Direita radical sequestrou a pauta do
trabalho e do desejo, diz pesquisador
Apresentar fatos,
dados, argumentos racionais e lógicos na maioria das vezes não é suficiente
para convencer quem
acredita em teorias da conspiração.
Essa dificuldade tem
sido cada vez mais estudada por pesquisadores, mas aos poucos vão surgindo caminhos para combatê-la, diz o
pesquisador italiano Paolo Demuru.
Radicado no Brasil e
professor na Universidade Mackenzie, Demuru publicou o livro Políticas
do Encanto: Extrema Direita e Fantasias de Conspiração (Elefante), no
qual discute, de forma acessível, conhecimentos relevantes produzidos
sobre desinformação e
políticas extremistas nos últimos anos.
Demuru afirma que
a direita radical é
muito bem sucedida no que ele chama de "fantasias conspiratórias",
pois, além de fornecer respostas simples para problemas complexos, essas
histórias encantam, fascinam e levam ao êxtase seus adeptos.
Para contrapô-las, diz
ele, é preciso entender o pensamento mágico e mergulhar nas "políticas do
encanto".
"A extrema
direita sequestrou as pautas do trabalho e do desejo", diz ele em
entrevista à BBC News Brasil.
"Forneceu uma
resposta para o desejo de pertencimento, de se maravilhar, entrar em
transe" de quem vive sob um "sistema de trabalho opressor e um mundo
desigual".
"Fantasias de
conspiração são a experiência do maravilhoso no mundo onde a maravilha está em
falta", afirma.
<><> Leia
abaixo os principais trechos da entrevista.
·
No livro você fala em
"fantasias de conspiração" em vez de "teorias de
conspiração". Por quê?
Paolo
Demuru - Eu retomo essa nomenclatura de um livro de
um autor italiano, do coletivo Wu Ming. Ele diz que a gente deveria usar o
termo fantasia e não mais teoria, porque esse termo foca em uma dimensão
fundamental do processo que é a construção discursiva das histórias sobre
conspiração e complôs baseada no maravilhamento, no encanto.
A expressão
"teoria" é um termo racionalista, em que o enfoque do problema está
em explicações excessivamente racionais, excessivamente sociológicas.
O termo
"fantasia" traz a reflexão justamente nesse aspecto, da maravilha,
porque essas histórias conspiratórias encantam.
Além de oferecer uma
resposta simples a uma questão muito complexa — da desigualdade social —, elas
oferecem também algo que o próprio sistema neoliberal nos tira, que é o sonho.
Então essas teorias
não são meras teorias, são fantasia, porque permitem às pessoas idealizar algo.
E também fazem a pessoa se sentir especial, porque ela entra nesse pequeno
círculo de escolhidos que sabe "a verdade". Isso já por si só é maravilhoso,
encantador. É algo que tira a pessoa da mediocridade, da rotina, do cotidiano.
E depois o
encantamento se dá até por outras razões, porque os adeptos dessas fantasias de
conspiração vão atrás de outras histórias e produzem outras histórias, não é
uma coisa passiva.
Por exemplo, o pessoal
do QAnon [teoria infundada segundo a qual Donald Trump está travando uma guerra secreta contra pedófilos adoradores de
Satanás no governo, empresas e imprensa dos
EUA] começou a achar que 17 era um número especial porque é a posição do Q no
alfabeto, e começaram reparar as vezes em que Trump falou 17 e encontrar um
significado escondido nisso.
É quase como uma caça
ao tesouro. É a experiência do maravilhoso no mundo onde a maravilha está em
falta.
·
Você compara as
fantasias de conspiração com jogos de RPG (sigla para role playing
games, em inglês, jogo narrativo em que os jogadores assumem personagens
fictícios) e com obras de arte participativas. Pode explicar essa comparação?
Demuru
- A obra de arte participativa, a fanfic,
são metáforas que funcionam porque dizem respeito justamente a participação do
fruidor que se torna um criador.
Ele não lê apenas algo
na internet, esses grupos não são apenas manipulados. Eles não têm um papel
passivo.
Quando eles leem uma
história conspiratória, por exemplo, essa do globalismo, do marxismo
cultural, da grande substituição, muitas
vezes nos fóruns, nas redes, etc, se desencadeia uma construção narrativa
global coletiva de histórias que se desdobram.
