terça-feira, 12 de novembro de 2024

A política direitista do Partido Democrata abriu as portas para Trump

O momento populista dos democratas chegou ao fim. Quatro anos depois de o então candidato Joe Biden prometer assistência pública de saúde, leis favoráveis aos sindicatos, um salário mínimo de 15 dólares, a legalização do direito ao aborto, ensino superior gratuito e o fim do muro fronteiriço do presidente Trump, Kamala Harris apresenta-se com uma plataforma xenófoba, anti-imigrante e pró-empresarial. A administração Biden-Harris não só deixou de cumprir todas essas promessas, como também abriu caminho para as forças reacionárias que Harris pretendeu derrotar no 5 de novembro. O impulso inicial gerado pela campanha Harris-Walz defendeu o status quo a partir da direita, com pouca oposição – e, em alguns casos, apoio fervoroso – dos setores mais à esquerda do partido.

·        Promessas progressistas não cumpridas

Sob pressão de progressistas e de candidatos insurgentes como Bernie Sanders, tanto as campanhas de Hillary Clinton em 2016 quanto de Joe Biden em 2020 foram forçadas a fazer várias concessões à esquerda. Clinton prometeu opções de ensino superior gratuito, por exemplo, e Biden chegou a prometer um salário mínimo de 15 dólares e saúde pública. Nas primárias presidenciais democratas de 2020, alguns candidatos foram ainda mais longe: Harris propôs banir o fracking (algo do qual já recuou), Pete Buttigieg queria abolir o colégio eleitoral, e a maioria dos candidatos apoiou fornecer assistência médica para imigrantes ilegais.

As eleições de 2016 e 2020 forçaram o establishment do Partido Democrata a lidar com duas forças sociais emergentes e opostas, que surgiram após a crise econômica de 2008 e as consequências materiais da erosão da dominação imperialista dos EUA no cenário mundial. Pela direita, representada pela ascensão de Donald Trump e seu movimento MAGA (Make America Great Again), isso se manifestou como uma coalizão mista das classes trabalhadora e média, cujas condições de vida se tornaram mais precárias e o "sonho americano" cada vez mais inalcançável.

Desiludido com o regime bipartidário e sua defesa da globalização, esse setor aceita, em diferentes graus, a visão apresentada pelos políticos de extrema direita, que culpam a imigração, os direitos sociais dos grupos oprimidos, a intervenção estrangeira e a regulamentação estatal pelos males da sociedade. Em contrapartida, propõem um programa virulentamente nacionalista de "América Primeiro". Essa coalizão está conquistando cada vez mais o apoio de setores da burguesia: enquanto eleitores brancos com educação universitária se inclinam cada vez mais para os democratas, muitos capitalistas dos setores de tecnologia e finanças, assim como dos setores imobiliário, minerador e energético, estão se voltando para Trump.

Pela esquerda, o Partido Democrata enfrentou divisões internas diante de progressistas como Bernie Sanders, que deram voz às aspirações de uma geração política cética em relação ao capitalismo e moldada por processos sociais como o Occupy Wall Street e o Black Lives Matter, além dos devastadores efeitos das mudanças climáticas. Esses setores tiveram uma influência significativa em um novo movimento operário que alcançou níveis inéditos de combatividade após a pandemia, organizando-se não apenas para melhorar suas condições de trabalho, mas também para questionar o caráter profundamente anti operário das instituições norte-americanas. Sanders, e posteriormente figuras como Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), ganharam destaque ao oferecer promessas populistas de saúde pública e regulação das grandes empresas para financiar programas de bem-estar social, desafiando a lógica do neoliberalismo clássico.

Ambos fenômenos representavam um problema crescente para o Partido Democrata, já que setores de sua base tradicional de eleitores da classe trabalhadora começaram a romper ou se distanciar. Isso se manifestou nas campanhas presidenciais de Sanders em 2016 e 2020, que angariaram um apoio massivo. O desafio dos democratas foi conter essas forças sociais. Dentro do próprio partido, isso significava usar a ala progressista para alimentar as esperanças de sua base e canalizá-las em votos para um partido fundamentalmente capitalista e imperialista. Em 2020, isso significava oferecer políticas mais progressistas, com Joe Biden tentando reconquistar setores da classe trabalhadora em risco de desertar para Trump ou de se abster. Após efetivamente entrar na corrida para derrotar o "sandersismo", Biden se aliou a Sanders para reconstruir sua imagem como "o presidente mais pró-classe trabalhadora desde Roosevelt".

