Antonio Martins: Derrota e Descaminho
Mesmo quando
previstas, as derrotas graves são doídas. Embora Lula governe o país, os
partidos de esquerda e centro esquerda fecharam, ontem, o pleito deste ano
elegendo apenas três, de 26 prefeitos de capitais – uma queda abrupta frente
aos 14, em 2012, e abaixo mesmo dos 6, em 2020, sob o mandato de Jair
Bolsonaro. A esquerda perdeu redutos históricos como Diadema (SP), onde
governou por 32 anos nas últimas quatro décadas e elegeu, em todo o país, um
número de prefeitos menor do que o alcançado há quatro anos. No primeiro turno,
o PL, de Jair Bolsonaro, foi o partido mais votado (com 13,95% dos votos),
graças a sua ascensão nas grandes cidades; e o PT, apenas o sexto (com 7,79%).
Mas no cômputo geral
dos municípios, prevaleceram os quatro partidos do Centrão – cujo compromisso
com as pautas neoliberais, na economia, e conservadoras, nos costumes, é
indisputado. PSD, MDB, PP e União Brasil venceram juntos em 3097 cidades, quase
onze vezes mais que a federação formada por PT, PCdoB e PV. No Nordeste,
tradicional reduto lulista, PT e PSB elegeram apenas duas prefeituras – contra
sete do Centrão (5) e PL (2) somados. Em São Paulo, a coalizão formada em torno
de Ricardo Nunes venceu em todos os distritos eleitorais da periferia, exceto
dois. Em todo o país, as pesquisas sugerem que direita e Centrão avançaram
sobre o eleitorado jovem, invertendo uma tendência histórica.
* * *
Embora muitos fatores
(inclusive internacionais) devam ser elencados para buscar os motivos do
fiasco, um parece claro. Em seus primeiros dois anos, o governo Lula foi
incapaz de corresponder às esperanças de que iniciaria a reconstrução nacional,
superando o interregno de retrocessos aberto pelo golpe de 2016 e ampliado por
Bolsonaro. As condições eram difíceis desde o início, mas o Palácio do Planalto
acomodou-se à correlação de forças existente – ao invés de tentar alterá-la. A
mobilização popular, sua principal ferramenta para fazê-lo, foi sempre
desprezada.
Disso advieram duas
consequências, desastrosas e complementares. As instituições conservadoras, que
atuam como barreiras das elites para manutenção dos privilégios e da
desigualdade, jamais sentiram-se pressionadas a fazer concessões. Um exemplo
típico é o Banco Central. Bem cedo seus dirigentes – nomeados por Bolsonaro e
abertamente partidários do ex-presidente – perceberam que, embora esbravejasse
contra as taxas de juros, Lula não os submeteria a constrangimentos reais;
assim como não mobilizaria os bancos públicos para aliviar a inadimplência e
captura dos tostões da população endividada. O mesmo ocorreu com as
concessionárias privadas do setor elétrico ou, em muito maior escala, com o
Congresso Nacional, onde as pautas antipopulares tramitam sem tensão.
O segundo efeito é
que, ao não abrir disputa contra os conservadores, Lula é visto como mais um
entre eles – ou seja: parte da minoria que enriquece enquanto o país definha.
Num cenário de crise prolongada, esta identificação dá origem a fenômenos
bizarros, pois entrega à direita a poderosíssima bandeira de “antissistema”.
Como em São Paulo, onde parte expressiva do eleitorado atribuiu esta imagem a
Pablo Marçal – um milionário que se identifica com o homem mais rico do mundo –
e não a Guilherme Boulos, que associou sua figura à do chefe do governo…
* * *
A baixa potência de
Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste
fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país
empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal
alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura
e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme
dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no
Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a
extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a
duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação
de todos os profissionais necessários a estas tarefas.
Ao invés de abraçar
projetos como estes, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica
aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há
décadas e acaba de ampliá-los; a União Europeia debate neste exato momento o Plano
Draghi (1 2), que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão
déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal
escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos
dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes
na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo
político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a
campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a movida que o
próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela
alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo.
* * *
Por volta de 10 de
outubro, quando o ministro da Fazenda deu iniciou à fase crucial do movimento
que deflagrara quatro meses antes, o resultado das urnas já estava delineado.
