quinta-feira, 31 de outubro de 2024

'Bolsa Família deveria premiar quem consegue trabalho. Hoje, penaliza'

Hoje, 7,7% da população brasileira vive com menos de R$ 300 por mês — ou seja, estão abaixo da linha da pobreza definida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), de rendimento familiar per capita abaixo de R$ 667.

Neste grupo, 3,8 milhões de pessoas estão economicamente ativas: além de beneficiárias do programa Bolsa Família, elas têm idade para trabalhar, apesar de algumas restrições.

Algumas delas chegam até a atuar informalmente no mercado, fazendo “bicos”, por exemplo, para aumentar a renda.

Neste grupo, porém, há 2,5 milhões de brasileiros — o tamanho da população de cidades como Salvador, na Bahia, ou Fortaleza, no Ceará — vivendo um dilema social: eles estão desempregados, querem um trabalho, mas não encontram.

Enquanto isso, permanecem quase todos dependentes do Bolsa Família.

“Temos que encontrar rapidamente soluções para eles”, aponta a economista Laura Muller Machado, que coordena os cursos de gestão pública do Insper, em São Paulo, e que liderou a Secretaria de Desenvolvimento Social paulista por sete meses, em 2022, em entrevista à BBC News Brasil.

Ao lado do também economista Ricardo Paes de Barros, também do Insper, Machado tem se dedicado não só a construir esse diagnóstico da pobreza no Brasil, como também a desenhar uma forma de resolver o problema.

Há pouco mais de um ano, ambos publicaram o livro Diretrizes para o desenho de uma política para a superação da pobreza, pela editora do Insper, que condensa toda essa ideia.

Ela funcionaria, sobretudo, pela atuação de milhares de agentes de desenvolvimento social já espalhados pelo país e que receberiam, agora, a tarefa de encontrar essas famílias pobres, entender como elas podem se capacitar e quais trabalhos poderiam fazer e, então, conectá-las às vagas existentes nos locais em que vivem.

Tudo depende, de um lado, do crescimento da economia brasileira e da consequente ampliação das oportunidades de emprego e, de outro, da intermediação entre estas oportunidades e a mão de obra disponível

“Um match”, diz ela, usando uma palavra comum ao universo digital.

Neste período, os pesquisadores têm se deparado com problemas complexos.

Um deles é o formato atual do Bolsa Família que, nas palavras de Laura, “está desincentivando que seus beneficiários trabalhem”.

Isso porque o programa — que atende hoje 20,8 milhões de famílias com um montante médio mensal de R$ 682 — não tem mecanismos que façam a transição entre simplesmente receber o dinheiro e incluir seus beneficiários de alguma forma no mercado de trabalho.

“Ao contrário: quando elas encontram emprego, são ‘penalizadas’ com a perda do benefício”, explica a economista à BBC News Brasil.

Mas não só: às vésperas da eleição de 2022, além de reajustar o valor ofertado pelo programa — em uma grande reestruturação que mudou seu nome para Auxílio Brasil e desidratou algumas políticas paralelas ao desenho original —, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) também mudou as regras de declaração, abrindo uma brecha para que beneficiários se cadastrem individualmente e, então, recebam o piso, que hoje é de R$ 600.

Com isso, algumas pesquisas têm indicado mudanças estruturais, além de fraudes no escopo do Bolsa Família, como o crescimento de benefícios duplicados dentro de uma mesma família ou de beneficiários homens solteiros, por exemplo.

Relançado no começo do ano passado, o orçamento do Bolsa Família somou R$ 168,6 bilhões em 2024.

Para participar do programa hoje, é preciso comprovar renda mensal média abaixo de R$ 282, além de uma série de condicionantes para famílias com filhos.

Para Machado, além de rever o desenho do Bolsa Família, é preciso incluir logo essas 2,5 milhões de pessoas de alguma forma no mercado de trabalho, mesmo com desafios como a precarização do trabalho e a alta rotatividade das vagas.

A solução para isso, na visão dela, é manter o programa como renda enquanto as pessoas trabalham – e, mais do que isso, elevar pontualmente o valor do benefício até que seu orçamento doméstico se estabilize.

"O Bolsa Família é o responsável pelas grandes reduções de pobreza do país. É a coroa brasileira, nosso maior instrumento de política social, mas que não pode ser blindado de mudanças necessárias", diz a economista.

<><> Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

·        O Brasil tem hoje uma das taxas de desemprego mais baixas da sua história. Por que o mercado de trabalho tão aquecido não está atingindo as camadas mais pobres?