"Ah, eu vi
naquela foto o rosto de uma pessoa." E quem escreve isso são as pessoas.
Ou seja, é algo que desenvolve a imaginação, a fantasia, algo que está em
falta. Porque o mundo é extremamente desigual, duro, onde muitas vezes a gente
é confinado na nossa cotidianidade mais bruta e desinteressante.
·
Você diz que essas
fantasias não são puras fantasias, elas têm o que você chama de "núcleos
de verdade". O que é um "núcleo de verdade" dentro dessas
narrativas?
Demuru
- Um núcleo de verdade é o fato — que todas
as fantasias de conspirações retomam, desde o globalismo, o marxismo cultural,
os iluminati — de que existe uma elite econômica e intelectual
que domina o mundo.
Isso é um núcleo de
verdade. A gente vive em um mundo onde pouquíssimos bilionários detêm a maior
parte da riqueza do mundo.
Outro exemplo é que o
QAnon diz que artistas e políticos como Hillary Clinton, Tom Hanks, Celine
Dion, formam um grupo satanista de pedófilos que traficam crianças.
Isso não é verdade,
mas o núcleo de verdade é que existem pessoas famosas que fazem parte de
associações secretas, seitas. O Tom Cruise, por exemplo, é um dos maiores nomes
da cientologia. E existem famosos que cometem crimes, que fazem exploração sexual.
Algumas conspirações
existem, coisas que governos escondem. O argumento dos EUA para invadir o
Iraque, de que havia armas nucleares sendo feitas ali, depois se mostrou uma
mentira.
Então muitas vezes os
elementos gerais são reais. O mundo é de fato injusto, desigual, cheio de
problemas. Partindo desses núcleos de verdade, as pessoas desdobram suas
histórias e engajam nessa busca e construção coletiva das histórias.
·
Você fala que as
fantasias proporcionam um transe coletivo. Tradicionalmente, esse encantamento
coletivo, esse senso de comunidade são coisas que você pode encontrar
justamente no jogo, no futebol, na religião, nos mitos, no misticismo. Por que
especificamente agora isso se voltou para a política?
Demuru
- Ótima pergunta. Isso seria uma pesquisa
ampla. Eu não posso falar com certeza, mas posso tentar traçar algumas
hipóteses.
As redes sociais são o
grande universo do eu, do individualismo. Ao mesmo tempo, o sistema capitalista
nos confina em vidas individuais, onde a gente passa muito tempo em frente de
telas, onde muito da experiência do dia a dia é intermediada pela tela.
Portanto, há uma
necessidade que já existia e era sublimada por outras práticas sociais, mas que
agora desembocou no campo da política.
A partir dos anos
2010, após o movimento de explosão de grupos progressistas, tudo isso
desembocou num processo de captura da experiência coletiva física por parte da
extrema direita, que entendeu que estava faltando algo nesse sentido, que as
pessoas estavam talvez cada vez mais sozinhas.
E a direita conseguiu
costurar isso, mas sempre dentro — e o [candidato derrotado à Prefeitura de São
Paulo] Pablo Marçal, nesse sentido, é talvez o maior expoente — em uma
coletividade onde o que importa não é tanto o coletivo, mas a pessoa dentro
desse coletivo.
Pessoas que vão
enriquecer individualmente. No discurso da extrema direita existe uma aura, uma
aparência de coletividade que construíram, mas ainda tem uma predominância do
indivíduo.
Sobre o futebol, eu
tenho outra hipótese: que no Brasil após a Copa de 2014, após o 7 a 1
[referência ao jogo no qual o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha], aquela
derrota, aquele trauma nacional coincidiu
com o fim do mensalão, o começo da Lava Jato.
A minha hipótese é que
aquelas paixões, aquele sentido de coletividade nacional, de transe, o desejo
de pertencimento, dessas paixões que não se consegue nomear, as físicas mesmo,
de pele, de entrega... Todas essas necessidades que não foram sublimadas no
campo do futebol acabaram desembocando no campo da política.
A extrema direita
entende isso muito bem e usa palavras certeiras: mito, capitão, usa a camisa da
seleção. Tanto que nos jornais, na época do impeachment, a linguagem
jornalística usava metáforas futebolísticas.
Não é coincidência que
a camisa do Brasil foi cooptada como um grande símbolo. Mas é claro que a gente
está falando em termos hipotéticos, mais ensaísticos, porque não tem como
comprovar isso.
