sábado, 30 de novembro de 2024

Juliana Vieira: Aborto - a nova ameaça da ultradireita

Quase um mês após a eleição municipal em São Paulo, o tema do direito ao aborto segue minimizado na mídia, após ser pouco explorado durante os debates e sabatinas da disputa eleitoral entre Guilherme Boulos (PSOL) e Ricardo Nunes (MDB) à prefeitura da capital paulista.

“O aborto é central na disputa político-partidária. É político, antes, durante e depois das eleições. Quando é amplamente falado nas campanhas, acaba sendo distorcido ou vinculado às correntes anticiência, quando é profundamente omitido, como presenciamos nas últimas eleições paulistanas, também mostra sua força como um direito em constante disputa eleitoreira, já que acaba sendo assunto-tabu para determinados grupos”, analisa Ana Silva Mederos, cientista social e pesquisadora formada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP).

E justamente no jogo político o tema foi retomado nas últimas semanas, em duas votações no âmbito federal: na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC), da PEC 164/2012, que propõe alterar a Constituição brasileira e proibir o procedimento de interrupção da gravidez em qualquer situação, inclusive forçando vítimas de estupro a seguirem com a gestação. E, ainda, na Comissão de Administração e Serviço Público (CASP) no caso do PL – Projeto de Lei (4953/2016), que criminaliza ONGs que recebem financiamento internacional para viabilizar acesso, atendimento e informações às vítimas de violência sexual. Ambas as votações visam acabar com a já restrita legislação que permite o aborto no Brasil.

•                        Disputa eleitoral e direito ao aborto

A questão do acesso ao aborto de meninas, mulheres e pessoas que gestam foi mencionada em dois dos seis encontros televisionados e/ou transmitidos pela internet, promovidos por veículos da imprensa tradicional, durante o segundo turno do pleito (de 7 a 26 de outubro de 2024). “Muitas pessoas, especialmente as vítimas de estupro, foram impactadas com a diminuição do serviço de aborto previsto em lei. E este impacto tem a ver diretamente com decisões da gestão municipal”, ressalta uma profissional da saúde que preferiu não se identificar.

A menção sobre a queda da oferta dos serviços se refere ao fechamento do hospital e maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS). Desde dezembro de 2023, a Prefeitura encerrou o atendimento e proibiu que a unidade realizasse a assistolia fetal, procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde, quando a gravidez é interrompida após mais de 22 semanas. E, ainda, a gestão municipal e o Cremesp – Conselho Regional de Medicina de São Paulo – continuam sendo investigados pelo Ministério Público devido ao vazamento de prontuários das pacientes e pelos processos acionados contra os médicos que realizavam seu trabalho, ou seja, faziam o procedimento de aborto legal previsto em lei, na unidade da zona norte de São Paulo.

A interrupção dos atendimentos na unidade médica também serviu de mote para a questão na sabatina UOL/Folha com Boulos. O candidato comentou sobre a atuação da mãe, a infectologista Maria Ivete Boulos, coordenadora do Núcleo de Atendimento à Violência Sexual do hospital das Clínicas da USP e reforçou a promessa de “cumprir a lei”.

Com tudo isso, e o encerramento do oferecimento do serviço pelo SUS, relatou a profissional de saúde, pacientes enfrentaram severas complicações por não conseguirem realizar o aborto na unidade hospitalar, como por exemplo, mulheres que buscaram atendimento, inclusive em casos de anencefalia previstos por lei, ou tiveram agravamento de saúde por não acessar a interrupção da gravidez em tempo abreviado, e precisaram buscar serviços em outras regiões de São Paulo.

Nos 21 dias de segundo turno das eleições na cidade de São Paulo, período de alta visibilidade de candidatos e de oportunidade para qualificar o debate público em relação a questões decisivas para a população, o tema do aborto não teve espaço. No debate da TV Record/Estadão, durante o confronto direto entre os então elegíveis, a palavra “aborto” apareceu três vezes. Em uma pergunta feita por Nunes a Boulos, sobre a suposta “defesa da legalização” do direito ao aborto, o deputado federal e candidato do PSOL se posicionou sobre o cumprimento da legislação nos três casos previstos em lei, e ressaltou a inação da gestão quanto a reabertura do hospital Vila Nova Cachoeirinha.

