Carros na areia e 'sumiço' de duna: como
paraíso turístico de Jericoacoara virou líder em infrações ambientais
A atriz Gorete
Milagres, que se consagrou na TV brasileira com a personagem Filó, gravou uma
série de vídeos com aulas de "etiqueta" para turistas que pretendem
visitar o Parque Nacional de Jericoacoara, no litoral cearense.
"Quer subir na
duna? Passeio a pé? Ok. Passeio a cavalo? Ok. Bicicleta? Ok. Passeio com
veículo motorizado? Pode não!"
O vídeo foi feito em
parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
e divulgado ainda em 2022 nas redes sociais da atriz e do instituto.
Naquele ano, o parque
registrava um recorde interno: havia aplicado 83 multas a turistas e empresas
da região.
De 2022 pra cá, mais
multas ainda. No ano passado foram 243. Neste ano, 190 até outubro, superando
todas as outras unidades de conservação federais brasileiras (em número de
multas, não em valores). O levantamento foi feito pela BBC News Brasil a partir
de dados oficiais.
Estão longe, no
entanto, de serem as multas mais caras, geralmente aplicadas em casos de
impacto em grandes áreas e que envolvem crimes, como desmatamento ilegal, em
outras unidades.
Ainda assim, é um
número significativo: o valor das multas nos últimos dois anos em Jericoacoara
é maior do que todos os anos anteriores no parque somados desde a criação do
instituto.
Uma das principais
preocupações, segundo biólogos e geógrafos ouvidos pela BBC News Brasil, é com
o desaparecimento das características únicas que definem o parque e o seu
entorno, especialmente as dunas, que atraem milhões de visitantes.
"Segue o caminho
das baliza, preste atenção nas praca (placas). As praca diz procê onde ocê pode
e não pode passar. Se a fiscalização pega, ocê vai ganhar uma multa. Oh,
coitado!", diz Filó no material divulgado pelo instituto.
A atriz e empresária,
que possui e aluga imóveis de alto padrão na cidade, começou a frequentar Jeri
— como o local é conhecido — ainda em 2017, quando foi fazer um filme em
Fortaleza.
Ela contou à BBC News
Brasil que ficou encantada com a cidade, mas criticou a falta de cuidado com
questões ambientais.
"Jeri é uma
comunidade que foi organizada pelos moradores e, aos poucos, obteve grandes
conquistas, desde o tratamento de água, usina de reciclagem de lixo, a presença
do ICMBio. Mas gestões anteriores não prezaram pelo meio ambiente. Espero que o
novo prefeito seja mais rigoroso com isso", disse.
Para ela, no entanto,
a região já atingiu o limite e não tem mais para onde crescer.
"O turismo
nacional cresceu muito depois do aeroporto, e isso também levou a um progresso
meio desenfreado", citando exemplos como uso o da poluição sonora, com uso
indevido de caixas de som, e descarte irregular de lixo.
- De vila de pescadores a polo internacional de turismo
A região, que já foi
uma pequena vila de pescadores, é hoje um grande polo turístico e um atrativo
internacional pela beleza de suas praias, dunas e lagoas.
Criado em fevereiro de
2002, o Parque Nacional de Jericoacoara fica a cerca de 300 km da capital
Fortaleza, tem 8,4 hectares e foi o terceiro mais visitado no Brasil no ano
passado, com 1,4 milhão de visitantes.
Visitantes pagam uma
taxa de turismo sustentável de R$ 41,50 à Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara,
que dá direito à permanência por dez dias na vila.
"A partir da
década de 70 começaram a surgir os primeiros visitantes na vila. Eram grupos
que procuravam uma relação direta com a natureza. Na década de 90, é preciso
compreender os incentivos governamentais para o desenvolvimento do turismo no
Nordeste, principalmente em infraestruturas de acesso e diversas ações de
marketing turístico", explica o geógrafo e professor Davis de Paula, da
Universidade Estadual do Ceará (Uece).
"Nos anos 2000
outras práticas começaram a surgir e a partir daí Jericoacoara se tornou um
destino badalado, nacional e internacionalmente, e comercial", acrescenta.