A campanha Biden-Harris, como era de se esperar, abandonou ou suavizou significativamente muitas de suas promessas progressistas, desviando-se para a direita em várias questões. Na tentativa de se distanciar de seu papel como vice na administração Biden, Kamala Harris adotou, em muitos aspectos, o programa da direita. Isso é particularmente evidente em sua visão econômica, que abandona as promessas populistas limitadas de Biden em favor da morna "economia de oportunidade", projetada para evitar uma recessão que possa afetar os lucros de seus doadores milionários e bilionários.

Diante da força de Trump nas pesquisas, Harris também aderiu à guerra republicana contra a imigração, tentando posicionar os democratas como "sérios" na repressão a imigrantes e solicitantes de asilo, destacando seu apoio ao fracassado "projeto de lei bipartidário de fronteiras". Quando questionada sobre seu posicionamento em relação ao acesso de menores a terapias de afirmação de gênero, Harris limitou-se a dizer: "Acredito que devemos cumprir a lei", efetivamente alinhando-se aos ataques da extrema direita contra pessoas trans em nível nacional. A candidata democrata fez poucas referências às mudanças climáticas, prometendo, em vez disso, não proibir o fracking. Outras políticas progressistas, como o aumento do salário mínimo e o acesso à saúde pública, foram diluídas ou desapareceram completamente.

Enquanto isso, Harris, assim como Trump, apoia firmemente o genocídio israelense contra os palestinos e prometeu continuar financiando o ataque do Estado sionista à Gaza.

·        Não culpem os votantes

Alguns justificam o deslocamento dos democratas para a direita apontando que o eleitorado norte-americano também se moveu nessa direção. Com eleitores mais conservadores, Harris supostamente não teria escolha senão se adaptar e adotar políticas mais à direita. Até mesmo Bernie Sanders defendeu as mudanças de postura de Harris, afirmando que ela precisa ser "pragmática" e fazer "o que acredita ser necessário para vencer as eleições". Para Harris, isso significa aproximar-se dos republicanos, incluindo fazer campanha ao lado da conservadora Liz Cheney e prometer nomear um republicano para seu gabinete, com o objetivo de conquistar eleitores indecisos e apresentar uma mensagem de "unidade" bipartidária contra a ameaça de um segundo mandato de Trump.

Sem dúvida, uma parte do eleitorado norte-americano deslocou-se para a direita em algumas questões. A resiliência contínua de Trump e a competitividade acirrada da campanha são provas claras disso. Mas não é apenas a base de Trump que adota explicações conservadoras para a incerteza econômica. Por exemplo, enquanto em 2020 apenas 28% dos eleitores defendiam a redução da imigração, esse número subiu para 55% em 2024. As pesquisas também mostram crescente apoio a proibições de atletas trans e restrições a terapias de afirmação de gênero para jovens.

Essas mudanças na opinião pública estão claramente ligadas às posturas reacionárias cada vez mais difundidas pelos políticos e ao alarmismo da mídia. Contudo, também refletem respostas reacionárias aos temores diante da instabilidade causada pela guerra no Oriente Médio e na Ucrânia, o medo de uma recessão, e o declínio da influência global dos EUA, tanto política quanto economicamente, na sua competição com a China. Além disso, cresce o sentimento de que o Partido Democrata — defensor histórico do neoliberalismo — não é capaz de gerenciar essas crises.

No entanto, em muitas outras questões, os norte-americanos se deslocaram para a esquerda. Mais de 80% dos eleitores apoiam o aumento do salário mínimo, 63% acreditam que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, e o apoio aos sindicatos está em níveis históricos. A maioria dos eleitores de todos os partidos defende medidas mais fortes para combater as mudanças climáticas, como priorizar fontes de energia renováveis e alcançar a neutralidade de carbono. O fato de a campanha de Trump ter sido obrigada a rejeitar publicamente o reacionário Projeto 2025 demonstra o quão impopulares — e politicamente tóxicas — são muitas das propostas de extrema direita. Além disso, cresce o número de pessoas que questionam o apoio incondicional dos EUA ao Estado de Israel. Entre os jovens, em particular, há uma mudança significativa, com muitos se tornando mais críticos ao capitalismo e mais receptivos ao socialismo.