·
Você cita o transe, e
o encantamento, mas também fala, como muitos autores, do papel do ódio. Não
parece uma coisa contraditória, algo que produz encantamento ao mesmo tempo se
calcar no ódio? Parecem duas coisas que não se encaixam...
Damuru
- O ódio foi um dos primeiros motores do
transe no Brasil. O ódio ao PT, por exemplo, o ódio a Dilma, o ódio ao Lula.
Foi por causa desse ódio que as pessoas foram às ruas e descobriram também esse
sentido de encantamento de estar juntos dentro desse mundo, estar junto em um
palco.
A questão é que o ódio
é uma paixão que move. Ele também foi sendo utilizado como base do discurso
humorístico. O ódio é a base das piadas de Bolsonaro. É ódio contra
homossexual, contra nordestino, contra negro, contra a mulher, que transparece
em formato de humor do que eu chamo de derrisão, que é diferente do riso. Não é
o rir juntos. É o rir de alguém a partir de estereótipos negativos.
Hoje você tem até no
mercado audiovisual produções muitas vezes feitas para serem odiadas, porque as
pessoas vão entrar no Twitter, no Facebook, e vão comentar, gerar conteúdo.
O ódio move, a partir
disso se cria uma comunidade onde se encontra o transe. A gente tem essas
distinções entre as paixões nomeadas, que a gente consegue nomear: o ódio, a
raiva, etc, e as paixões sem nome, aquelas que são da ordem da sensação.
Então falamos em
transe, mas não só, pode ser algo mais delicado também, porque a gente não
consegue às vezes traduzir numa palavra só. Na psicanálise chamariam de libido,
de pulsões.
·
No livro você diz que
esse ódio funciona para reforçar a condição de vítima na qual os líderes
conspiratórios se colocam.
Demuru - Esse é um papel que eles exercem muito bem. As fantasias
de conspiração partem da ideia de que há uma elite econômica, intelectual que
domina o mundo. E os líderes populistas de extrema direita, como [Javier]
Milei, [Donald] Trump, [Jair] Bolsonaro, [Giorgia] Meloni, que se dizem a voz
do povo, se colocam como vítimas, porque isso os coloca exatamente na mesma
dimensão, no mesmo patamar que o povo.
Se o povo é vítima e
eu sou a voz do povo, eu também sou uma vítima. E eles podem ir além, querer
encarnar outros papéis, como, por exemplo, o do mártir. Que deu certo com o
Bolsonaro quando ele levou uma facada. Foi por isso que ele compartilhou as
fotos no hospital da cirurgia após a facada, com aquele corpo ferido, quase
moribundo, o corpo do mártir.
O Marçal tentou o
mesmo quando levou a cadeirada [do candidato José Luiz Datena], mas que no caso
dele não deu certo, porque estava claro que não foi tão grave a situação.
Eles se colocam como
vítimas do "sistema". E o que é o sistema? É um termo guarda-chuva.
A vagueza também é um
estratagema discursivo dele e da fantasia de conspiração, que funciona muito
bem porque todo mundo pode preencher conforme a necessidade do momento.
O sistema pode ser a
Globo, o STF, quando eles são oposição pode ser o governo, quando eles são
governo pode ser o Congresso, mesmo que eles tenham maioria no Congresso. Podem
ser as minorias, o marxismo cultural, o globalismo... Não importa, eles vão adaptar
o discurso.
·
E por que você defende
que o excessivo de racionalismo não é a forma de lidar com as fantasias de
conspiração?
Demuru
- Temos muitos estudos a respeito dessa
ineficácia. De modo geral, quem estuda discurso, comunicação, redes, sabe que o
esforço de desmentir com cunho racionalista circula muito menos do que a
própria mentira.
Aqui existe a questão
de estrutura de plataformas de rede social que é complicada. Mas, além disso, é
muito complicado tentar explicar ou dizer para uma pessoa que aquilo que ela
acredita é mentiroso, é uma ilusão e não faz sentido com um viés extremamente
racional, com dados, fatos etc.
Quando você usa
argumentos racionais para desmentir, quando você usa dados, fatos,
argumentações, lógicas super bem estruturadas, etc., o que acontece é que você
aparece como o grande corta-onda, o furador de bexiga numa festa de crianças.