Laura Machado - Temos somente hipóteses. A primeira é sobre o salário reserva brasileiro de hoje. Toda vez que se concede um benefício como o Bolsa Família, o salário reserva das pessoas sobe. Isso significa que elas só topam trabalhar a partir de um certo valor — que, hoje, são pelo menos os R$ 600 do programa. Não faz sentido trabalhar por menos do que isso. O salário inicial para que alguém aceite trabalhar precisa ser, pelo menos, maior que esse montante. Esse é um fenômeno positivo da economia. Não é ruim.

A segunda hipótese é sobre a transição truncada do Bolsa Família para o mercado de trabalho. O programa deveria funcionar premiando os beneficiários que conseguem um emprego, até porque essa tem sido uma tarefa quase impossível para eles. A taxa de ocupação dessa parte da população ainda é minúscula. Quem está no Bolsa Família e alcança um trabalho é um herói. Essa pessoa deveria receber um programa de transição como prêmio, não a retirada total do benefício. Do jeito que está, há apenas desincentivo ao trabalho.

Tudo isso sem contar os choques tecnológicos. O mundo do trabalho mudou muito nos últimos tempos, e as pessoas parecem inaptas a ele. Precisamos de programas que, em paralelo, façam uma requalificação delas.

·        Como funcionaria essa "premiação" dentro do Bolsa Família? Qual deveria ser o tempo para uma pessoa ficar paralelamente nos dois programas?

Machado - Existem algumas propostas. Nossa ideia é que essa pessoa receba um valor até maior do Bolsa Família no momento inicial [após conseguir um emprego]. Esse montante deve ficar estável até que ela ganhe segurança no trabalho. Então, a partir de certo momento, o valor começa a cair gradualmente, de forma que ela vá se adaptando à nova realidade e progredindo no trabalho.

Essa transição pode durar 24 meses, por exemplo: seis meses com o prêmio e, depois, com uma redução de 5% por mês do Bolsa Família até o processo acabar. Se ela perder o emprego, o benefício volta como era no início.

·        Há um dado muito utilizado que mostra como a taxa de ocupação entre os 10% mais pobres do Brasil caiu (de 49% em 2005 para 25% em 2023, segundo o IBGE). Você tem chamado isso de “nova cara da pobreza brasileira”. O que houve?

Machado - Quando uma família cai em situação de vulnerabilidade, qualquer política de assistência e desenvolvimento social precisa atendê-la, porque não queremos que ninguém passe fome. Então, ela recebe uma primeira assistência e, depois, deveria ser realocada no mercado de trabalho. Se isso tivesse funcionado desse jeito sempre no Brasil, a pobreza não teria mudado de cara. Algo falhou.

No intervalo desse dado, o Bolsa Família, como programa de assistência social, também mudou. No desenho anterior, o benefício era pago per capita, enquanto hoje ele incentiva que as pessoas o declarem erroneamente. É um problema do cadastro e do próprio programa, cujo efeito foi desincentivar quem está nele de procurar trabalho.

Também não houve, nesse período, um programa de reinserção das pessoas que estão no Bolsa Família. É exatamente isso que estamos propondo agora. Por enquanto, o país continua com um programa de transferência de renda que, ao contrário, penaliza o pobre quando ele arruma um trabalho.

Pior do que isso: não o ajuda a se incluir produtivamente enquanto ele está desempregado. Essa perspectiva é clara: vai piorar. Desses dois braços, um não funciona muito bem e o outro está totalmente sem proposta. Não apareceu nada para ocupar o lugar do Brasil Sem Miséria, por exemplo.

·        Mas os pobres de antes, que trabalhavam, mas ganhavam pouco, não fariam parte desse grupo de extrema pobreza agora?

Machado - De fato, tinha muita gente trabalhando e em condição de pobreza considerável.

·        Então, o quanto incluir essas pessoas não seria colocá-las de novo naquele perfil da pobreza anterior, trabalhando e ainda assim, muito pobres?

Machado - É que, no passado, o Bolsa Família entregava um valor de R$ 89. Depois ele foi subindo: primeiro para R$ 104, depois, na pandemia, para R$ 400 e, então, para R$ 600. Agora está do jeito que está. Não significa dar um passo para trás, porque é ótimo que a gente tenha um programa que entrega esse salário reserva [de R$ 600].

Estamos apontando agora para um desenho de transição dele ao mercado de trabalho. Naquele momento, o Bolsa Família era muito pequeno, estávamos tentando ajudar essas pessoas a gerar renda via arranjo produtivo ou inclusão de outro tipo. Hoje, o foco é manter o benefício que elas já possuem e, ao mesmo tempo, entregá-las para uma atividade produtiva.

