Do pânico ao esquecimento: três anos da CPI
da Pandemia
Há poucos dias, uma
grande jornalista brasileira me disse: “Infelizmente, ninguém mais quer saber
da pandemia. Quando a gente publica algo a respeito, a audiência é quase zero,
você sabia? Um horror”. De fato, quando falamos da covid-19, em público ou na
vida privada, sentimos um crescente incômodo entre nossos interlocutores, com
demonstrações de impaciência ou até desprezo.
Como em tantos outros
processos de esquecimento que caracterizam a história do Brasil, somos
convidados, aberta ou veladamente, a “virar a página”. É preciso “seguir em
frente” rumo às pautas capazes de gerar “cliques e curtidas” nas redes sociais,
sob o falso pretexto de que “já se falou muito sobre a covid-19”. Digo falso
porque o excesso de conteúdo midiático sobre um assunto não significa, nem de
longe, que ele foi tratado de forma adequada, e ainda menos suficiente.
A ilusão de que a
pandemia é um assunto superado explica, em parte, o silêncio que cercou o
aniversário de três anos do relatório final da Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Senado Federal sobre a covid-19, entregue à Procuradoria
Geral da República em 27 de outubro de 2021, recomendando o indiciamento de
dezenas de pessoas, inclusive autoridades federais, por crimes relacionados à
pandemia.
Graças à sua enorme
repercussão, com tramas e personagens seguidos em todo o Brasil como um reality
show, a CPI foi decisiva para o futuro do Brasil ao evitar que a pandemia fosse
esquecida enquanto ainda estava em curso, por força de um contexto de brutal
desinformação sobre saúde pública e de grave omissão de órgãos de controle da
legalidade, tendo como horizonte as eleições presidenciais de 2022.
Recordar o
“engajamento” em torno da CPI é suficiente para demonstrar que, por si só, o
tema da gestão da covid-19 no Brasil não é desinteressante. Ao contrário, o
esquecimento coletivo de eventos tão marcantes não é natural. Ele envolve muita
luta e determinação, tanto dos que querem lembrar, como dos que preferem
esquecer.
De um lado, temos
familiares das vítimas que reclamam o caráter evitável das mortes de seus entes
queridos. As suas associações representativas continuam promovendo atividades
de preservação da memória e de busca por justiça, diga-se de passagem, sem o devido
apoio do Estado e da sociedade, como é o caso da Avico Brasil.
Há também milhares de
pacientes com a chamada “covid longa” sofrendo os efeitos persistentes de uma
doença que poderiam não ter contraído caso existisse prevenção eficaz;
trabalhadores da saúde e de outras atividades essenciais cujos relatos sobre a
linha de frente são ignorados; e tantos voluntários que ainda não tiveram
ocasião de contar sua experiência valiosa em incontáveis iniciativas sociais de
prevenção da doença e de garantia da vida.
Deste lado estão
igualmente artistas, entre eles os criadores de filmes monumentais como Quando
falta o ar, de Helena e Ana Petta, ou Eles poderiam estar vivos, de Gabriel e
Lucas Mesquita, que deveriam ser premiados e difundidos amplamente. Estão,
ainda, os projetos de construção de acervos sobre a covid-19, entre os quais
destaco o extraordinário Sou Ciência da Universidade Federal de São Paulo,
liderado por Soraya Smaili e Pedro Arantes; além de (não muitos) pesquisadores,
jornalistas, parlamentares e outros profissionais que persistimos na
investigação do que realmente aconteceu no Brasil, sendo diversos de nós alvos
de processos criminais e cíveis como forma de intimidação para que desistamos
do assunto e, sobretudo, que os resultados das nossas pesquisas sejam
desqualificados e não tenham eco.
Entre os que não
desistem de lutar, menciono, por fim, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e
o Conselho Nacional de Saúde, órgãos do Estado de inquestionável relevância e
legitimidade, que apresentaram uma nova representação criminal sobre os “crimes
da pandemia”, no dia 24 de outubro último, à Procuradoria Geral da República.
Diferentemente de
outras que já foram apresentadas anteriormente por entidades sociais,
parlamentares e partidos políticos, a representação dos Conselhos tem como
principal foco os conhecimentos de saúde pública e legislação sanitária, sem os
quais a correta interpretação do direito penal aplicável ao tema não é
possível. Para tanto, ela se baseia em subsídios fornecidos pelo Centro de
Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde
Pública da USP – elaborados por seu diretor, professor Fernando Aith, pelas
pesquisadoras Bianca Villas Bôas e Juliana Pontes, e por mim – na esteira de
outros estudos produzidos pelo Cepedisa, com o apoio da renomada organização
não governamental Conectas Direitos Humanos.