Porque as histórias
nas quais essas pessoas já acreditam estão tão bem amarradas, estruturadas, e
são tão encantadoras, maravilhosas, que as pessoas muitas vezes não querem
deixar de acreditar.
Então não adianta
explicar que não existe uma seita de pedófilos satanistas que está por trás do deep
state [Estado profundo, um grupo secreto que, segundo os adeptos do
QAnon, controlaria o governo] nos Estados Unidos. Porque a pessoa vai pensar:
poxa, então o que explica o mundo estar indo tão mal?
As pessoas que estudam
conspiração, principalmente nos últimos anos, fazem uma comparação do ponto de
vista discursivo, mas também psicológico e social, com os adeptos das seitas
religiosas.
É muito difícil você
sair de uma seita, porque todo o seu mundo gira em torno daquilo. As relações
sociais, as histórias nas quais você tem que se apegar. Então um argumento
racional não pega, não funciona.
Não adianta chegar e
falar que "as vacinas não vão te transformar em um jacaré". Você
parece alguém que se acha superior do ponto de vista racional e moral. Porque
para a pessoa, é como se você estivesse dizendo que é mais inteligente que ela.
"Como assim você
caiu nessa mentira? Como assim você não reconheceu que essa mensagem, cheia de
erros de português, era fake?" E isso de fato é bastante elitista.
Além disso, ao negar
algo, você muitas vezes reforça esse algo. Um exemplo é quando o ex-presidente
americano Richard Nixon foi se defender ao ser acusado de ser trapaceiro, ele
disse "I am not a crook" [eu não sou trapaceiro, em
inglês], e o que pegou foi o "trapaceiro".
·
Você argumenta que
para contrapor as fantasias conspiracionistas é preciso ser um pouco como um
mágico que revela um truque, como o Houdini ou o Mister M. Pode explicar isso?
Demuru
- Eu não estou dizendo que a gente não deve
mais fazero debunking [desmentido] clássico, a checagem. Isso
deve continuar a ser feito, é super importante.
Mas, ao mesmo tempo, é
preciso fazer outro tipo de debate, tanto do ponto de vista intelectual quanto
do ponto de vista moral, que não aponte dedos e que produza encantamento. Como
você usa o mesmo sistema da magia, do feitiço?
A pegada de mágicos
como o Mister M, Houdini, entre outros, que revelavam os truques de mágica, é
que ao revelá-lo, quem está ali se encanta pelo próprio desvelamento do truque.
Quem faz debunking deveria
tentar fazer isso de uma maneira não tão direta, tão chata. Fazer algo um
pouquinho mais criativo, que faça as pessoas se encantarem pelo próprio
processo de desvelamento. Não adianta mais fazer meros debunkings,
não adianta só criticar.
É preciso construir
alguma forma de encantar que seja capaz de trazer a pessoa de volta para o
real. O Felipe Neto conseguiu um pouco disso em seus vídeos durante a campanha
presidencial em que ele desmentia notícias falsas, mas também trazia outras
coisas, contava outros fatos, fazia um pouco de humor.
Dá muito certo, por
exemplo, mostrar como funciona o deep fake [sistema que cria
vídeos falsos ultrarrealistas], como são feitos os vídeos, como as notícias
falsas se espalham. Isso é sensibilizar, é uma educação midiática.
·
Você fala que para
criar esse encantamento é preciso se esquivar da negatividade. Mas isso não
pode cair na platitude, no otimismo vazio, na positividade tóxica? Como falar
em encantamento em um mundo com tantos problemas?
Demuru
- Essa é uma observação muito pertinente. É
um ponto crucial que pensei enquanto estava escrevendo: será que isso vai ser
interpretado nesse sentido? Bom, eu não tenho respostas muito detalhadas nesse
momento, mas talvez alguns caminhos que eu posso indicar.
Sobre a negatividade,
tem a ver com não apenas falar contra as fantasias conspiratórias, mas mostrar
o que você é a favor.
Teve um vereador no
Rio, o Henrique Azevedo (PSOL) que teve sucesso nisso, fazendo uma campanha
contra a jornada 6x1 [seis dias de trabalho, um de folga]. Falando coisas
simples, sabe, "eu quero ter tempo de levar minha namorada no cinema e não
consigo porque trabalho demais".
