A política direitista do Partido Democrata
abriu as portas para Trump
O momento populista
dos democratas chegou ao fim. Quatro anos depois de o então candidato Joe Biden
prometer assistência pública de saúde, leis favoráveis aos sindicatos, um
salário mínimo de 15 dólares, a legalização do direito ao aborto, ensino
superior gratuito e o fim do muro fronteiriço do presidente Trump, Kamala
Harris apresenta-se com uma plataforma xenófoba, anti-imigrante e
pró-empresarial. A administração Biden-Harris não só deixou de cumprir todas
essas promessas, como também abriu caminho para as forças reacionárias que
Harris pretendeu derrotar no 5 de novembro. O impulso inicial gerado pela
campanha Harris-Walz defendeu o status quo a partir da direita, com pouca
oposição – e, em alguns casos, apoio fervoroso – dos setores mais à esquerda do
partido.
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Promessas
progressistas não cumpridas
Sob pressão de
progressistas e de candidatos insurgentes como Bernie Sanders,
tanto as campanhas de Hillary Clinton em 2016 quanto de Joe Biden em 2020 foram
forçadas a fazer várias concessões à esquerda. Clinton prometeu opções de
ensino superior gratuito, por exemplo, e Biden chegou a prometer um salário
mínimo de 15 dólares e saúde pública. Nas primárias presidenciais democratas de
2020, alguns candidatos foram ainda mais longe: Harris propôs banir o fracking
(algo do qual já recuou), Pete Buttigieg queria abolir o colégio eleitoral, e a
maioria dos candidatos apoiou fornecer assistência médica para imigrantes
ilegais.
As eleições de 2016 e
2020 forçaram o establishment do Partido Democrata a lidar com duas forças
sociais emergentes e opostas, que surgiram após a crise econômica de 2008 e as
consequências materiais da erosão da dominação imperialista dos EUA no cenário
mundial. Pela direita, representada pela ascensão de Donald Trump e seu
movimento MAGA (Make America Great Again), isso se manifestou como uma coalizão
mista das classes trabalhadora e média, cujas condições de vida se tornaram
mais precárias e o "sonho americano" cada vez mais inalcançável.
Desiludido com o
regime bipartidário e sua defesa da globalização, esse setor aceita, em
diferentes graus, a visão apresentada pelos políticos de extrema direita, que
culpam a imigração, os direitos sociais dos grupos oprimidos, a intervenção
estrangeira e a regulamentação estatal pelos males da sociedade. Em
contrapartida, propõem um programa virulentamente nacionalista de "América
Primeiro". Essa coalizão está conquistando cada vez mais o apoio de
setores da burguesia: enquanto eleitores brancos com educação universitária se
inclinam cada vez mais para os democratas, muitos capitalistas dos setores de
tecnologia e finanças, assim como dos setores imobiliário, minerador e
energético, estão se voltando para Trump.
Pela esquerda, o
Partido Democrata enfrentou divisões internas diante de progressistas como
Bernie Sanders, que deram voz às aspirações de uma geração política cética em
relação ao capitalismo e moldada por processos sociais como o Occupy
Wall Street e o Black Lives Matter, além dos devastadores
efeitos das mudanças climáticas. Esses setores tiveram uma influência
significativa em um novo movimento operário que alcançou níveis inéditos de
combatividade após a pandemia, organizando-se não apenas para melhorar suas
condições de trabalho, mas também para questionar o caráter profundamente anti
operário das instituições norte-americanas. Sanders, e posteriormente figuras
como Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), ganharam destaque ao oferecer promessas
populistas de saúde pública e regulação das grandes empresas para financiar
programas de bem-estar social, desafiando a lógica do neoliberalismo clássico.
Ambos fenômenos
representavam um problema crescente para o Partido Democrata, já que setores de
sua base tradicional de eleitores da classe trabalhadora começaram a romper ou
se distanciar. Isso se manifestou nas campanhas presidenciais de Sanders em 2016
e 2020, que angariaram um apoio massivo. O desafio dos democratas foi conter
essas forças sociais. Dentro do próprio partido, isso significava usar a ala
progressista para alimentar as esperanças de sua base e canalizá-las em votos
para um partido fundamentalmente capitalista e imperialista. Em 2020, isso
significava oferecer políticas mais progressistas, com Joe Biden tentando
reconquistar setores da classe trabalhadora em risco de desertar para Trump ou
de se abster. Após efetivamente entrar na corrida para derrotar o
"sandersismo", Biden se aliou a Sanders para reconstruir sua imagem
como "o presidente mais pró-classe trabalhadora desde Roosevelt".