·        Quem gera vagas de emprego no Brasil costuma reclamar da falta de qualificação da mão de obra. Como convencer estas pessoas a contratar quem hoje, além desse problema, ainda está na pobreza extrema?

Machado - É que elas não deveriam ser convencidas. Precisamos de um programa que coloca as pessoas mais pobres em condição de competir por essas vagas. O setor privado não deveria contratar trabalhadores menos eficientes ou desinteressantes para ele. Não se trata de uma concessão, de uma cota para essa população, mas que ela seja fortalecida em termos da sua capacidade de trabalho.

De um lado, o mercado produz, gera riqueza e abre vagas de emprego e, do outro lado — onde a mão invisível não funciona — tem que ter alguém intermediando as condições de ocupar esses postos de trabalho. É óbvio que, se eles ofertarem um salário pífio, não serão ocupados. Mas aí é outro problema.

·        Quais trabalhos essas pessoas poderiam fazer, levando em conta, ainda, o desafio da qualificação?

Machado - A ideia de um programa de superação de pobreza e de inclusão pela via do trabalho é fazer um casamento entre as vocações das famílias mais pobres com as oportunidades que o território onde elas vivem oferta. Essas vagas não são pré-determinadas.

É aí que está, inclusive, a importância dos agentes de desenvolvimento social no desenho: são pessoas preparadas para conversar com as famílias, explorar as oportunidades de trabalho que elas entendem que cabem a elas, considerando o que elas sabem e gostam de fazer, e fazer esse casamento.

Isso vai dar um monte de possibilidades, porque é comum achar que pobres não têm uma atividade laboral, quando, na verdade, eles têm. Ela só está enfraquecida. Há até alguns exemplos disso no Brasil.

·        Quais?

Machado - Em Minas Gerais, por exemplo, houve um projeto que notou como a maior vontade de um grupo grande de mulheres desempregadas e com filhos era encontrar emprego, mas com alguns requisitos: que fosse próximo de casa, com flexibilidade de horários e sem uma grande demanda física.

Então, descobriram que elas eram boas para trabalhos internos na construção civil, como fazer rejunte, colocar revestimento, instalar piso, essas coisas. O setor topou se adaptar aos horários das escolas dos filhos delas e, então, criou um programa de formação que deu certo: muitas dessas mulheres foram, de fato, trabalhar na construção civil depois.

·        Mas como funcionaria em cidades onde há menos vagas no mercado de trabalho do que a oferta local de mão de obra?

Machado - Esse casamento vai ser fácil em alguns lugares, mas difícil em outros. Alguns lugares não terão oferta de emprego e, neles, será necessário fazer arranjos produtivos locais.

O mel produzido na zona rural do Piauí é um exemplo. O governo resolveu ajudar um conjunto de famílias pobres que produziam mel em uma área rural do Estado fortalecendo suas cadeias produtivas e ofertando meios delas finalizarem o produto.

Daí se estabeleceu um arranjo produtivo por meio de uma cooperativa capaz de fortalecer a marca do mel, certificar a sua qualidade, vendê-lo em locais com mais demanda. No final, ele se valorizou. Hoje, tem uma embalagem, uma marca, um marketing e ele é vendido em locais onde o preço é mais alto.

Veja bem: para aquelas famílias, o ofício é o mesmo, mas, agora, a comercialização está fortalecida. Isso demonstra a importância desse projeto acontecer da família para fora e não o contrário.

Tem ainda o exemplo do Rio Grande do Sul, onde uma série de produtores de azeite entrou em um programa chamado Pró-Oliva — que hoje está até presente na lei gaúcha.

Era um produto comercializado por preços abaixo das marcas comuns do mercado. Daí o governo o colocou para competir no exterior, ganhou um monte de prêmios, e ele começou a ser vendido em uma lojinha em Gramado com o selo dos reconhecimentos. Pronto: aquelas famílias pobres passaram a vender o azeite pelo triplo do preço anterior e saíram da condição de pobreza em que estavam.

Todos esses exemplos são importantes para entender a ideia: as mulheres de Minas precisaram se adequar a um novo ofício, na construção civil, enquanto os produtores pobres que faziam mel no Piauí ou azeite no Rio Grande do Sul mudaram de situação por meio da comercialização do produto deles.

São demandas diferentes, mas que funcionaram. Veja: a lógica do projeto é semelhante à do médico que fala com o paciente, identifica o problema e monta um tratamento individual para ele.

·        Mas nem todas essas pessoas estão produzindo algo. Além disso, há uma série de críticas à ideia do empreendedorismo. Como vocês observam isso dentro desse escopo?

Machado - Nesses exemplos que dei, ofertar cursos de empreendedorismo — o que é muito comum, aliás — não iria resolver o problema. É entender que empreender é uma ótima ideia, mas que não serve para todos.

Isso reforça como tudo começa identificando a vocação das famílias e fazendo o casamento dela com o território, que também tem suas vocações. Se acontecer, ótimo.

Não dá para achar que existe um único remédio para todas as doenças — neste caso, que todos os pobres nessa situação querem só empreender. É um canal que precisa estar aberto e, que, para mim, parece até atrativo.

Tem dados qualitativos que mostram até uma empolgação das famílias com o empreendedorismo, apesar de certo medo com a aposentadoria.

·        Como lidar com a possibilidade do emprego que surgir desse casamento entre vocações terminar colocando a pessoa em uma situação de precariedade?

Machado - Temos legislações e órgãos de controle que acompanham isso. Mas, se a gente olhar, essa não é uma realidade apenas dos 10% mais pobres, mas de 40% da força de trabalho que está no mercado informal. Todas essas pessoas estão mais suscetíveis a serem precarizadas do que os trabalhadores formais.

Claro que seria preciso um esforço ainda maior para checar as situações às quais as pessoas do projeto estariam sujeitas depois de empregadas, mas há uma série de normas, canais de denúncia, um sistema judiciário com condições de averiguar, ainda que não com tanta rapidez.

Sem contar, novamente, a importância do agente de desenvolvimento social em entender a vocação da família, ajudá-la a se alocar no mercado e fazer uma boa intermediação daquela mão de obra, para que aquelas pessoas acessem os setores produtivos de forma digna.

·        E o desafio da rotatividade? O mercado de trabalho brasileiro, principalmente empregos de salários mais baixos, tem uma alta circulação de trabalhadores pelas vagas. Como seria no caso dos mais pobres?

Machado - Há algum tempo, em uma conversa com o Martín Burt [presidente da Fundación Paraguaya], que foi prefeito de Assunção, no Paraguai, ele me disse algo que não esqueci: qualquer programa de superação de pobreza não vai resolver todos os problemas das pessoas mais pobres, mas vai tirá-las daquela situação e jogá-las no mundo dos problemas comuns das “classes médias”.

Esse é um bom exemplo: a rotatividade também é um desafio que assola toda a força de trabalho brasileira. Uma vez incluídas em um mundo onde têm renda, essas pessoas ainda estarão sujeitas a problemas de todos nós — baixas atualizações salariais, alta rotatividade, a possibilidade de ser demitido e ter que encontrar outra vaga, etc. Tudo como parte de um mundo novo. Elas vão precisar ser acompanhadas e orientadas para lidar com questões com essas.

Em um momento de crescimento econômico como o de agora, o fundamental é que a intermediação de mão de obra seja bem realizada, um prestador de serviço fortalecido que conheça as vagas existentes no lugar, saiba quem está buscando por trabalho e consiga fazer esse match acontecer.

·        É que, no caso desses mais pobres, se eles perdem o trabalho, voltam para aquela condição de pobreza extrema de antes. Podem até ficar sem o Bolsa Família.

Machado - Isso pode acontecer com todo mundo. Você está trabalhando, daí perde o emprego e cai em uma situação extrema. Precisa se adequar e voltar [ao mercado de trabalho]. A pobreza é cíclica: ela roda, troca de lugar, novos bolsões nascem, outros terminam... É difícil que isso seja absolutamente erradicado.

Qualquer política de superação da pobreza deve ficar monitorando, readequando, reinserindo constantemente as pessoas. Não se trata de uma política de desenvolvimento econômico, que faz o país crescer e produzir, mas de um serviço que acopla os mais pobres de volta ao mercado de trabalho. Essa dinâmica precisa ser permanente.

·        Pensando ainda no contexto de informalidade, dá para saber que atividade laboral essas pessoas têm hoje?

Machado - Se uma pessoa no Bolsa Família tem atividade com renda acima da linha do programa, perde o benefício. Então, não dá para saber. Pode ser que a maioria delas não esteja trabalhando absolutamente ou que parte delas esteja fazendo algo não declarado. Provavelmente as duas coisas estejam acontecendo, mas não sabemos o tamanho disso.

·        É difícil mapear?

Machado - É que o “imposto” que existe para a família que declara corretamente é muito alto. Em vez de premiar as pessoas porque elas conseguiram um emprego, o país apenas retira o recurso.

·        O que falta para essa ideia sair do papel?

Machado - Ela precisa ser uma política pública sem necessariamente ter execução governamental. É curioso que a gente já tenha tido algo assim: o Brasil Sem Miséria, criado no governo da presidente Dilma Rousseff. Ela quis, desenhou, escreveu, tem um livro enorme já pronto. É só pegá-lo, atualizá-lo — porque o mundo mudou de lá para cá — e fazê-lo funcionar outra vez. Precisa decidir fazer.

·        E por que o Brasil Sem Miséria não deu certo?

Machado - O desenho dele era muito bom, mas sumiu do mapa em 2016, depois que a Dilma deixou o cargo. Não sabemos muito bem o motivo — e tampouco porque ele não volta. Eu realmente não sei por que esse governo não faz, já que foi do [partido do] presidente atual que saiu o programa.

·        Se não é uma execução governamental, quem poderia fazê-lo acontecer?

Machado - No nosso desenho, o agente de desenvolvimento da família chegaria com a demanda da mesma forma que o médico: “o diagnóstico é esse e o paciente precisa disso”. Aí precisaríamos de um "hospital" para atendê-las. Ali estaria a intermediação da mão de obra, em que o setor privado atua melhor do que o Estado. Precisaríamos de programas de qualificação profissional que, da mesma forma, o mercado privado tem melhores.

Vamos precisar também de um sistema de saúde — e daí já temos o SUS. Temos ainda a necessidade de educação técnica, que o Centro Paula Souza, em São Paulo, oferece, por exemplo. Seria um portfólio com todos os motivos pelos quais aquelas famílias estão excluídas do mercado. Comercialização, intermediação de mão de obra, problemas de saúde, qualificação profissional, creche para quem tem filhos...

Enfim, é tarefa para todo mundo. É por isso que se trata de um grande programa de articulação de políticas que, aí sim, deve ser feito pelo poder público. Mas ele não precisa executar. Tem coisas que o setor privado é mais ágil.

·        Você apontava alguns problemas no Bolsa Família. Quais ajustes precisam ser feitos no programa?

Machado - O Bolsa Família é o responsável pelas grandes reduções de pobreza do país. É a coroa brasileira, nosso maior instrumento de política social, mas que não pode ser blindado de mudanças necessárias. O desenho per capita do benefício, por exemplo, era infinitamente melhor, porque incentivava as famílias a declararem sua renda corretamente.

Sem contar que, do jeito que está, por exemplo, um casal sem filhos tem uma renda per capita de R$ 300, enquanto quem tem um único filho possui renda per capita menor, de R$ 250. Isso é injusto. Não tem nenhum benefício para a primeira infância. Pior ainda: se o casal sem filhos se declarar como casal, ganhará o valor de R$ 600, mas, se cada um se declarar sozinho — e dá para fazer isso —, então cada adulto receberá R$ 600.

·        Dobra o valor dentro da mesma casa. Isso está acontecendo?

Machado - Sim. Antes o beneficiário declarava a sua família e o programa dividia o número de membros dela pelo valor transferido. Um casal, por exemplo, recebia duas vezes o valor dessa divisão. Se fosse uma pessoa só, receberia o montante individual a partir desse mesmo cálculo.

Ou seja: dava na mesma se declarar como família ou individualmente. As pessoas, então, declaravam corretamente. Hoje o Bolsa Família incentiva que se declare errado — e, como é consenso na economia, as pessoas respondem a incentivos.

É por isso que o desenho do programa precisa voltar a ser per capita. Se a declaração está errada, então, todas as tarifas sociais embutidas no Cadastro Único, o [programa] Pé-de-Meia, o Minha Casa, Minha Vida, tudo também está errado. Nós gostaríamos mesmo que o Bolsa Família fosse grande, que a rede de proteção dele fosse alta. Isso não é ruim. Ele só precisa voltar a ser per capita e ter um desenho de transição que incentive as pessoas a trabalharem.

·        Sem uma inclusão produtiva efetiva e com esses problemas atuais do Bolsa Família, o que pode se esperar do futuro?

Machado - Nesses últimos 20 anos,aconteceram duas coisas importantes de observar. Uma é que a população mais pobre foi totalmente excluída do mercado de trabalho. A outra é que, em paralelo, cresceu a discussão sobre a primeira infância, e mais especificamente sobre como cuidar dos filhos dessas famílias em situação vulnerável. Isso não existia antes.

A nossa perspectiva é que, se os programas de primeira infância funcionarem bem agora, as crianças terão um futuro. Os pais nós não sabemos, porque é difícil cuidar de uma criança com os cuidadores em desalento, mas já será uma criação diferente daquela do passado.

Eu costumo ser otimista. Acho que é só a gente decidir fazer que, então, engatamos as coisas e revertemos a situação atual. Por ora, infelizmente, ainda não aconteceu.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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