Acho que o [candidato
a prefeito de São Paulo Guilherme] Boulos também está tentando fazer isso nessa
campanha.
·
Eu ia perguntar como
você avalia as campanhas na corrida eleitoral em São Paulo.
Demuru
- Acho que o Boulos tem se dado bem nisso, em
construir esse universo propositivo de uma outra cidade possível. Mas é claro
que você também precisa lidar com o seu adversário.
Você não pode dar
palco demais, mas também não adianta ignorar. O [ministro da Fazenda Fernando]
Haddad disse isso recentemente em uma entrevista: a esquerda precisa voltar a
falar do sonho.
E isso vale não apenas
para o campo progressista à esquerda, para candidatos específicos. Vale para
instituições que trabalham contra desinformação, que trabalham pela defesa da
democracia, do meio ambiente, contra as mudanças climáticas, para que o mundo
continue existindo basicamente.
O que traz
encantamento também é mostrar como o sonho se traduz em uma pauta concreta. A
gente precisa, sim, das grandes pautas, dos grandes sonhos, mas isso precisa
estar ancorado no nosso dia a dia.
Então, quando se fala
em ambiente e mudanças climáticas, por exemplo, tem a questão muito concreta do
apagão em São Paulo. Eu não quero ficar sem energia elétrica. Eu quero
que cuidem das árvores e
enterrem os fios. Isso é muito concreto, muito próximo.
·
Você também defende
que a esquerda não deixe a direita radical dominar a pauta, escolher quais são
os assuntos que vão ser discutidos...
Demuru - Sim. É preciso falar mais de trabalho. O discurso sobre o
trabalho foi saqueado por gente como o Pablo Marçal, que vê o trabalho como uma
questão de prosperidade individual e não como uma questão de defesa do coletivo
ou de discutir como o sistema de trabalho mudou.
·
Muitas pessoas da
própria esquerda culpam os movimentos LGBT, feminista, antirracista, e dizem
que eles dominaram a pauta da esquerda. Você concorda com isso?
Demuru - Não. Isso é uma visão muito pobre do que está acontecendo.
A questão da direita sequestrar a pauta do trabalho não tem nada a ver com a
pauta identitária. Isso é um terreno muito lamacento, mas muitas vezes é fruto
das próprias visões e discursos do campo adversário, obcecado com a questão de
gênero, com a fantasia da grande substituição etc.
Isso ignora que os
desejos de certas camadas da população, que são sempre esquecidas, muitas vezes
escravizadas até, também estão relacionados ao mundo do trabalho.
Não é uma questão do
que é mais ou menos importante, mas de construção de rede discursiva, de como
você liga uma coisa com a outra. Como você constrói elos narrativos,
semânticos, de valores.
É isso que corresponde
aos desejos das pessoas.
E eu acho que a
palavra desejo é muito central nisso tudo, tem a ver com ser a favor das
coisas, tem a ver com o encantamento. A extrema direita sequestrou não só a
pauta do trabalho, mas a pauta do desejo. Como a gente constrói a política do
encanto a favor de um outro mundo possível?
Outro dia li uma
notícia, que tinha tom de crítica, e que dizia "Pablo Marçal admite que
suas propostas são sonhos".
Ele admitia que
algumas propostas não são factíveis. Mas ter sonhos não é algo negativo. Quando
é que foi que o Marçal, que a direita, se apropriou do sonho? O problema é
justamente esse: a esquerda fica muito presa à defesa do realismo, mas de uma
realidade que nem existe.
·
As fantasias
conspiratórias não são só da direita radical, você cita isso no livro.
Demuru - Sim. Quem luta contra o extremismo — que não é só de
direita, existem vários extremismos conspiracionistas —, quem luta contra a
desinformação extrema, precisa ter sonho.
É preciso juntar as
pontas entre o sonho e o concreto. Que bom que não existe só a Ciência, que
existe o sonho. É fantástico um candidato falar que tem sonhos.
É preciso se apropriar
de um discurso um pouco mais alegre também quando a gente desmente uma fantasia
conspiracionista.
O mágico, ao mostrar
que algo é falso, ou que não é tão verdadeiro, que é distorcido, ele não usa o
discurso da supremacia do racional. Ele faz rir, ele encanta, ele faz isso a
partir de outras estratégias discursivas.
Fonte: BBC News Brasil
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