Mas mesmo que os norte-americanos tivessem se movido para a direita em todas essas questões, isso não justificaria a adoção de políticas direitistas. Ao ceder terreno ao trumpismo e adotar a retórica e as políticas republicanas em diversas áreas, Biden, Harris e os democratas ajudaram a pavimentar o caminho para a extrema direita. Longe de oferecer uma alternativa à agenda republicana cada vez mais reacionária, os democratas normalizaram e perpetuaram discursos e políticas como a anti-imigração. Como já foi apontado, "agora que ambos os partidos estão tentando parecer duros com a imigração, faz sentido que eleitores cada vez mais desconfiados da imigração se voltem para o candidato que, essencialmente, construiu toda sua carreira demonizando os imigrantes."

O deslocamento dos democratas para a direita não é meramente uma tentativa de seguir a opinião pública. O foco de Harris em reforçar o status quo e revitalizar a viabilidade do regime bipartidário — que agora inclui o trumpismo — também é uma resposta ao ressurgimento do movimento operário e dos movimentos sociais que ganharam força nos últimos anos. Com desafios internos e externos, o Partido Democrata enfrenta crescente dificuldade em conter as aspirações progressistas de setores da população que antes o viam como um veículo de mudança. Esse cenário se reflete no papel em transformação da ala progressista do partido, especialmente nos meses finais da corrida presidencial de 2024.

·        Os progressistas e a burocracia sindical facilitaram o giro à direita dos democratas

Alguns analistas, como Branko Marcetic, da *Jacobin*, apontaram corretamente que os democratas se moveram para a direita, apesar de um eleitorado cada vez mais progressista. O que falta nesse diagnóstico, porém, é o papel reacionário que figuras progressistas desempenharam no cenário político atual.

Com o apoio de Sanders a Biden em 2020, a ala progressista do Partido Democrata foi praticamente absorvida pela máquina do partido. Nos últimos quatro anos, o chamado "Esquadrão" progressista — incluindo Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) e Jamaal Bowman, entre outros — alinhou-se ao establishment e à administração Biden em nome da unidade, desde sua intervenção contra a greve ferroviária de 2022 até o financiamento do sistema de defesa israelense Domo de Ferro.

Os moderados consolidaram sua força nas eleições legislativas de 2022, reforçando a estratégia dos democratas de deixar de lado questões raciais e LGBTQ+, concentrando-se em temas como o aborto e políticas econômicas gerais, com o objetivo de fortalecer os EUA na competição com a China.

As fissuras no Partido Democrata, expostas em 2016, dissiparam-se rapidamente quando os progressistas abandonaram grande parte de suas propostas políticas em favor de uma "frente única" contra a extrema direita no Congresso. No entanto, essa oposição à ameaça real da direita é enfraquecida quando a chamada ala esquerda do partido se recusa a desafiar seu deslocamento para a direita.

A promessa de "empurrar Biden para a esquerda", que deveria justificar o voto nos democratas em 2020 e 2022, ficou pelo caminho. A distância entre as duas alas do partido diminuiu à medida que os progressistas foram marginalizados ou se aproximaram do centro, sem grandes ganhos em troca. Um exemplo claro é John Fetterman, que, após ser eleito com o apoio dos progressistas, rapidamente abandonou essa base, tornando-se defensor do genocídio e demonstrando que um programa diluído de "populismo econômico" pode facilmente ser cooptado pelo establishment político.

De fato, com os democratas no poder, os progressistas — assim como líderes sindicais e de ONGs — ofereceram uma cobertura "pela esquerda" a um partido capitalista e imperialista, enquanto este desmantelava lentamente os programas sociais criados durante a pandemia, adotava retóricas conservadoras, aprovava políticas anti-imigração inspiradas diretamente no manual de Trump e financiava genocídios.

As tensões dentro do Partido Democrata ameaçaram ressurgir em torno da questão do apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel, mas até agora a liderança do partido tem usado isso como uma forma de disciplinar e neutralizar os progressistas. A deputada Rashida Tlaib ficou em grande parte sozinha em seu apoio à Palestina após o lançamento da frente genocida de Israel em 2023, com muitos progressistas defendendo o apoio militar e financeiro da administração Biden ao Estado de Israel e se recusando a reconhecer o que estava acontecendo em Gaza. Desde então, Tlaib foi alvo de críticas constantes, enquanto os democratas permaneceram impassíveis enquanto ela se tornava alvo dos ataques islamofóbicos da direita. As críticas mornas de Cori Bush e Jamaal Bowman, quase um ano após o genocídio, não impediram que não fossem reeleitas. Talvez o mais condenável seja que AOC tentou retratar Harris como defensora do povo palestino, mesmo quando a própria Harris reafirmava seu apoio firme a Israel.

