China se tornou o segundo maior parceiro comercial da região. Durante a APEC
[Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, ou Asia-Pacific Economic
Cooperation, em inglês], Lula verá a inauguração do Porto de Chancay, um
megaprojeto que pode encurtar em um terço o tempo médio que os produtos
brasileiros levam para chegar ao Oriente. O Brasil poderá se beneficiar deste
porto se levar adiante o projeto do Corredor Ferroviário Bioceânico com 3.750
quilômetros de extensão, ligando o Porto de Santos ao Porto de Chancay,
passando por Bolívia. A BRI tem algo a nos dizer sobre isso?”, diz o professor,
em texto recente sobre essa polêmica do Brasil aderir ou não à Rota.
“Não colou”, diz
Rodrigo do Val Ferreira, consultor brasileiro residente em Xangai, que mantém
contato frequente com autoridades e empresas chinesas, sobre o esforço retórico
do governo em substituir uma declaração mais clara e explícita de adesão à Rota
pelo uso do conceito ambíguo de “sinergia” entre projetos do Brasil e da China.
Segundo ele, a
percepção na China é de “surpresa e decepção, e isso mancha as celebrações de
50 anos entre os dois países”. A própria famosa ideia de neutralidade do
Brasil, diz Rodrigo, estaria começando a ser questionada.
“A ICR [Iniciativa do
Cinturão e da Rota] não exigia exclusividade, não exigia tomar partido, nem
sequer se comprometer a qualquer projeto específico, e escolhemos mesmo assim a
não relação. Tenho minhas dúvidas se por medo ou ideologia. E espero que por
medo.
No A Governança da
China, em seu primeiro volume, Xi quando se refere à América Latina, discorre:
Na China há um provérbio que diz: ‘Na longa distância se conhece a força de um
cavalo; no decorrer do tempo se conhece o coração de uma pessoa’. E segue tecendo
elogios à cooperação com a América Latina.
Receio, nosso cavalo,
justo no momento mais importante de se construir confiança, empacou”, declara
Rodrigo, sem ocultar sua frustração.
O sentimento crítico
em relação à política externa do Brasil, todavia, não começou agora, e as
declarações de Amorim foram apenas a mensagem mais recente, e no momento mais
emblemático, pois ocorre às vésperas da chegada de Xi Jinping ao Brasil.
Uma série de
acontecimentos bem mais concretos, contudo, vem dando sinais da mudança de rumo
na política externa do país.
Em nome da
transparência, e de um debate franco e aberto que o tema merece, vamos dar
nomes aos bois.
O embaixador Eduardo
Paes Saboia, secretário do Itamaraty para Ásia e Pacífico, é conhecido por suas
posições anti-Brics e anti-China, o que é totalmente contraproducente, quase
irracional, para a importância estratégica do cargo que ocupa. Ele é o “sherpa”
do Brasil nos Brics, ou seja, o principal negociador brasileiro. E é contra os
Brics. Segundo minhas fontes, Saboia fala abertamente contra os Brics com seus
interlocutores.
Ou seja, o
representante mais importante do Brasil nos Brics e que também é o
representante mais importante do Brasil na China é contra os Brics e a China. A
posição de Saboia, no entanto, nunca foi desconhecida, pois ele é notoriamente
um quadro de posições políticas reacionárias, motivo pelo qual foi nomeado para
o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. O incrível é ele continuar lá sob o
governo Lula.
A embaixadora Maria
Laura da Rocha, secretária geral do Ministério de Relações Exteriores, não
apenas tem posições abertamente contra a China, como andou militando, nos
últimos meses, de ministério em ministério, para defender que o Brasil não
aderisse à Rota da Seda.
Tatiana Rosito,
secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, também é vista
como um quadro político hostil à adesão do Brasil ao projeto da Rota da Seda.
O embaixador do Brasil
na China, Marcos Galvão, é igualmente um quadro conservador, com poucas luzes
sobre as grandes oportunidades que se abririam para o Brasil, caso optasse por
ampliar a parceria com o gigante asiático.
Ou seja, toda a
máquina diplomática do Estado, com posições estratégicas na relação com a Ásia,
e quase todo o pessoal encarregado de assuntos de ordem geopolítica, tem
posições hostis à China, o que explica a dificuldade do Brasil em aprofundar
parcerias com o gigante asiático.
Quando Lula e Xi
Jinping se encontrarem, em algumas semanas, muita coisa estará em disputa. Toda
palavra, símbolo, gesto, será analisado minuciosamente pelo mundo inteiro.
Para o brasileiro
Rafael Henrique Zerbetto, um jovem linguista que reside e trabalha em Pequim, a
fórmula diplomática encontrada pelo Brasil para não assinar um memorando de
adesão à Rota, e ao mesmo tempo surfar no fluxo de investimentos chineses
associados ao projeto, serão vistos como uma tentativa pouco disfarçada de ser
“esperto”, embora objetivamente não o seja. Outros países, com postura mais
assertiva e corajosa, acabarão levando vantagem sobre o Brasil.
Zerbetto, que é um
entusiasta e um estudioso da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), lembra que o
memorando de adesão não é, de fato, um tratado vinculativo, tampouco
exclusivista. É bastante genérico, mas também é uma grande porta que se abriria
para o início de uma série de iniciativas a serem financiadas pela China, em
favor do Brasil. Apenas os projetos que interessarem ao Brasil, que forem
estratégicos para o Brasil, serão incluídos na parceria. Sua condução seria
inteiramente controlada e supervisionada pelo Brasil.
Tanto Zerbetto quanto
outros com quem conversei lembram ainda que a Rota da Seda vai muito além dos
projetos em infra-estrutura. Daí inclusive a mediocridade do conceito de
“sinergia”. Falar em sinergia põe de lado a complexidade holística da Rota, que
incluiria abertura de mercados para produtos culturais do Brasil, como filmes,
livros, jogos, além de um aumento exponencial do intercâmbio científico,
profissional e acadêmico.
Iara Vidal, jornalista
brasileira especializada em China, lembra ainda que o Brasil pode desenvolver
laços com a China para além do comércio de commodities e parcerias em
infraestrutura. “É muito importante parcerias entre a China Media Group
[principal grupo de mídia do país, estatal] e empresas nacionais no campo do
audiovisual”, diz ela. Outros campos a serem explorados, e que seriam
facilitados com uma adesão do Brasil à Rota da Seda, seriam os setores de
economia criativa, como a moda. “A China tem desenvolvido ferramentas muito
inovadoras para lidar, por exemplo, com a questão do uso do poliéster, que
podemos implementar no Brasil. É o caso da iniciativa de substituir o plástico
por bambu. Nossa indústria têxtil poderia se beneficiar dessa ideia que está em
perfeita sintonia com a neoindustrialização e a economia verde. Poderia renovar
esse segmento aproveitando que o setor brasileiro de moda tem a única cadeia
produtiva completa do Ocidente, em uma indústria que gera muito emprego,
principalmente para mulheres e jovens.”
Uma adesão corajosa do
Brasil à Iniciativa do Cinturão e da Rota da Seda poderia dar a marca que hoje
falta ao governo Lula. É a oportunidade do século, pois a China tem exatamente
aquilo de que precisamos nesse momento: recursos financeiros em abundância,
desenvolvimento científico e tecnológico em todas as áreas, uma classe média
que deve chegar a 800 milhões de pessoas em alguns anos, para citar apenas
alguns.
Tanto o medo de
melindrar o império, quanto uma ideologia reacionária (e preconceituosa)
anti-China, uma mistura venenosa que parece ter se infiltrado no governo, são
antes de tudo uma colossal estupidez, porque os Estados Unidos e a Europa
apenas irão respeitar o Brasil, como já disse Lula tantas vezes, se o Brasil
aprender a respeitar a si mesmo. E perder a oportunidade de abraçar esta grande
nação amiga, a China, seria uma grande falta de respeito do Brasil consigo
mesmo e com o futuro da nossa juventude.
Além disso, somente a
China tem os recursos, a engenharia institucional, e a velocidade de execução
que o governo Lula precisa para implementar projetos grandiosos o suficiente
para melhorar a vida do povo e ganhar com folga as eleições de 2026. Apesar da
economia estar crescendo e o desemprego caindo, mesmo isso não será suficiente
para barrar a onda reacionária que vemos se levantar no país.
Um projeto Minha Casa
Meu Sol, com distribuição financiada de placas fotovoltaicas e baterias de
lítio para todas as casas e edifícios no Brasil, reduzindo drasticamente as
despesas domésticas com eletricidade, seria uma iniciativa para ganhar no
primeiro turno em 2026.
Escolher algumas
cidades brasileiras para implementação de vastos sistemas de metrô, com auxílio
da China, seria outra boa ideia, não apenas para ganhar em 2026 mas sobretudo
para apontar uma solução para o estrangulamento desesperador em que se encontram
os brasileiros que vivem em grandes cidades.
A construção de um
protótipo inicial de trem de alta velocidade, ligando duas cidades importantes
brasileiras, também ajudaria o governo a desenvolver uma marca e esmagar a
extrema direita nas próximas eleições.
Nenhum projeto desses
pode vir dos EUA, tampouco da Europa. Só a China oferece a possibilidade de
realização de sonhos dessa magnitude. O governo Lula precisa meditar sobre as
próprias palavras do presidente em seus discursos: quando o presidente fala em
combater a desigualdade no país, deve se lembrar que isso apenas será possível
com a modernização do transporte urbano, maior uso de energia solar e conquista
de novos mercados para nossos produtos culturais, para mencionar alguns
benefícios que uma parceria com a China nos ajudariam a desenvolver.
Se o governo Lula,
porém, decidiu perder o jogo antes mesmo de terminar a segunda metade da
gestão, então vai ficar muito mais complicado construir uma estratégia
vencedora.
Quer dizer, pode
acontecer o pior: a direita vencerá as eleições em 2026, com um candidato como
Tarcísio, e um de seus primeiros atos será assinar um memorando de adesão à
Rota da Seda. Se o governo do PT não quer aderir, para não melindrar nem os EUA
nem os setores reacionários incrustrados na própria administração, um governo
de extrema direita, que não precisará “provar” que não é hostil aos EUA, terá
toda a facilidade em estabeler mais relações com a China.
Com a corrente de
comércio entre Brasil e China chegando a US$ 163 bilhões de dólares nos últimos
12 meses, quase 100% de aumento em dez anos, e com a perspectiva de crescer
ainda mais nos próximos dez anos, me parece evidente que os dois países estão
fadados a estabelecer parcerias cada vez mais profundas e estratégicas. Se isso
será feito sob o governo Lula, com foco em ciência e preocupação social, ou sob
um governo de direita, com foco na construção de grandes corredores de
escoamento de commodities, ainda não sabemos.
Fonte: Por Miguel do
Rosário em O Cafezinho
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