sábado, 30 de novembro de 2024

'Isenção de IR até R$ 5 mil é medida eleitoreira de Lula', afirma economista Samuel Pessôa

A decisão do governo de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil, em meio a uma crise fiscal, é uma "medida eleitoreira", de olho na disputa presidencial de 2026, critica o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office.

Na sua leitura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mira o eleitorado de classe média, com renda de R$ 3 mil a R$ 5 mil, para fortalecer sua tentativa de reeleição.

A expectativa do Ministério da Fazenda é aprovar o aumento da isenção, hoje limitada a dois salários-mínimos (R$ 2.824), no Congresso no próximo ano, para que ela entre em vigor em 2026.

O problema, diz Pessôa, é que a medida está sendo proposta num momento de desequilíbrio das contas públicas e tende a agravar esse quadro, provocando aumento de inflação no país.

Após o anúncio da proposta, o dólar disparou e chegou a valer mais de R$ 6 nesta quinta-feira (28/11), o que deve encarecer produtos importados ou produzidos no Brasil, mas cotados internacionalmente, o que inclui alimentos.

"A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica", afirma Pessôa.

"Uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?", questiona em outra trecho da entrevista.

A proposta de aumentar a isenção veio junto com outras medidas de cortes de gastos e a previsão de criar um imposto mínimo de 10% sobre rendas mensais de mais de R$ 50 mil. A projeção da Fazenda é economizar R$ 70 bilhões em dois anos.

Para o economista, os cortes anunciados são positivos, mas insuficientes para evitar a explosão da dívida pública, devido à tendência de crescimento de despesas obrigatórias, como aposentadorias, acima da expansão econômica do país.

A reação negativa do mercado financeiro veio justamente com a disparada do dólar, que gerou reação da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann. " É impressionante a especulação contra o Brasil", escreveu na rede social X.

Para Pessôa, o dólar poderia estar a R$ 4,50, não fosse o aumento da percepção de risco que está provocando saída de investidores.

"É difícil a esquerda entender o problema porque a esquerda adora uma teoria conspiratória. [...] Se o mundo todo não está vindo investir aqui, é porque o mundo está vendo um risco que tem que ser encaminhado. Porque desequilíbrio fiscal não é uma coisa pequena", reforça.

<><> Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

·        O governo surpreendeu ao anunciar o esperado pacote de corte de gastos com medidas tributárias. Como avalia esse anúncio conjunto?

Samuel Pessôa - Acho que ter misturado controle de gasto com reforma da tributação da renda, uma medida que tem claro caráter eleitoral, foi ruim. Essa medida de aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil por mês é uma decisão do Lula pensando na disputa eleitoral de 2026.

Ele avalia que quem ganha abaixo de R$ 2 mil, R$ 3 mil por mês vota nele e quem ganha acima de R$ 5 mil vota na direita, e aí essa é a turma [renda entre R$ 3 mil e R$ 5 mil] que ele está disputando.

Então, é uma medida que tem um caráter eleitoral e é contra os problemas que nós temos porque a gente tem um problema fiscal [desequilíbrio entre receitas e despesas].

Inclusive, uma das medidas que está no pacote, é a previsão de que, se as metas de superávit primário não forem atendidas, a partir de 2027 serão acionados gatilhos [para conter gastos]. E um deles é que não pode dar nenhuma desoneração adicional. Então, ele começa um pacote aumentando a desoneração, percebe a inconsistência?

Agora, as medidas em si de controle de gastos são bem-vindas. São insuficientes para o tamanho do problema, mas são todas bem-vindas.

·        Os defensores da proposta de isentar a renda até R$ 5 mil e tributar mais o que ganham acima de R$ 50 mil dizem que é uma medida progressiva, positiva para a distribuição de renda. Discorda?

Samuel Pessôa - Eu acho que a medida é progressiva, ela reduz a desigualdade de renda. A gente sabe que o Brasil é um país muito desigual. Agora, qual é o foco? O foco é atacar o problema fiscal, porque o problema fiscal está gerando inflação e inflação é muito ruim para os mais pobres também. Então, o problema é resolver o fiscal ou reduzir a desigualdade do país hoje?

A questão de desigualdade é uma questão estrutural. O ministro tem dito que tem como objetivo fazer uma grande reformulação dos impostos de renda, com vistas a reduzir o grau de regressividade e talvez tornar os impostos de renda brasileiros mais progressivos. O ministro está absolutamente correto. Agora, isso demandaria uma revisão mais ampla de todos os impostos de renda. Não é isso que foi feito.