Com o pano de fundo de um cenário mais à direita, onde a retórica nacionalista e antisistema de Trump ganhou força, Harris se distanciou da ala progressista após assumir a liderança da candidatura, descartando qualquer ilusão de que o Partido Democrata fosse "radical" de qualquer forma. A ala esquerda do partido se alinhou obedientemente, minimizando e normalizando as políticas anti-imigração dos democratas, suas tímidas propostas econômicas e seu silêncio diante dos ataques contra as pessoas trans.

Isso se manifesta de duas formas. Por um lado, figuras como AOC abraçaram Harris e seu programa com entusiasmo, jogando videogames com Walz, atacando candidatos de partidos terceiros no Instagram ou fazendo campanha por Harris. Esse discurso progressista oculta o quão direitista a campanha de Harris se tornou.

Outras figuras que representaram as aspirações progressistas de setores da classe trabalhadora, como o presidente do sindicato automobilístico UAW, Shawn Fain, tentam pintar uma imagem de continuidade com verniz pró-trabalhador e pró-direitos civis da administração Biden, mesmo quando Harris tenta se apresentar como candidata da mudança. Harris tem menos vínculos políticos com o movimento operário do que Biden. Ela fez menos propostas aos eleitores da classe trabalhadora, concentrando-se mais na classe média. Como resultado, depende fortemente da burocracia sindical para apresentar seus argumentos aos membros dos sindicatos, uma tarefa difícil, já que amplos setores dos trabalhadores veem Trump com bons olhos.

Por outro lado, a campanha conservadora de Harris afasta setores de eleitores cada vez mais desiludidos com os democratas, especialmente no que diz respeito ao genocídio em Palestina. Isso obriga os progressistas a saírem em defesa do "mal menor". Por exemplo, Sanders está incentivando os eleitores a se unirem contra Trump, escolhendo Harris; dando a impressão de criticar Harris pela esquerda, ele tenta canalizar o desgosto pelo genocídio em Gaza diretamente de volta para o partido imperialista que o tornou possível. Sanders pede que aqueles que se opõem ao genocídio aceitem isso em nome da proteção dos direitos reprodutivos.

·        Como combatemos a direita

A guinada à direita representada pela campanha de Harris não é apenas uma estratégia cínica do Partido Democrata; faz parte de uma tentativa de fortalecer um regime bipartidário enfraquecido em um cenário incerto de desafios econômicos e políticos externos e internos, um processo que se acelerou nos últimos quatro anos. Ela implica na disciplina da esquerda com a ajuda da ala progressista e das ONGs e na normalização das políticas de direita, mesmo quando os democratas se pintam como a antítese de Trump. Por sua vez, os membros da ala progressista do Partido Democrata não apenas renunciaram às suas próprias propostas políticas, outrora ambiciosas, que poderiam ter atraído os eleitores de direita, mas também dificultaram a luta contra a extrema direita ao não apresentar oposição significativa ao seu abraço pelo partido. Um voto a favor de Biden não impediu os ataques contra os direitos reprodutivos ou contra as pessoas LGBTQ+ e o direito ao voto. Tanto os democratas quanto os republicanos intervieram para reprimir os movimentos que lutam para proteger nossos direitos democráticos. Pintar os democratas como um mal menor é simplesmente nos enviar para a guerra desarmados.

Mesmo que Harris tivesse ganhado, teríamos que continuar lutando contra a extrema direita e pelos direitos de todos os oprimidos e explorados. Mesmo a vitória de Harris significaria a continuidade do genocídio na Palestina, mais ataques contra migrantes e pessoas trans, e mais capitulação diante do capital.

Devemos lutar de forma completamente independente dos Democratas, que viraram à direita e jogaram os trabalhadores e os oprimidos, como os imigrantes, sob o caminho do que era sempre politicamente conveniente fazê-lo. Eles estão firmemente ao lado do capitalismo e do imperialismo, e devemos resistir à tentação de colocar nossas forças atrás de um partido menos pior, especialmente um que adote cada vez mais políticas de direita. Isso também significa não capitular diante de nenhuma virada reacionária, seja de políticos ou das massas. A luta contra a extrema direita anda de mãos dadas com a luta pelos imigrantes, os direitos trans, o aborto e por todos os grupos oprimidos e explorados.

Os sindicatos, os movimentos sociais, os estudantes e outros grupos precisam se unir numa frente única, organizando-se independentemente do Partido Democrata. A partir dessa frente unida, precisamos construir uma alternativa política aos dois partidos do capital. Somente uma organização independente da classe trabalhadora com um programa revolucionário pode derrotar a direita.

 

Fonte: Por Jimena Vergara e Sybil Davis, em Esquerda Diário

 

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