De acordo com dados do DataSus, divulgados em matéria da Folha de S. Paulo, houve diminuição nos atendimentos de aborto realizados na cidade de São Paulo na última gestão de Nunes: nos sete primeiros meses de 2024, 15% dos atendimentos, ou seja, 43 internações de procedimento de abortos legais foram realizadas em São Paulo. Comparado ao mesmo período do ano passado, o acesso ao direito teve queda de sete pontos percentuais. Em 2023, serviços municipais de saúde fizeram 29% dos abortos legais, sendo 158, dos quais 124 foram feitos no hospital Vila Nova Cachoeirinha.

Para a advogada Rebeca Mendes, os debates não tiveram aprofundamento necessário: “dizer que a decisão é técnica ou que prometeu à mãe são respostas fracas de candidaturas à administração de uma das maiores cidades do país”, enfatiza a fundadora do Projeto Vivas, que reforça a falta de compromisso real com o tema. A organização não-governamental e sem fins lucrativos, criada em 2020, com o intuito de ser ponte de pessoas para chegar em serviços de aborto legalizado e seguro do Brasil ou no exterior. A ONG atendeu 42 mulheres no primeiro semestre de 2024 e 61 no ano passado. Número expressivo se comparado aos atendimentos feitos pelo SUS no mesmo período.

A escassez sobre o tema do aborto no debate eleitoral foi refletida no plano de governo dos candidatos. O de Boulos citava o “protocolo municipal de atendimento e acolhimento ao aborto legal, complementar ao do SUS (Sistema Único de Saúde), com a ampliação de profissionais com atuação específica para realizar o atendimento”. Já o de Nunes mencionava apenas: “teremos uma atenção especial com a saúde da mulher mediante ampliação de serviços de prevenção, tratamento e planejamento familiar, além de campanhas educativas sobre direitos reprodutivos”.

E por qual motivo o tema do aborto, e suas intersecções com violência, raça, gênero, não foram massivamente considerados pelos candidatos?

“A estigmatização social do aborto distorce o adequado debate político levando para o campo da moral e religião”, pontua o médico tocoginecologista e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, Cristião Rosas. Profissional que em 1989 aceitou integrar o treinamento do primeiro programa público de aborto legal no país, no Hospital de Jabaquara, para prestar atendimento emergencial às vítimas de violência sexual e realizar interrupção da gravidez prevista em lei em São Paulo, na então gestão de Luiza Erundina (Então filiada ao PT).

Para ele, “a política em tempos de eleição precisa incluir o aborto como cuidado em saúde, é essencial enfatizar a necessidade da implantação de políticas públicas que garantam a qualidade da atenção e do acesso ao aborto legal, seguro e gratuito”, reforça Rosas.

De acordo com a Secretaria de Saúde de São Paulo, atualmente existem quatro hospitais que fazem os procedimentos, são eles: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, no Tatuapé e Hospital Municipal Tide Setúbal, em São Miguel (ambos na zona leste), Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha, em Campo Limpo (zona sul) e Hospital Municipal e Maternidade Mário Degni, no Jardim Sarah (distrito do Rio Pequeno, zona oeste).

A respeito da reabertura da unidade hospitalar Vila Nova Cachoeirinha, em matéria divulgada pela Folha de S. Paulo, no dia 21 de novembro, mesmo com a fila da endometriose zerada – motivo pelo qual a atual e reeleita gestão municipal justificou o fechamento dos atendimentos no hospital Vila Nova Cachoeirinha – não há previsão de que o serviço de aborto legal seja retomado na unidade hospitalar. E, ainda, acerca da investigação do órgão público, a Secretaria de Saúde do município de São Paulo foi procurada para se pronunciar e, até o momento, não se posicionou.

A ideologização da pauta do aborto também prejudica a compreensão social acerca da necessidade de elaborações coletivas, da ordem do interesse público, quanto ao direito sexual e reprodutivo. Um exemplo é o caso “Roe v. Wade” nos Estados Unidos. A então decisão que garantia o direito das mulheres pelo aborto até o primeiro trimestre de gravidez, protegido nacionalmente desde 1973 foi anulada pela Suprema Corte dos EUA, em junho de 2022.