Cabe registrar que,
entre tais estudos, está a linha do tempo da disseminação da doença que,
segundo os senadores Humberto Costa e Randolfe Rodrigues, inspirou a criação da
CPI do Senado Federal, cujos autos integra oficialmente. Costa e Rodrigues
descrevem os bastidores da CPI no importante livro A política contra o vírus,
publicado em 2022.
Já do outro lado, dos
que promovem o esquecimento, estão, evidentemente, os supostos autores dos
crimes da pandemia, embora muitos deles jamais tenham negado o que fizeram. Ao
contrário, há quem defenda o legado mortal em nome da falsa proteção da economia
e do livre arbítrio. Para eles, quem violou os direitos humanos foram os
cientistas, as autoridades e os profissionais de saúde que se opuseram à
estratégia de incitação ao contágio, baseada na crença em duas teses que
rapidamente se comprovaram falsas: a imunidade de rebanho por contágio e o
alardeado “tratamento precoce”.
Fortalecidos pela
impunidade dos crimes da pandemia, em campanha para as recentes eleições
municipais, certos governantes manifestaram-se até contra a obrigatoriedade da
vacinação infantil, que vem salvando a vida de milhões de crianças brasileiras
ao longo de décadas. Alguns chegaram a declarar arrependimento por tentar
conter a covid-19, mas ainda assim foram eleitos tranquilamente. Com esses
líderes estão milhares de agentes públicos e privados que colaboraram com a
disseminação intencional da doença e que, beneficiados pela ausência de
investigação, ainda estão à sombra da lei. Somam-se aos que ganharam muito
dinheiro com o negacionismo e a desinformação, a exemplo da verdadeira
indústria criada em torno do dito tratamento precoce para a covid-19, em atividade
mesmo depois da comprovação científica da ineficácia dos medicamentos que
utilizam.
Entre os cúmplices do
esquecimento também está quem percebe os ataques à saúde pública como um
elemento qualquer do jogo político, no qual interesses eleitorais tudo
justificam, indiferentes à evidência de que o controle de doenças contagiosas
depende de comportamentos coletivos e individuais, e que a propaganda impune
contra a saúde pública nos tornará, em um futuro muito próximo, incapazes de
conter a propagação das enfermidades, ainda que queiramos contê-las.
Existem igualmente
aqueles que entraram em pânico durante a pandemia e vibraram como torcedores
durante a CPI, mas não querem mais falar da covid porque não suportam a
impotência diante da impunidade, nem a recordação do sofrimento vivido. Porém,
a negação não faz desaparecer o que ocorreu, que segue nos assombrando como um
fantasma. Pior ainda: acelera a chegada das próximas pandemias, ao deixar de
cobrar o devido planejamento e garantias de não repetição. Na mesma linha, há
os que afirmam, por ignorância, que já se falou demais da covid-19, quando, na
verdade, há um enorme volume de informações ocultas e um dever de reflexão
pifiamente cumprido pela sociedade.
No ramo dos negócios,
muitos pensam, até hoje, que manter o comércio aberto durante picos da pandemia
era o melhor para a economia, indiferentes às evidências de que países
promotores de fechamentos rigorosos e ordenados, por isto mesmo mais breves,
recuperaram suas economias muito mais rápido do que o Brasil. Até entre
financiadores de pesquisas, pasmem, existe quem acredite que podemos nos
preparar para a próxima pandemia sem investir na preservação da memória, e no
estudo aprofundado do que ela nos ensina.
Por fim, cito os que
defendem, hoje e sempre, a anistia de qualquer crime em nome da
governabilidade. As vítimas e familiares de vítimas da mais recente ditadura
militar brasileira (1964-1985) bem conhecem esse argumento que, assim como em
outros casos de graves violações de direitos humanos, redunda invariavelmente
na repetição cíclica dos horrores.
É penoso constatar que
o bloco do esquecimento está ganhando o jogo do futuro do Brasil. A apatia e o
constrangimento ao lembrar de crimes cujo cometimento assistimos “ao vivo e em
cores” durante a pandemia evoca um “pensamento cheio de esquecimento”, expressão
que o xamã yanomami Davi Kopenawa usou para definir o modo de pensar dos
brancos, no magistral livro A queda do céu, publicado em 2011.
No ambiente
universitário, mais do que ninguém, sabemos o que significa virar uma página
sem lê-la. A comunidade científica está ciente de que o final desta história
será o seu recomeço, garantido pela impunidade que se avizinha. Venho dizendo,
desde 2020, que a covid-19 é uma questão de memória, verdade e justiça. Se o
bloco da memória não aumentar, a próxima pandemia encontrará o Estado e a
sociedade brasileiros, especialmente as autoridades sanitárias, tão ou mais
desarmados diante do crime quanto estivemos diante da covid-19.
Fonte: Por Deisy
Ventura, no Jornal da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário