terça-feira, 12 de novembro de 2024

80 anos de Ângela Diniz: feminicídio ainda assombra o Brasil

A Praia dos Ossos é uma das 23 do balneário de Búzios, município a 160 quilômetros do Rio de Janeiro (RJ). Ganhou esse nome, reza a lenda, por causa das ossadas de baleias enterradas no local. Foi lá que, no dia 30 de dezembro de 1976, a socialite mineira Ângela Diniz, então com 32 anos, foi morta a tiros pelo namorado, o playboy paulista Raul Fernando do Amaral Street, o Doca, dez anos mais velho.

Os dois se conheceram em uma festa na casa de Doca em agosto daquele ano. Ângela estava desquitada do marido, o engenheiro Milton Vilas Boas, com quem teve três filhos, mas Doca ainda era casado com a milionária Adelita Scarpa. Dois meses depois, ele se separou da mulher e se mudou para o Rio, onde passou a viver no apartamento de Ângela, em Copacabana. No fim do ano, decidiram passar o Réveillon em Búzios.

"No dia do crime, eles brigaram e o Doca foi mandado embora. Ele não aceitou isso muito bem porque vivia às custas dela. Como ousava terminar com ele? Chegou a ir embora, mas voltou e atirou nela", relata Cristiana Vilas Boas, que tinha 12 anos quando a mãe morreu. O depoimento acima foi dado no dia 23 de agosto de 2024 durante um evento sobre feminicídio organizado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

Em 2020, a enseada onde Ângela Diniz morreu deu nome ao podcast Praia dos Ossos, uma produção da Rádio Novelo. Em oito episódios, conta a história de Ângela Maria Fernandes Diniz, desde o seu nascimento na cidade de Curvelo (MG), no dia 10 de novembro de 1944, até o seu trágico fim, em Búzios (RJ), no dia 30 de dezembro de 1976. Se estivesse viva, Ângela Diniz completaria 80 anos neste domingo (10/11).

Uma das 60 pessoas entrevistadas por Branca Vianna, a apresentadora do podcast, é a socióloga Jacqueline Pitanguy, amiga de infância de Ângela. As duas conviveram até 1955, quando a família de Jacqueline precisou se mudar para o Rio e a de Ângela permaneceu em Minas. Nas férias escolares, Jacqueline visitava a amiga na capital mineira. Juntas, praticavam o footing, espécie de paquera à moda antiga, na Praça da Liberdade.

"Quando criança, Ângela era bonita. Mas, na adolescência, ficou linda!", elogia Jacqueline. "Já naquela época, gostava de participar de bailes de debutantes e de aparecer em capas de revista. Sua mãe chegou a fazer um álbum só com os recortes de jornais da época. Hoje, ela virou símbolo de uma história de luta e resistência."

Ao longo dos anos, o assassinato de Ângela Diniz inspirou as mais diferentes produções: desde o episódio Ângela e Doca (2003), exibido no programa Linha Direta – Justiça, da TV Globo, até o filme Ângela (2023), dirigido por Hugo Prata e protagonizado por Ísis Valverde. Em 2025, será a vez da minissérie da HBO, Ângela Diniz: O Crime da Praia dos Ossos, inspirado no podcast de mesmo nome. Ainda não há previsão de estreia.

A atriz escolhida pelo diretor Andrucha Waddington para dar vida à protagonista é Marjorie Estiano. Com 42 anos, ela ainda não tinha nascido quando Ângela morreu, em 1976. "Não consigo imaginar [como Ângela estaria hoje]. Já me fiz essa pergunta várias vezes. No mínimo, teria muita história para contar", arrisca. "Ângela tinha pulsão de vida. E uma disposição para o enfrentamento que, talvez, fosse perdendo com o tempo. Ou não. Infelizmente, a história dela não nos permite saber, mas, sem dúvida, continuaria inspirando e abrindo caminhos. Através da Ângela, espero poder fazer a outras pessoas um pouco do que ela fez comigo."

<><> Quando a Justiça transforma o assassino em vítima

Depois de efetuar os quatro disparos – três no rosto e um na nuca –, Doca Street abandonou a arma do crime, uma Beretta automática calibre 7,65 mm, e fugiu para Minas Gerais. Vinte dias depois, foi capturado pela polícia numa clínica de reabilitação em Taboão da Serra (SP). Réu confesso, foi submetido a dois julgamentos: um em 1979, anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), e outro em 1981.

O primeiro, realizado no dia 17 de outubro de 1979, durou 20 horas – começou às duas da tarde e terminou às dez da manhã. O advogado de defesa, Evandro Lins e Silva, recorreu à tese da "legítima defesa da honra" para inocentar seu cliente – em caso de traição, o homem poderia matar a mulher ou namorada. Detalhe: tal argumento jamais fez parte do Código Penal Brasileiro.

Durante o julgamento, Evandro chamou a vítima de "libertina", "depravada" e "lasciva". "Era uma pantera que, com suas garras, arranhava os corações dos homens", dramatizou o criminalista, se referindo ao apelido "A Pantera de Minas", dado pelo colunista social Ibrahim Sued. "Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca", ironizou o cartunista Henfil, no jornal O Pasquim.

Já o advogado de acusação, Evaristo de Moraes Filho, citou o escritor Carlos Drummond de Andrade para tentar sensibilizar o júri – formado por cinco homens e duas mulheres: "Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras", protestou o poeta mineiro em crônica publicada no Jornal do Brasil. No fim das contas, Evandro Lins e Silva levou a melhor.

Por quatro votos a três, o júri absolveu o réu: Doca foi condenado a dois anos de reclusão, com direito a sursis – dispensa do cumprimento de uma pena, no todo ou em parte. Como já tinha cumprido mais de um terço da pena, saiu do tribunal sob aplausos – criaram até fã-clube para Doca! – e cumpriu a pena em liberdade.

<><> Três anos em regime fechado e dois no semiaberto

Inconformada, a promotoria recorreu da sentença. Foi marcado, então, um novo julgamento: 5 de novembro de 1981. Novos jurados e novos advogados: Heleno Fragoso entrou no lugar de Evaristo de Moraes Filho e Humberto Telles substituiu Evandro Lins e Silva.

Grupos feministas se mobilizaram pelo Brasil afora. Chegaram a montar acampamento em frente ao Fórum de Cabo Frio (RJ). "O silêncio é cúmplice da violência", dizia um dos cartazes.

Se o primeiro julgamento popularizou a tese da "legítima defesa da honra", o segundo imortalizou o slogan "quem ama não mata". A ideia, conta a historiadora Branca Moreira Alves no livro Feminismo no Brasil (Bazar do Tempo, 2022), nasceu em Belo Horizonte, quatro anos depois da morte de Ângela.

Em 1980, durante um intervalo de apenas 15 dias, duas mulheres – a empresária Eloísa Ballesteros Stancioli, de 32 anos, e a dona de casa Maria Regina Santos Souza Rocha, de 30 – foram assassinadas pelos respectivos maridos. O muro de um tradicional colégio de freiras, o Pio XII, amanheceu pichado: "Se ama não mata". No mesmo dia da pichação, a socióloga Celina Albano, em entrevista ao Jornal Nacional, tomou emprestado o protesto silencioso e fez uma pequena adaptação em rede nacional: "Quem ama não mata", declarou.

"O patriarcado vai muito bem, obrigado!", ironiza Branca Moreira Alves. "No tempo da Ângela, as mulheres só tinham uma opção: casar e ter filhos. Nem trabalhar fora elas podiam. Hoje, o homem ainda se sente dono dela. E se acha no direito de matá-la quando ela não cumpre as suas ordens."

Da segunda vez, Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão. Cumpriu três em regime fechado e dois no semiaberto. Em liberdade condicional, trabalhou na venda de automóveis e no mercado financeiro. Em 2006, publicou Mea Culpa (Editora Planeta). "Era daqueles que achava que a vida sem uma grande paixão não valia a pena", escreveu no livro. "Perigo? Tem coisa melhor?"

<><> Feminicídio no Brasil: uma mulher executada a cada seis horas

Quase 50 anos depois, houve avanços na legislação brasileira. O crime de feminicídio passou a vigorar em 9 de março de 2015, quando foi aprovada a Lei 13.104. Desde então, assassinatos de mulheres, praticados em contexto de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto ou, ainda, provocados pela discriminação ou menosprezo à condição do sexo/gênero feminino, passaram a ser considerados hediondos.

As penas podem chegar a 30 anos de prisão. Mas, há agravantes. Se o feminicídio for cometido contra gestante ou com filho recém-nascido ou, ainda, praticado na presença de parentes da vítima, por exemplo.

Em 2023, a tese da "legítima defesa da honra" foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Em decisão unânime, a corte entendeu que o argumento – classificado pelo ministro Dias Toffoli como "odioso", "desumano" e "cruel" – contraria os princípios constitucionais da igualdade de gênero, da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida.