Para a pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, Sônia Correa, a revogação de Roe v. Wade é resultado de um processo sistemático de 50 anos de investimento da ultradireita e das forças antiaborto. “Eles começaram se reorganizar e se reconfigurar em seguida da decisão nos anos 70, configurando isso que eu chamo de a “revolução conservadora” dos nossos tempos. Foi um esforço de 50 anos, com ampla mobilização social, captura de corações e mentes, propaganda, intervenção no judiciário, no legislativo em níveis estaduais, somado a isso, uma massiva produção de conhecimento conservador e distorcido sobre aborto e muito dinheiro.” De acordo com Sônia, “O tema do aborto é central para ultradireita. Não é a pauta moral, como se diz no Brasil, não é a pauta dos costumes, como se fosse secundária, não é. Gênero e aborto são pontos modais do projeto de sociedade da ultradireita, que tem estado em ascensão no mundo nos últimos 10 anos”, enfatiza.

•                        Engajamento dos movimentos sociais segue constante pelo direito ao aborto

Durante as eleições municipais do último mês, várias frentes de mobilizações sociais pró direitos, pela atenção, cuidado e acesso gratuito e seguro ao aborto, realizaram atos pautando o tema. A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto lançou a campanha “Defender a democracia é votar em quem luta por justiça reprodutiva e aborto legal no SUS”. A ação deu luz a necessidade de múltiplas reinvindicações, como zerar gravidez infantil nas cidades, estabelecer educação sexual nas escolas municipais, defender direitos de livre exercício da profissão para profissionais do SUS e o fim da violência obstétrica, além claro, do acesso à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Com isso, a iniciativa convocou candidatos a assinarem uma carta-compromisso se aliando a promoção de direitos sexuais e reprodutivos.

E, mais, as manifestações públicas foram amplamente convocadas durante o pleito, a última denominada “Reabre Cachu” três dias antes do segundo turno entre Nunes e Boulos em São Paulo, se concentrou em frente ao prédio da administração municipal, no Viaduto do Chá. As manifestantes demandavam a imediata reabertura do hospital Vila Nova Cachoeirinha. Para Eliane Sá Sanches, estudante de Serviço Social, “ampliar a rede de saúde e atenção às mulheres cis e trans deveria ser o foco principal das candidaturas, assim como pensar projetos de lei que reconheçam nossas particularidades. O aborto é direito, não questão de opinião”, pontua.

•                        Impactos e barreiras da falta de acesso ao direito que deve ser garantido pelo Estado

Meninas, mulheres e pessoas que gestam sofrem frontalmente as consequências da ausência do direito ao aborto, garantido pelo Código Penal desde 1940. Aliás, no próximo mês, o direito completa 84 anos. De acordo com o artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro, fica explícito o direito ao abortamento quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a vida e saúde da pessoa gestante. A ele, se une mais um permissivo de 2012, conseguido por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF): ao autorizar interrupção quando a gestação for de feto anencéfalo, ou seja, o feto não possuir cérebro.

Uma barreira importante para conhecer e chegar ao aborto previsto em lei é a falta de produção informativa qualificada sobre direitos sexuais e reprodutivos aliada às restrições de informação nos canais de órgãos públicos. De acordo com o Breve Panorama sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil, levantamento realizado pela ARTIGO 19 em 2018, dos 27 órgãos de saúde estaduais verificados, 20 não informam as situações em que o aborto é legal no Brasil. Em 25 deles, não havia publicação de lista de serviços ou unidades hospitalares com condições de oferecer suporte ao abortamento legal. Apenas três sites estaduais e um municipal informaram todas as situações em que a interrupção da gestação é legalizada no país.

Ao falar de políticas públicas, é importante compreender a questão atrelada ao fenômeno da violência sexual, como abrangente a outras demandas ligadas à atuação do poder público. Conforme explica Daniela Pedroso, psicóloga que atuou por 26 anos no antigo hospital estadual Pérola Byington, “o direito ao aborto deve ser entendido, antes, com a questão da violência sexual. As pessoas são violentadas em situações cotidianas, indo ou voltando do trabalho, passando por uma rua sem iluminação, com pouco policiamento. Tudo isso, tem a ver com a atuação ou omissão de órgãos públicos”, reitera.