O professor lembra que
a grande vitrine da cidade tem a ver com seu isolamento natural. "Ela está
de frente para o mar, entre um gigante campo de dunas, ou seja, uma área com
acessibilidade difícil. Essa acessibilidade já se torna um grande
passeio."
Em 2017 foi inaugurado
o aeroporto de Jericoacoara, o que potencializou ainda mais o fluxo turístico
da região.
"Para dar vazão a
esse fluxo a vila conta com mais de 300 meios de hospedagem. Há uma
infraestrutura secundária para dar uma capacidade de sustentação ao
desenvolvimento dessa atividade econômica como restaurantes, bares e outros
serviços", diz o geógrafo.
A partir deste ano,
serviços do parque serão administrados por um grupo privado, o Consórcio Dunas,
que prevê investimentos em infraestrutura para os próximos 30 anos.
Mesmo com a mudança, o
ICMBio continua sendo o órgão responsável pela administração, pesquisas
científicas, fiscalização e proteção ambiental.
- Transporte irregular e trânsito desordenado
A mensagem da
personagem Filó estava bem direcionada ao problema mais comum flagrado pelos
fiscais: o uso indevido de veículos motorizados, seja por pessoas que passeiam
em locais proibidos ou empresas que usam veículos sem autorização, por exemplo.
Parece incomum que um
órgão ambiental fiscalize carros, mas essa é uma preocupação prioritária: a
prestação de qualquer serviço de transporte terrestre é monitorada.
Quem trabalha na
região precisa fazer um cadastro, tanto na prefeitura quanto com o ICMBio.
É proibido circular
sem a documentação ou, como já flagrado em algumas situações,
"alugá-la" a outros prestadores de serviço.
Um estudo feito pelo
órgão apontou que um dos principais problemas para os moradores e visitantes é
o tráfego intenso e desordenado de veículos, que circulam pelas vias de terra
ou areia da vila, causando poluição sonora e riscos aos pedestres.
Isso acontece porque a
Vila de Jericoacoara, onde se concentram as atividades turísticas, é totalmente
circundada pela área do parque. E grande parte das atividades oferecidas
depende de carros.
Além de deixar mais
claras as regras do que pode e o que não pode dentro do parque, como a
proibição de alimentar ou importunar animais, esse credenciamento oficial tenta
também limitar o acesso e saber quem circula na região.
No mês passado, a
chefe do parque Kelly Ferreira Cottens assinou um termo que suspende o cadastro
de novos motoristas por tempo indeterminado.
"O descumprimento
das normas previstas na legislação ambiental, em especial no plano de manejo,
coloca em risco os objetivos de criação das áreas protegidas podendo acarretar
na perda da qualidade ambiental e, no caso de parques nacionais, gerar riscos
às paisagens que atraem os visitantes", disse Cottens, por e-mail, à BBC
News Brasil.
O diretor do Conselho
Empresarial de Jericoacoara, Marcelo Laurino, diz que o número elevado de
multas não surpreende.
"Hoje o parque
serve apenas como vias de acesso para entrar e sair da vila e as atividades do
turismo, infelizmente, estão organizadas praticamente em sua totalidade em
deslocamento de veículos. Esse quadro se agravou com a ampla oferta de
passeios."
Ele disse que essas
atividades, que acabam chamando mais turistas, podem comprometer a região.
"Não entendemos
que essa seja uma vocação de uma região em que as belezas e atrativos naturais
fazem parte de uma biodiversidade, embora árida, bastante sensível e, em muitos
aspectos, frágil."
Há outras medidas que
foram adotadas para tentar contornar o problema — um decreto publicado pela
governo local no ano passado proibiu a circulação de veículos automotores do
tipo UTV (uma mistura de carro e quadriciclo) na vila, nas proximidades de lagos,
lagoas, dunas ou qualquer outra área de preservação permanente.
A decisão foi tomada
depois de o Ministério Público do Ceará (MP-CE) ter cobrado a prefeitura por
mais ações de combate ao fluxo crescente de veículos sendo flagrados em locais
proibidos.
O problema com os
veículos já era previsto no plano de manejo do parque.