O que foi feito é uma medida que, no momento, no meu entender, é eleitoreira para que o presidente consiga que uma parte da população, cuja maioria não votaria com ele, passe a votar com ele em 2026 e um esparadrapo [a tributação dos mais ricos] para tirar [obter] uma fonte de receita.

Mas, tudo bem, vamos esperar a tramitação. Espero que o Congresso aprove tudo, porque o grande medo que fica é o Congresso aprovar a isenção, o aumento da tabela do Imposto de Renda, e não aprovar o imposto sobre os ricos. Aí cria um desequilíbrio fiscal, agrava o problema.

·        Como a renda média brasileira é baixa, uma parte grande da população entra nessa faixa de R$ 5 mil. Isentar essa faixa cria um impacto fiscal muito grande?

Samuel Pessôa - Eu acho que é muito ruim. Não sei os números exatos, mas é abrir mão de alguma coisa como R$ 50 bilhões de receita [o governo estima perdas menores, de R$ 35 bilhões, mas a proposta ainda não foi detalhada].

Seria interessante a gente ver um estudo: dada a estrutura de renda brasileira, dado o que ocorre em outros países, o que seria razoável de faixa de isenção de Imposto de Renda? Agora, essa decisão é de natureza política. Os economistas não têm muito o que dizer a respeito.

É uma arbitragem que o presidente, com toda a legitimidade da eleição majoritária, faz. E o Congresso avalia e aprova ou não. A única crítica que eu faço é que, a mim, não faz muito sentido esse tipo de discussão quando a gente está no meio de uma crise fiscal, com a dívida pública crescendo de forma explosiva.

·        E esse crescimento explosivo da dívida pública, na sua visão, impacta os mais pobres ao gerar inflação?

Samuel Pessôa – Exatamente. A pior coisa, para os pobres, é bagunça macroeconômica.

·        Isoladamente, essa medida de fixar uma alíquota mínima de 10% para os que ganham mais de R$ 50 mil por mês é positiva?

Samuel Pessôa - Aí tem que ver os detalhes. Eu acho que o esforço de mudar a legislação brasileira, tributando mais os ricos é positivo. Há sinais de que as altas rendas no Brasil, pagam pouco imposto. Essa medida é um esparadrapo, vai pegar um monte de coisa diferente. Eu não acharia que essa é a melhor maneira de tratar esse tema.

A questão é que há vários regimes tributários com regras diferentes. Tem gente que pagou na Pessoa Jurídica 34% e outros que pagaram na Pessoa Jurídica 5%.

Se na Pessoa Física ambos pagarem menos do que 10% da renda declarada, eles serão cobrados pela diferença até atingir 10% de alíquota média efetiva [segundo a nova proposta do governo], sem considerar que pagaram valores diferentes na jurídica.

Esse tema está sendo tratado desse jeito porque a área política do governo convenceu o Lula que, para deixar a esquerda mais feliz, como contrapartida de um programa de contenção de gastos, teria que vir alguma coisa na direção de melhorar a progressividade dos impostos e fizeram um esparadrapo. Dado que vai isentar até R$ 5 mil, é melhor ter esse imposto [sobre os mais ricos].

·        O desejado ganho eleitoral pode ser neutralizado com dólar e inflação mais altos?

Samuel Pessôa - Como professor de Economia, eu tenho dificuldade em fazer essa avaliação [de impacto político]. A impressão que dá é que o Lula está andando em gelo fino, porque ele fez uma escolha de inverter o ciclo político da despesa pública. Ele, de certa forma rasgou o Maquiavel [autor do clássico O Príncipe].

Você [normalmente] começa o governo com pé no freio do gasto público, arruma a casa, colhe os benefícios aos pouquinhos e, no final, se elege.

E o Lula por uma série de motivos, resolveu inverter e aprovou a emenda constitucional da transição [do governo Bolsonaro para o seu], que colocou R$ 170 bilhões a mais de gastos públicos permanentemente. Criou um problema pra ele mesmo e, portanto, o governo dele é sequestrado por essa escolha inicial.

E aí ele está fazendo uma conta de chegada: se ele não fizer nada [para conter os gastos públicos], o câmbio explode muito, gera inflação, eles perdem a eleição em 2026. Se ele fizer muita coisa, como o ajuste fiscal que ele está fazendo, já não é no início do governo, ele só tem um horizonte de dois anos, e essa arrumação de casa demora um tempo pra maturar. Então, talvez ele arrume a casa e ele não tenha tempo de colher os benefícios para se reeleger.

Ou seja, se ele não fizer nada, ele desorganiza muito a economia e chega mal em 2026. Se ele fizer o que precisa fazer, vai ser ruim no curto prazo, não dá tempo de ele colher, e aí também chega mal em 2026.

Então, o presidente Lula está tendo que fazer esse cálculo, que é uma conta de chegada difícil. Ele ganhou cinco eleições presidenciais [contando duas vitórias de Dilma Rousseff], ele entende desse business muito melhor do que eu. Mas parece que ele está brincando com fogo. Parece que, talvez, ele tenha errado o cálculo. Mas isso a gente vai ter que esperar a prova do pudim nas eleições e ver se ele ganha ou não.

·        O dólar disparou após o pacote, o que levou parte da esquerda a criticar o mercado. O que explica a disparada do dólar? Tem fundamento?

Samuel Pessôa - Se a gente olhar os fundamentos do câmbio, da economia brasileira, não tem fundamento. O Brasil está hiper barato. Você pega uma empresa brasileira avaliada em reais, aplica esse câmbio e calcula ela em dólar, ela está super barata.

A gente tem uma situação externa sólida, vai entrar poço do petróleo ano que vem, do pré-sal [trazendo mais dólares pro país com exportação]. A gente não tem uma situação externa problemática. Então, se a gente olhar fundamentos de comércio internacional e de contas externas, o câmbio deveria ser R$ 4,50.

Agora, é difícil a esquerda entender o problema porque a esquerda adora uma teoria conspiratória, e a esquerda acha que o mercado financeiro são três ou quatro caras poderosos que fazem um cartel entre si que comanda os preços. Não é assim. São milhares de pessoas de forma descentralizada, tomando decisões. Não tem conspiração, não tem coordenação. São as pessoas olhando [o cenário econômico] e defendendo o seu patrimônio, tomando as melhores decisões que elas podem, com as informações que elas têm.

Então, eu devolvo a pergunta para a esquerda: a Selic está em 11,25%, ela vai até 13,5% provavelmente, o país está hiper barato, o câmbio está quase seis reais, por que o mundo todo não está pondo dinheiro aqui dentro? Tudo bem, [eles acham que] a Faria Lima é conspiradora, não gosta do PT, não gosta do Lula, faz tudo isso [contra o governo]... Por que os fundos de investimento não vêm para cá? Eles são super sofisticados, é gente inteligente, eles precisam ganhar dinheiro. Aí tem um país inteiro hiper baratinho, com uma taxa de juros super alta, por que eu não ponho meu dinheiro lá para ganhar dinheiro? E as pessoas não estão vindo para cá.

Não faz sentido esse argumento, é uma loucura. Se o mundo todo não está vindo investir aqui, é porque o mundo está vendo um risco que tem que ser encaminhado. Porque desequilíbrio fiscal não é uma coisa pequena.

Qual o desequilíbrio fiscal brasileiro? Com as regras que nós temos, necessariamente a gente vai ter uma crise fiscal futura. Não é que tem desperdício do Estado brasileiro, não é que o Estado brasileiro joga dinheiro fora. O que acontece é que a gente tem regras, e a simples operação dessas regras obriga a uma trajetória da dívida pública que é explosiva.

Isso significa que a nossa sociedade não consegue se entender. Existe um conflito distributivo aberto, que não está solucionado. Agora, uma sociedade que vive conflito distributivo aberto e não soluciona, é uma sociedade que não tem estabilidade, em que ninguém vai investir, e quem tem dinheiro tira. Isso que está acontecendo.

·        As regras que você cita são as despesas obrigatórias?

Samuel Pessôa - Exatamente. A gente tem um problema de despesas obrigatórias que crescem a uma velocidade maior do que a economia. Lá com o [governo Michel] Temer, a gente resolveu esse problema [adotando o teto de gastos, que limitava o aumento das despesas à inflação]. Aí a sociedade não aceitou, elegeu o Lula, o Lula repôs esses problemas.

·        Críticos do teto de gastos adotado no governo Temer dizem que a regra levou ao sucateamento de alguns serviços públicos, que ficaram com menos receitas.

