quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Litígio fundiário em Jericoacara sob o prisma da supressio e da surrectio

Recentemente, um intricado litígio de natureza fundiária emergiu no vibrante contexto da emblemática Vila de Jericoacoara, uma das joias turísticas do Brasil, reverberando nas esferas jurídicas e sociais. Esse embate particular se desenrola entre a empresária Iracema Correia São Tiago e o governo do Ceará.

A empresária alega deter documentos que, segundo suas assertivas, confeririam direitos possessórios sobre aproximadamente 80% das terras da referida vila, adquiridas em um ano distante de 1983. Em resposta a tais alegações, o governo do estado, em um movimento proativo e estratégico, instaurou medidas administrativas com o intuito de assegurar a tutela das áreas que, atualmente, estão ocupadas por uma pluralidade de moradores e estabelecimentos comerciais, visando, assim, a manutenção do interesse público e a regularização fundiária previamente implementada ao longo dos anos.

Após longas e exaustivas negociações entre as partes envolvidas, a Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) formulou uma proposta que contemplava a renúncia, por parte da empresária, de cerca de 90% das terras que inicialmente reivindicava, limitando-se, dessa forma, a porções desocupadas. Tal ajuste visava garantir a continuidade das atividades rotineiras da vila, bem como preservar as estruturas habitacionais e comerciais ali existentes.

No entanto, a efetivação do acordo foi momentaneamente postergada, de modo a permitir uma análise mais apurada e criteriosa do caso, levando em consideração a complexidade e as nuances envolvidas na questão.

Ocorre que, esmiuçando o caso, constata-se que ainda que a empresária possua títulos que, sob sua ótica, atestariam sua posse legítima sobre o imóvel em questão, a eficácia desses documentos é objeto de questionamentos, uma vez que desafia princípios fundamentais da ordem pública e da boa-fé objetiva, princípios estes que são pilares do ordenamento jurídico brasileiro.

Esses princípios são especialmente relevantes quando se analisa a legitimidade da posse e a função social da propriedade.

Direito de posse segundo a supressio

Ao analisarmos o caso sob o prisma da teoria da supressio, observamos que essa teoria, intrinsecamente ligada ao princípio da boa-fé objetiva, sustenta a perda de uma prerrogativa jurídica em decorrência de uma inatividade prolongada e inquestionável.

A supressio, portanto, operaria no sentido de neutralizar a possibilidade de exercício intempestivo de direitos, considerando que uma conduta abrupta de reivindicação poderia causar surpresas e desequilíbrios significativos nas relações contratuais e no vínculo obrigacional.

Esse princípio proporciona uma robustez ao conceito de segurança jurídica, assegurando que as relações contratuais e de posse sejam mantidas em conformidade com expectativas legítimas criadas ao longo do tempo.

Governo do Ceará

Dado o fato de que a empresária manteve-se omissa por um lapso temporal que se estende por décadas, gerou-se, para os demais interessados, uma crença substancial de que o direito de posse sobre as terras em questão não seria mais reclamado. Essa omissão legitimou, assim, os moradores e comerciantes a estabelecerem-se na região, criando um ambiente propício ao desenvolvimento econômico e social da área.

A prática da empresária induziu o Estado e os moradores a acreditarem na renúncia tácita ao seu direito possessório, permitindo, com isso, que a comunidade florescesse e se consolidasse.

Posse da área pelos moradores e comerciantes

Em adição ao conceito de supressio, emerge o princípio da surrectio, cuja aplicabilidade se revela de maneira expressiva e benéfica para os habitantes de Jericoacoara. A surrectio estabelece que uma expectativa prolongada de comportamento benevolente, alimentada por uma das partes, pode ser interpretada como uma concessão tácita de direito. Quando aplicado ao contexto em questão, a longa omissão da empresária em pleitear seu direito resulta em uma legítima expectativa, por parte dos moradores e comerciantes, de que a posse da área foi de fato concedida.

À medida que o tempo avançou, investimentos estruturais e o desenvolvimento de atividades comerciais e residenciais consolidaram-se, gerando uma condição socioeconômica estável, que é de suma importância para a vila.

Assim, com fundamento na surrectio, pode-se argumentar que os moradores passaram a considerar o direito de ocupação como consolidado. A prolongada inação da empresária, ao permitir que se estabelecesse toda uma rede socioeconômica em torno da ocupação das terras, pode ser interpretada como uma concessão tácita de direitos de uso, alinhando-se à lógica da boa-fé e da função social da posse.

Consequentemente, qualquer tentativa de reaver esses direitos de forma súbita e intempestiva se apresentaria como uma violação à confiança gerada ao longo do tempo, atentando contra a estabilidade da estrutura local. A adoção do princípio da surrectio, portanto, pode configurar-se como um verdadeiro escudo legal para resguardar a comunidade de Jericoacoara, assegurando que a expectativa legítima alimentada pelos moradores ao longo dos anos, em face da ausência de ação por parte da empresária, seja reconhecida pelo Judiciário como um direito implícito à permanência e ao desenvolvimento da região.

Além disso, a análise do contexto fático revela que a comunidade, ao longo dos anos, desenvolveu um modo de vida sustentável e interdependente, com base em uma estrutura comercial que se consolidou em decorrência da confiança e da estabilidade proporcionadas pela ausência de reivindicações possessórias. Assim, a atividade econômica local, composta por pequenos negócios, hospedagens, e comércio, tornou-se uma extensão da vida social da vila, evidenciando a importância da função social da propriedade e do respeito às expectativas criadas.

Spacca

Ademais, a presença de um acervo histórico e cultural que permeia a comunidade de Jericoacoara não pode ser ignorada. A rica tapeçaria social, entrelaçada por tradições locais e práticas culturais, foi moldada por décadas de convivência e desenvolvimento, criando um legado que se manifesta na identidade da vila.

Assim sendo, a interveniência de um fator externo que venha a alterar essa dinâmica, por meio de uma reivindicação possessória que contraria a boa-fé objetiva e as expectativas legitimamente construídas, se mostra não apenas desaconselhável, mas eticamente questionável.

Considerações finais

Portanto, é imperativo que as instâncias judiciais, ao se depararem com esse litígio, considerem não apenas a legalidade dos documentos apresentados pela empresária, mas também a profundidade das implicações sociais e econômicas que uma decisão pode acarretar. O exame criterioso da conduta das partes e das expectativas criadas ao longo do tempo deve ser uma prioridade, assegurando que o equilíbrio das relações sociais e econômicas da comunidade de Jericoacoara seja preservado.

Em conclusão, a situação que envolve a Vila de Jericoacoara não é meramente uma disputa fundiária; ela representa um dilema que abrange questões de justiça social, estabilidade econômica e a preservação da cultura local. Assim, a aplicação dos princípios da supressio e da surrectio se reveste de uma importância vital para garantir que a história e a vida da comunidade sejam respeitadas e que seus direitos, construídos ao longo de décadas de convivência, sejam efetivamente protegidos.


Fonte: Por Arthur Porto, na Conjur


 

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