A violência sexual é uma realidade diária. Além das ocorrências em espaços públicos, há também alta incidência da violência intrafamiliar, igualmente de responsabilidade dos órgãos públicos, que nestas circunstâncias devem disponibilizar uma rede de atendimento, prioritariamente em saúde, mas também em assistência social, jurídica e de segurança às pessoas vitimadas. Segundo dados do Sinan NET (Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Data SUS), a cidade paulistana somou 7.838 notificações de violência sexual em 2023. Destes casos, mais de 400 resultaram em gravidez, a maioria dos estupros aconteceu em casa, do companheiro ou de familiares. Todas essas vítimas tinham direito à acesso emergencial ao procedimento do aborto no SUS.

Para Silvia Ferraro, co-vereadora da Bancada Feminista do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo, a Justiça Reprodutiva, dimensão ampliada e interseccional concebida por mulheres negras sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos e que contemplam a justiça social como elemento fundamental, deve estar presente nos planos de governo da gestão municipal, tendo em vista assegurar planejamento familiar e a saúde reprodutiva para todas as pessoas. Segundo a parlamentar, a atuação do poder público efetiva ou limita direitos. Para ela, “o aborto legal depende muito da ação dos serviços e dos servidores públicos que estão na ponta, sob a direção principalmente dos governos municipais”, pontua.

A repercussão da falta de garantias no quesito de Direitos Sexuais e Reprodutivos é sentida pela população que, inclusive, é majoritariamente composta por mulheres cis e trans: recorrentemente vitimadas pela violência sexual na cidade de São Paulo. De acordo com o Censo de 2022, os habitantes da capital paulistana chegam a 11.451.999 pessoas, sendo 53% mulheres e 47% homens.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, no estado de São Paulo, os casos de violência sexual contra mulheres aumentaram de 2.922, em 2022, para 3.227, em 2023. Já quando às vítimas meninas de até 14 anos, circunstância que se enquadra como estupro de vulnerável, os números partem de 12.865 notificações, em 2022, e chegam a 13.537, no ano subsequente. Por fim, nacionalmente, dados revelados no estudo publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), indicam: mulheres negras apresentam probabilidade 46% maior de fazer um aborto, em todas as idades, em relação às mulheres brancas. Isso significa que para cada 10 mulheres brancas que fizerem aborto, haverá 15 mulheres negras na mesma situação. Este achado é resultado de uma análise com perspectiva de raça da Pesquisa Nacional de Aborto, elaborada nos anos de 2016, 2019 e 2021. Mesmo sendo dados dimensionados a partir da cidade, estado e nível nacional, há possibilidade de mensurar o efeito da violência para meninas, mulheres cis e trans e pessoas que gestam, especialmente as pertencentes aos grupos historicamente vulnerabilizados.

•                        Direitos sexuais e reprodutivos e população masculina

Saúde e políticas públicas voltadas à população transmasculina são ainda mais raras, especialmente na dimensão dos direitos sexuais e reprodutivos e da atenção ao aborto. Sobre o enfoque do tema nos debates eleitorais do último mês, Kyem Ferreiro, coordenador geral do IBRAT SP – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, considera a defesa do aborto como pauta inegociável e a redução do acesso, sem dúvida, uma sentença de morte para pessoas que gestam.

Segundo ele, “não podemos permitir uma administração conservadora que comprometa a vida das pessoas e negue o acesso a um direito fundamental. Infelizmente, essa questão é frequentemente utilizada como um ponto sensível em debates eleitorais, enquanto o ataque ao serviço se manifesta em operações de sucateamento e fechamento de unidades municipais de saúde, como ocorreu na gestão o Ricardo Nunes”, reforça.

Kyem retoma o conceito de Justiça Reprodutiva, ao enfatizar o conjunto complexo de opressões e hierarquias reprodutivas, que se baseiam em abusos ligados à raça, classe, gênero, orientação sexual e que devem ser lidos não como aditivos, mas integrativos. E lembra que também nesta perspectiva a população trans é frequentemente desconsiderada. De acordo com ele, é urgente reconhecer que as políticas de saúde pública têm falhado em atender adequadamente às necessidades específicas, especialmente das transmasculinidades negras que sofrem violências de cunho racista e transfóbico, sendo submetidas às métricas cissexistas de um sistema elaborado a partir de uma perspectiva branca e cisgênera.

E segue, “um bom começo para construir mecanismos que melhorem o atendimento e acolhimento desses corpos, de forma equitativa e inclusiva, é incluir a diversidade de transmasculinidades e pessoas não-binárias no processo de ampliação do olhar da justiça reprodutiva”, salienta.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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