"A teoria da legítima defesa da honra traduz os valores de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária", declarou a então presidente do STF, a ministra Rosa Weber. "Uma sociedade machista, sexista e misógina que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são: donas de suas vidas", arrematou a ministra Cármen Lúcia que, durante seu voto, relembrou o caso de Ângela Diniz.

O número de mulheres assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros, no entanto, não para de crescer. Só ano passado, o Brasil registrou 1.463 casos de feminicídio – média de uma mulher morta a cada seis horas. É o maior número já registrado desde que a lei do feminicídio entrou em vigor, em 2015.

O primeiro caso de que se tem notícia no país ocorreu em 21 de maio de 1926, em Uberlândia (MG). Rosalina Buccironi, de 19 anos, foi morta com quatro tiros pelo próprio marido. Estava grávida do terceiro filho do casal. O motivo alegado, suspeita de traição, nunca foi confirmado. No julgamento, o acusado foi absolvido por unanimidade. Todos os jurados eram homens.

"Ângela Diniz era uma mulher à frente de seu tempo. Ou, como diziam as colunas sociais da época, uma ‘pantera' que não se deixava capturar", define Elena Soárez, roteirista da série Ângela Diniz: O Crime da Praia dos Ossos. "A história de Ângela Diniz continua atual. Ainda hoje, vivemos como se estivéssemos no neolítico. Naquele tempo, os homens colocavam as fêmeas dentro de um cercado para ter certeza de que elas só cruzariam com seu macho. Não à toa, usamos a expressão ‘pular a cerca' para designar traição conjugal."

Doca Street morreu no dia 18 de dezembro de 2020. Tinha 86 anos e sofreu uma parada cardíaca.

Ângela Diniz está sepultada no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte (MG).

 

•        Feminicídio em alta afasta Brasil da igualdade de gênero

Os casos de violência de gênero estão em alta no Brasil. A tendência é crescente desde que a lei nº 13.104/2015 acrescentou ao Código Penal essa qualificadora ao crime de homicídio doloso. No entanto, o número pode ainda estar subnotificado devido às dificuldades dos tribunais e policias de classificar os casos.

O anuário da violência aponta que, em 2022, foram as mulheres em idade reprodutiva as principais vítimas desse tipo de crime: 71,9% das 1.437 mortes. Dessas, 61,1% eram mulheres negras.

Houve aumento também dos casos de estupro contra meninas e mulheres. Ao todo, foram 34 mil casos, salto de 14,9%. Isso corresponde a uma ocorrência de violência sexual a cada 8 minutos, a maior proporção desde 2019. O relatório aponta que a maioria das vítimas são crianças de até 14 anos, e respondem por 74,5% dos registros.

<><> Brasil mais distante da meta

Diante da alta da violência contra mulheres, o Brasil se distancia cada vez mais de atingir o 5º objetivo de desenvolvimento sustentável estabelecido pela Agenda 2030 das Nações Unidas: acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas.

O relatório do Fórum aponta que a escala da violência contra as mulheres é consistente e não é reflexo apenas do aumento das denúncias, pois todos os indicadores de agressões subiram no período.

Alguns fatores favorecem o cenário de maior insegurança e violência, como a queda no financiamento de políticas de proteção às mulheres. De 2019 a 2022, o Ligue 180, canal de denúncias de violência, teve uma redução de 41% nos gastos, por exemplo. A pandemia de covid-19, que comprometeu os serviços de acolhimento de vítimas, e a ascensão de movimentos extremistas também são apontados como possíveis causas.

Em entrevista à DW, a socióloga Wânia Pasinato, assessora sênior da ONU Mulheres, analisa os motivos da alta de feminicídios e o impacto social dessa violência e aponta as políticas públicas de combate a esse cenário que precisam ser fortalecidas.

LEIA A ENTREVISTA:

<><> O que justifica a escalada da violência contra as mulheres no Brasil?

Wânia Pasinato: Deve-se a um processo que nos últimos anos se convencionou chamar de desmonte de políticas públicas para mulheres e voltadas para o enfrentamento à violência contra as mulheres no sentido mais amplo: prevenção, proteção, promoção de direitos e responsabilização de agressores.

Foram pelo menos seis anos que passamos de retirada de orçamento público, o que contribuiu para fragilizar os serviços que existiam, levando ao fechamento de atendimentos.