A campanha
Biden-Harris, como era de se esperar, abandonou ou suavizou significativamente
muitas de suas promessas progressistas, desviando-se para a direita em várias
questões. Na tentativa de se distanciar de seu papel como vice na administração
Biden, Kamala Harris adotou, em muitos aspectos, o programa da direita. Isso é
particularmente evidente em sua visão econômica, que abandona as promessas
populistas limitadas de Biden em favor da morna "economia de
oportunidade", projetada para evitar uma recessão que possa afetar os
lucros de seus doadores milionários e bilionários.
Diante da força de
Trump nas pesquisas, Harris também aderiu à guerra republicana contra a
imigração, tentando posicionar os democratas como "sérios" na
repressão a imigrantes e solicitantes de asilo, destacando seu apoio ao
fracassado "projeto de lei bipartidário de fronteiras". Quando
questionada sobre seu posicionamento em relação ao acesso de menores a terapias
de afirmação de gênero, Harris limitou-se a dizer: "Acredito que devemos
cumprir a lei", efetivamente alinhando-se aos ataques da extrema direita
contra pessoas trans em nível nacional. A candidata democrata fez poucas
referências às mudanças climáticas, prometendo, em vez disso, não proibir o
fracking. Outras políticas progressistas, como o aumento do salário mínimo e o
acesso à saúde pública, foram diluídas ou desapareceram completamente.
Enquanto isso, Harris,
assim como Trump, apoia firmemente o genocídio israelense contra os palestinos
e prometeu continuar financiando o ataque do Estado sionista à Gaza.
·
Não culpem os votantes
Alguns justificam o
deslocamento dos democratas para a direita apontando que o eleitorado
norte-americano também se moveu nessa direção. Com eleitores mais
conservadores, Harris supostamente não teria escolha senão se adaptar e adotar
políticas mais à direita. Até mesmo Bernie Sanders defendeu as mudanças de
postura de Harris, afirmando que ela precisa ser "pragmática" e fazer
"o que acredita ser necessário para vencer as eleições". Para Harris,
isso significa aproximar-se dos republicanos, incluindo fazer campanha ao lado
da conservadora Liz Cheney e prometer nomear um republicano para seu gabinete,
com o objetivo de conquistar eleitores indecisos e apresentar uma mensagem de
"unidade" bipartidária contra a ameaça de um segundo mandato de
Trump.
Sem dúvida, uma parte
do eleitorado norte-americano deslocou-se para a direita em algumas questões. A
resiliência contínua de Trump e a competitividade acirrada da campanha são
provas claras disso. Mas não é apenas a base de Trump que adota explicações conservadoras
para a incerteza econômica. Por exemplo, enquanto em 2020 apenas 28% dos
eleitores defendiam a redução da imigração, esse número subiu para 55% em 2024.
As pesquisas também mostram crescente apoio a proibições de atletas trans e
restrições a terapias de afirmação de gênero para jovens.
Essas mudanças na
opinião pública estão claramente ligadas às posturas reacionárias cada vez mais
difundidas pelos políticos e ao alarmismo da mídia. Contudo, também refletem
respostas reacionárias aos temores diante da instabilidade causada pela guerra no
Oriente Médio e na Ucrânia, o medo de uma recessão, e o declínio da influência
global dos EUA, tanto política quanto economicamente, na sua competição com a
China. Além disso, cresce o sentimento de que o Partido Democrata — defensor
histórico do neoliberalismo — não é capaz de gerenciar essas crises.
No entanto, em muitas
outras questões, os norte-americanos se deslocaram para a esquerda. Mais de 80%
dos eleitores apoiam o aumento do salário mínimo, 63% acreditam que o aborto
deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, e o apoio aos sindicatos
está em níveis históricos. A maioria dos eleitores de todos os partidos defende
medidas mais fortes para combater as mudanças climáticas, como priorizar fontes
de energia renováveis e alcançar a neutralidade de carbono. O fato de a
campanha de Trump ter sido obrigada a rejeitar publicamente o reacionário Projeto
2025 demonstra o quão impopulares — e politicamente tóxicas — são
muitas das propostas de extrema direita. Além disso, cresce o número de pessoas
que questionam o apoio incondicional dos EUA ao Estado de Israel. Entre os
jovens, em particular, há uma mudança significativa, com muitos se tornando
mais críticos ao capitalismo e mais receptivos ao socialismo.
Mas mesmo que os
norte-americanos tivessem se movido para a direita em todas essas questões,
isso não justificaria a adoção de políticas direitistas. Ao ceder terreno ao
trumpismo e adotar a retórica e as políticas republicanas em diversas áreas,
Biden, Harris e os democratas ajudaram a pavimentar o caminho para a extrema
direita. Longe de oferecer uma alternativa à agenda republicana cada vez mais
reacionária, os democratas normalizaram e perpetuaram discursos e políticas
como a anti-imigração. Como já foi apontado, "agora que ambos os partidos
estão tentando parecer duros com a imigração, faz sentido que eleitores cada
vez mais desconfiados da imigração se voltem para o candidato que,
essencialmente, construiu toda sua carreira demonizando os imigrantes."
O deslocamento dos
democratas para a direita não é meramente uma tentativa de seguir a opinião
pública. O foco de Harris em reforçar o status quo e revitalizar a viabilidade
do regime bipartidário — que agora inclui o trumpismo — também é uma resposta
ao ressurgimento do movimento operário e dos movimentos sociais que ganharam
força nos últimos anos. Com desafios internos e externos, o Partido Democrata
enfrenta crescente dificuldade em conter as aspirações progressistas de setores
da população que antes o viam como um veículo de mudança. Esse cenário se
reflete no papel em transformação da ala progressista do partido, especialmente
nos meses finais da corrida presidencial de 2024.
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Os progressistas e a
burocracia sindical facilitaram o giro à direita dos democratas
Alguns analistas, como
Branko Marcetic, da *Jacobin*, apontaram corretamente que os democratas se
moveram para a direita, apesar de um eleitorado cada vez mais progressista. O
que falta nesse diagnóstico, porém, é o papel reacionário que figuras
progressistas desempenharam no cenário político atual.
Com o apoio de Sanders
a Biden em 2020, a ala progressista do Partido Democrata foi praticamente
absorvida pela máquina do partido. Nos últimos quatro anos, o chamado
"Esquadrão" progressista — incluindo Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) e
Jamaal Bowman, entre outros — alinhou-se ao establishment e à administração
Biden em nome da unidade, desde sua intervenção contra a greve ferroviária de
2022 até o financiamento do sistema de defesa israelense Domo de Ferro.
Os moderados
consolidaram sua força nas eleições legislativas de 2022, reforçando a
estratégia dos democratas de deixar de lado questões raciais e LGBTQ+,
concentrando-se em temas como o aborto e políticas econômicas gerais, com o
objetivo de fortalecer os EUA na competição com a China.
As fissuras no Partido
Democrata, expostas em 2016, dissiparam-se rapidamente quando os progressistas
abandonaram grande parte de suas propostas políticas em favor de uma
"frente única" contra a extrema direita no Congresso. No entanto,
essa oposição à ameaça real da direita é enfraquecida quando a chamada ala
esquerda do partido se recusa a desafiar seu deslocamento para a direita.
A promessa de
"empurrar Biden para a esquerda", que deveria justificar o voto nos
democratas em 2020 e 2022, ficou pelo caminho. A distância entre as duas alas
do partido diminuiu à medida que os progressistas foram marginalizados ou se
aproximaram do centro, sem grandes ganhos em troca. Um exemplo claro é John
Fetterman, que, após ser eleito com o apoio dos progressistas, rapidamente
abandonou essa base, tornando-se defensor do genocídio e demonstrando que um
programa diluído de "populismo econômico" pode facilmente ser
cooptado pelo establishment político.
De fato, com os
democratas no poder, os progressistas — assim como líderes sindicais e de ONGs
— ofereceram uma cobertura "pela esquerda" a um partido capitalista e
imperialista, enquanto este desmantelava lentamente os programas sociais criados
durante a pandemia, adotava retóricas conservadoras, aprovava políticas
anti-imigração inspiradas diretamente no manual de Trump e financiava
genocídios.
As tensões dentro do
Partido Democrata ameaçaram ressurgir em torno da questão do apoio
incondicional dos Estados Unidos a Israel, mas até agora a liderança do partido
tem usado isso como uma forma de disciplinar e neutralizar os progressistas. A
deputada Rashida Tlaib ficou em grande parte sozinha em seu apoio à Palestina
após o lançamento da frente genocida de Israel em 2023, com muitos
progressistas defendendo o apoio militar e financeiro da administração Biden ao
Estado de Israel e se recusando a reconhecer o que estava acontecendo em Gaza.
Desde então, Tlaib foi alvo de críticas constantes, enquanto os democratas
permaneceram impassíveis enquanto ela se tornava alvo dos ataques islamofóbicos
da direita. As críticas mornas de Cori Bush e Jamaal Bowman, quase um ano após
o genocídio, não impediram que não fossem reeleitas. Talvez o mais condenável
seja que AOC tentou retratar Harris como defensora do povo palestino, mesmo
quando a própria Harris reafirmava seu apoio firme a Israel.