"Para reverter
essas pressões é necessário o estabelecimento de mecanismos de controle e
ordenamento sobre o tráfego de veículos na área do parque e vizinhanças,
avaliando os impactos e dando prioridade à conservação ambiental", dizia o
documento.
Para o biólogo e
professor Hugo Fernandes, da Uece, o aumento de multas reflete mais
fiscalização, pois os problemas sempre existiram.
"Temos o impacto
advindos do uso de veículos 4x4 (tipo de veículo com mais capacidade para ser
usado em estradas de terra ou pisos de baixa aderência, como areia), que causam
erosão no solo, e atrapalham a nidificação, ou seja, os ninhos de várias espécies
que dependem da vegetação de restinga. Temos também o problema da poluição
sonora, causada pelos paredões de som puxados por esses veículos 4x4. Já foi um
problema mais comum, mas ainda é um desafio a ser coibido, pois causa impacto
na biodiversidade."
- Erosão acelerada das dunas
Uma das principais
funções do Parque Nacional de Jericoacoara — ou seja, de existir uma estrutura
de Estado para monitoramento da área —, é a proteção das dunas, além de
espécies de plantas e aves de zonas costeiras. As dunas são consideradas o
principal atrativo da região por especialistas.
A diminuição e até o
"desaparecimento" dessas dunas tornou-se tema de preocupação, tanto
para pesquisadores quanto para os próprios moradores e empresas que atuam no
local.
As dunas se deslocam
pela ação dos ventos, processo conhecido como transporte eólico, e podem
desaparecer naturalmente. Mas especialistas veem impacto da atividade humana,
que pode acelerar esse processo natural, seja pelo grande fluxo de pessoas ou
pela ampliação não planejada da área urbana.
"O fluxo intenso
de visitantes gera impactos ambientais significativos, especialmente no sistema
dunar, que é bastante vulnerável. A presença constante de turistas e a pressão
sobre as dunas podem resultar, por exemplo, na compactação do solo, aceleração
do processo de erosão e degradação da vegetação nativa e alterações nos
processos naturais de formação e movimentação dessas dunas", diz Davis de
Paula, da Uece.
O próprio ICMBio já
divulgou diversos comunicados sobre o tema, em alerta aos turistas, vinculando
o problema ao transporte irregular.
"O trânsito de
veículo sobre as dunas provoca erosão, acelera a movimentação dos sedimentos e
danifica a paisagem. Por isso é proibido", disse o órgão, em uma
publicação nas redes sociais.
"A paisagem
modificada compromete a qualidade ambiental e afasta o turista que vem atraído
pela beleza do parque."
O órgão afirmou, em
nota, que realiza estudos de monitoramento ambiental do campo de dunas móveis,
em parceria com o Serviço Geológico Brasileiro e com a Universidade Federal do
Ceará.
A pesquisadora Adely
Silveira, também da Uece, estudou a evolução temporal da Duna do Pôr do Sol e
identificou dois conjuntos de fatores responsáveis pela diminuição das dunas:
os naturais, pelo encaminhamento das dunas em direção ao mar, e os de ordem antrópica
(causados pela ação humana), como a expansão acelerada da urbanização da vila
sobre os corredores de transporte eólicos, que alimentam as dunas.
Outro trabalho, uma
tese de doutorado apresentada por Gustavo Amorim Studart Gurgel, identificou
impacto nas dunas por fatores como urbanização não planejada na área, extração
clandestina de areia das dunas, presença de animais nas dunas e locais de passagem
dos areais, utilização da área para pasto de animais e trilhas para circulação
de veículos.
"Em Jericoacoara
você tem cerca de 40 trilhas [que levam à vila]. Você poderia organizar em uma
única trilha. Há muitas situações em que tem que haver o diálogo entre os entes
existentes para minimizar as ações da erosão na região", afirma Gurgel.
"No meu
entendimento, há uma falta de gestão da área como um todo, do turismo e da
ampliação da zona urbana. Esse crescimento, obstrui a passagem dos sedimentos.
Há muros de casas que já são aterradas pelos sedimentos, que vinham para
alimentar as praias e dunas.
Fonte: BBC News Brasil
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