Somos uma sociedade muito conservadora, que tem uma estrutura patriarcal e machista, que autoriza os homens a praticar violência contra mulheres quando consideram que elas estão saindo do papel de submissão, e que não têm destaque na vida pública e política.

Essa cultura também autoriza os homens a praticarem essa violência na apropriação dos corpos, em relação à sexualidade e direitos reprodutivos, por exemplo, e isso se reflete no aumento dos estupros. É ainda mais preocupante porque meninas estão expostas a essa violência sexual dentro de casa, que não é um lugar de proteção..

<><> Nos últimos anos, a legislação para proteção das meninas e mulheres avançou com a Lei Maria da Penha e a qualificação dos feminicídios. No entanto, os crimes estão em alta. Que brechas favorecem esse cenário?

As leis são uma conquista de grande importância. Todas as mudanças que foram feitas no campo legislativo desde a década de 1980 para cá, como a Lei Maria da Penha, que é um marco, inauguram um outro debate. A lei do feminicídio mostra a importância de ter instrumentos legais para trabalhar com essa violência.

Entre 2003 e 2015 houve investimento na implementação de serviços especializados, como delegacia da mulher, atendimento na Casa Abrigo, serviços de saúde e serviços de justiça. Houve também um grande investimento na produção de documentos técnicos, como protocolos e diretrizes que tinham a função importante de orientar e padronizar esse serviço e as atividades de capacitação de profissionais para atendimento. 

Isso se perdeu com o fim da secretaria de Políticas para as Mulheres, que era o principal indutor dessas ações, que negociava e impulsionava a criação de serviços, inclusive com a transferência de orçamento. Essas iniciativas vão se dissolvendo a partir de 2017. Sem capacidade de investimento, não houve capacitação de profissionais, e normas técnicas acabaram defasadas.

A lei do feminicídio é de 2015, e novas formas de violência, como a importunação sexual e a perseguição on-line foram criadas, mas isso não faz parte da orientação dos serviços. São incorporadas em iniciativas muito esporádicas por gestores sensíveis ao tema. Não sabemos como as delegacias estão aplicando a lei, ou como funciona. A situação se tornou precária nos centros de referência e casas de abrigo.

Além disso, temos obstáculos para implementar as leis e desenvolver as políticas. Estamos lidando com instituições que são majoritariamente lideradas por homens que não reconhecem essa violência como algo a ser combatido e prevenido. Quando olhamos a aplicação das leis nos tribunais, ela ainda ocorre de maneira muito discriminatória. Há a reprodução de estereótipos no processo que acaba fundamentando absolvições e não condenação de agressores.

<><> Quais são os impactos sociais desse contexto de violência sobre as meninas e mulheres?

No nível individual, impacta o próprio núcleo familiar, pois os filhos presenciam a violência ou perdem a mãe vítima do feminicídio. Pode ser que essa mulher sustentasse financeiramente a família, deixa dependentes e os parentes precisam absorver o cuidado com crianças, por exemplo.

Há ainda estudos que investigam o custo social desse contexto. Há uma perda econômica para o próprio Estado, em termos de perda de força de trabalho, e pode impactar no PIB dos países. Além disso, há os gastos públicos com mulheres que são vítimas de violência e que precisam recorrer aos sistemas de saúde e de segurança. Esse gasto do estado poderia ser reduzido se trabalhasse pela prevenção.

<><> Como as políticas públicas poderiam se tornar mais eficientes para conter essa alta de caso?

Tem que sair de um olhar restrito sobre a segurança pública e a Justiça. A resposta virá da associação com outras políticas de outras áreas e da combinação delas. Saúde e educação são prioridades porque por meio da educação é possível dar uma melhor formação para essa população, vão ter mais condições de prosseguir na vida escolar e acadêmica, ter uma formação profissional e podem fazer outras escolhas na vida. A saúde também é fundamental, pois as mulheres morrem ou sofrem sequelas de saúde por não terem acesso adequado ao serviço.

Mas a solução também perpassa todas as dimensões da política pública, que envolve habitação, infraestrutura urbana, espaços onde essas mulheres habitam, se tem iluminação pública, calçamento, água encanada. Se observar a Agenda 2030 e colocar a lupa de gênero nos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, você vai ver que ali tem um grande potencial para que se possa desenvolver políticas mais adequadas para construção da equidade entre homens e mulheres em qualquer campo da política pública.

 

Fonte: DW Brasil

 

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