Com o pano de fundo de
um cenário mais à direita, onde a retórica nacionalista e antisistema de Trump
ganhou força, Harris se distanciou da ala progressista após assumir a liderança
da candidatura, descartando qualquer ilusão de que o Partido Democrata fosse
"radical" de qualquer forma. A ala esquerda do partido se alinhou
obedientemente, minimizando e normalizando as políticas anti-imigração dos
democratas, suas tímidas propostas econômicas e seu silêncio diante dos ataques
contra as pessoas trans.
Isso se manifesta de
duas formas. Por um lado, figuras como AOC abraçaram Harris e seu programa com
entusiasmo, jogando videogames com Walz, atacando candidatos de partidos
terceiros no Instagram ou fazendo campanha por Harris. Esse discurso
progressista oculta o quão direitista a campanha de Harris se tornou.
Outras figuras que
representaram as aspirações progressistas de setores da classe trabalhadora,
como o presidente do sindicato automobilístico UAW, Shawn Fain, tentam pintar
uma imagem de continuidade com verniz pró-trabalhador e pró-direitos civis da
administração Biden, mesmo quando Harris tenta se apresentar como candidata da
mudança. Harris tem menos vínculos políticos com o movimento operário do que
Biden. Ela fez menos propostas aos eleitores da classe trabalhadora,
concentrando-se mais na classe média. Como resultado, depende fortemente da
burocracia sindical para apresentar seus argumentos aos membros dos sindicatos,
uma tarefa difícil, já que amplos setores dos trabalhadores veem Trump com bons
olhos.
Por outro lado, a
campanha conservadora de Harris afasta setores de eleitores cada vez mais
desiludidos com os democratas, especialmente no que diz respeito ao genocídio
em Palestina. Isso obriga os progressistas a saírem em defesa do "mal
menor". Por exemplo, Sanders está incentivando os eleitores a se unirem
contra Trump, escolhendo Harris; dando a impressão de criticar Harris pela
esquerda, ele tenta canalizar o desgosto pelo genocídio em Gaza diretamente de
volta para o partido imperialista que o tornou possível. Sanders pede que
aqueles que se opõem ao genocídio aceitem isso em nome da proteção dos direitos
reprodutivos.
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Como combatemos a
direita
A guinada à direita
representada pela campanha de Harris não é apenas uma estratégia cínica do
Partido Democrata; faz parte de uma tentativa de fortalecer um regime
bipartidário enfraquecido em um cenário incerto de desafios econômicos e
políticos externos e internos, um processo que se acelerou nos últimos quatro
anos. Ela implica na disciplina da esquerda com a ajuda da ala progressista e
das ONGs e na normalização das políticas de direita, mesmo quando os democratas
se pintam como a antítese de Trump. Por sua vez, os membros da ala progressista
do Partido Democrata não apenas renunciaram às suas próprias propostas
políticas, outrora ambiciosas, que poderiam ter atraído os eleitores de
direita, mas também dificultaram a luta contra a extrema direita ao não
apresentar oposição significativa ao seu abraço pelo partido. Um voto a favor
de Biden não impediu os ataques contra os direitos reprodutivos ou contra as
pessoas LGBTQ+ e o direito ao voto. Tanto os democratas quanto os republicanos
intervieram para reprimir os movimentos que lutam para proteger nossos direitos
democráticos. Pintar os democratas como um mal menor é simplesmente nos enviar
para a guerra desarmados.
Mesmo que Harris
tivesse ganhado, teríamos que continuar lutando contra a extrema direita e
pelos direitos de todos os oprimidos e explorados. Mesmo a vitória de Harris
significaria a continuidade do genocídio na Palestina, mais ataques contra
migrantes e pessoas trans, e mais capitulação diante do capital.
Devemos lutar de forma
completamente independente dos Democratas, que viraram à direita e jogaram os
trabalhadores e os oprimidos, como os imigrantes, sob o caminho do que era
sempre politicamente conveniente fazê-lo. Eles estão firmemente ao lado do capitalismo
e do imperialismo, e devemos resistir à tentação de colocar nossas forças atrás
de um partido menos pior, especialmente um que adote cada vez mais políticas de
direita. Isso também significa não capitular diante de nenhuma virada
reacionária, seja de políticos ou das massas. A luta contra a extrema direita
anda de mãos dadas com a luta pelos imigrantes, os direitos trans, o aborto e
por todos os grupos oprimidos e explorados.
Os sindicatos, os
movimentos sociais, os estudantes e outros grupos precisam se unir numa frente
única, organizando-se independentemente do Partido Democrata. A partir dessa
frente unida, precisamos construir uma alternativa política aos dois partidos
do capital. Somente uma organização independente da classe trabalhadora com um
programa revolucionário pode derrotar a direita.
Fonte: Por Jimena
Vergara e Sybil Davis, em Esquerda Diário
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