Samuel Pessôa - Eu entendo perfeitamente. Então, esse que é o conflito distributivo. As pessoas querem o Estado maior, mas aí essas mesmas pessoas não querem pagar mais imposto. E o mundo todo diz: naquela sociedade, os caras não se entendem. Caíram numa crise fiscal profunda, aí impicharam a presidente e arrumaram a coisa. Aí teve uma eleição, o novo presidente não gosta dessa arrumação, a sociedade não gosta, ele desfaz a arrumação e volta os problemas que tinha antes.

·        Como avalia as medidas para cortes de gastos, como a limitação do aumento do salário mínimo?

Samuel Pessôa - O governo diz que vai colocar a regra do salário mínimo dentro do arcabouço fiscal [limitando o reajuste anual a 2,5% acima da inflação] .

Isso quer dizer que a taxa de crescimento do salário mínimo real será a mesma taxa de crescimento do gasto total. O problema é o seguinte: as políticas públicas vinculadas ao mínimo crescem pela soma da taxa de crescimento do valor real do benefício com a taxa de crescimento do número de beneficiários.

Ora, o número de beneficiários no Brasil cresce com a demografia. Essencialmente é a terceira idade [pessoas que estão envelhecendo e se aposentam pelo INSS, com aposentadoria vinculada ao salário mínimo].

Bem, então a demografia que importa no nosso Welfare State [Estado do bem-estar social] é mais ou menos a terceira idade, o pessoal que está chegando aos 60 anos. Ora, no Brasil, 60 anos atrás, a taxa de crescimento populacional era quase 3%. Então, a quantidade de benefícios cresce a 3%, o valor real cresce a 2,5%, deu 5,5%.

Então, todas as políticas públicas do Estado de bem-estar social brasileiro, vinculado ao mínimo, por essa regra, tem que crescer 5,5%. Mas a economia cresce a 2,5% [essa taxa varia ano a ano, mas tem se mantido baixa na média]. Isso é uma impossibilidade lógica. Então, só pra te dar um exemplo das limitações do pacote.

Quando a gente pôs, lá no governo Temer, o salário-mínimo crescendo em termos reais a zero, não é porque o Temer é malvado e quer ferrar pessoas. É que, dada a demografia brasileira, é muito difícil dar aumentos reais de salário mínimo na atual circunstância nossa.

Aumento real de salário-mínimo contrata uma crise fiscal, uma crise fiscal contrata inflação, desorganização de emprego, outras coisas que são muito ruins. Ou ninguém se lembra de 2014 e 2016? A crise não aconteceu, foi uma invenção nossa?

·        Como está seu otimismo para a votação do pacote no Congresso?

Samuel Pessôa - Eu estou otimista com o Congresso. Se a gente olhar, o Congresso, nesse terceiro mandato do presidente Lula, tem sido muito parceiro do Executivo. Aprovou a reforma tributária, aprovou o arcabouço fiscal, aprovou um conjunto imenso de regras e leis que o ministro Haddad enviou para o Congresso Nacional para reduzir oportunidades de planejamento tributário [brechas para pagar menos impostos]. Tudo isso passou pelo Congresso.

Então, o Congresso não tem sido nenhum empecilho a ajuste fiscal. Tem a questão das emendas impositivas que, no meu entender, são muito ruins. Elas apareceram por um motivo: a sociedade elegeu presidentes fracos, tanto Dilma Rousseff como Jair Bolsonaro, e aí, quando o presidente é fraco, o Congresso vai lá e ocupa o lugar. Desfazer depois fica difícil.

Espero que o presidente Lula, com todo o talento dele, consiga, pelo menos em parte, desfazer. Uma parte já foi feita, é um dos efeitos positivos desse pacote, que prevê uma limitação para o crescimento das emendas e pega outra parte das emendas e põe metade na área da saúde. São medidas positivas.

·        Como avalia o desempenho do ministro Fernando Haddad, levando em conta as disputas internas dentro do governo?

Samuel Pessôa - Eu acho que Haddad está fazendo o melhor que ele pode. Eu avalio positivamente o trabalho dele. A gente sabe que esse ruído que deu, do anúncio de um pacote fiscal junto com uma desoneração, foi uma derrota pessoal dele. O presidente arbitrou [a disputa com a Fazenda] e a área política, digamos assim, ganhou.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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