Haddad sabia, portanto, que seus atos incidiriam sobre um cenário de derrota
eleitoral do governo e de início das definições rumo a 2026. Decidiu ir
adiante.
Em 15 de outubro,
algumas das colunas jornalísticas mais prestigiadas do país – em especial, as
de Mônica Bergamo e Míriam Leitão – publicaram entrevistas em que o ministro
admitia publicamente, pela primeira vez, seu desejo de promover “cortes
estruturais” no gasto social da União. As medidas exatas, disse ele às
jornalistas, estavam sobre a mesa de Lula (ou chegariam, nos dias seguintes),
depois de terem sido longamente arquitetadas por seu ministério e pelo
Planejamento, de Simone Tebet. Seriam feitos após as eleições.
Mas os itens do
cardápio eram claros. Fim dos dispositivos que asseguram à Saúde e Educação
percentuais mínimos do Orçamento. Restrições ao Benefício de Prestação
Continuada (BCP), a aposentadoria dos mais pobres. Cortes no seguro-desemprego.
Em certas versões, fim da âncora que protege as aposentadorias, ligando-as à
evolução do salário-mínimo. Caberia a Lula optar. Mas em todos os momentos o
ministro frisou “ver razão” nas pressões da Faria Lima por mais apertos nos
gastos públicos. Insinuou que, se fossem satisfeitas, o “interesse
internacional” poderia manifestar-se em busca de “vantagens comparativas que
têm a ver com nossa matriz produtiva e energética”. Um brinde à ENEL e suas
correlatas…
A manobra, porém,
ainda não estava completa. No dia seguinte, 16/10, Haddad conduziria ao
encontro de Lula os maiores banqueiros do país, que se reuniram juntos com o
presidente pela primeira vez. O acerto, conta a repórter e analista Maria
Cristina Fernandes, no Valor, vinha sendo feito pelo ministro e pela Febraban
desde junho. Ou seja: as entrevistas da véspera tinham a intenção de
reforçá-lo, criando sinergia entre os dois eventos. E assim foi. A própria
Maria Cristina reportou mais tarde que, embora tenham tratado também de temas
laterais (como o efeito dos saques na poupança sobre o crédito imobiliário e a
regulação das bets), os banqueiros quiseram frisar, acima de tudo, seu apoio à
cruzada de Haddad pelo corte “estrutural” nos gastos públicos. [Ninguém tocou,
decerto, num tema-tabu: o fato de os juros pagos pelo Estado a um punhado de
rentistas corresponder, a cada ano, a 2,5 vezes todo o orçamento federal para a
Saúde, que atende 210 milhões de pessoas em 5600 municípios…].
* * *
A Economia precisa
encontrar-se com a Política. Em vista das eleições, qual será o perfil do
governo Lula, caso ele aceite o sentido do pacote proposto pelo ministro da
Fazenda? E que cenário está pressuposto nesta “conversão” do presidente?
À esquerda, as perdas
de Lula serão inevitáveis. Nos grupos de internet ligados à defesa do SUS, por
exemplo, já circulam manifestos contra o fim da garantia de verbas para a Saúde
Pública – que contam com a simpatia, inclusive, de ex-ministros de Lula e
Dilma. Porém, é possível que Haddad (e talvez seu superior) faça(m) outros
cálculos. Nestas contas hipotéticas, a esquerda não terá outra alternativa:
engolirá o corte de verbas e direitos, pois será forçada a apoiar Lula (ou seu
eventual candidato sucessor…) contra a ultradireita, em 2026.
E o desenho da disputa
presidencial, em dois anos, será muito diferente do vivido em 2022. De um lado
estará a ultradireita. De outro, Lula (ou um sucessor…). A Frente ampla que o
apoiará já não terá em sua espinha dorsal a esquerda e a centro-esquerda. Basta
olhar para a composição do Congresso (e a das prefeituras recém-eleitas) para
enxergar. Nesse novo arranjo, dará as cartas o Centrão. Gilberto Kassab (PSD) e
Baleia Rossi (MDB) serão os ministros mais poderosos – ou as eminências pardas…
Caberá à esquerda coadjuvar, tanto no ministério quanto – muito mais importante
– na definição dos planos de governo.
* * *
Estamos condenados a
tão pouco? A primeira resposta cabe a Lula. Ele se conformará a tal conchavo?
Aceitará – assim como Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França,
Alberto Fernandez na Argentina ou Olaf Sholz na Alemanhha – o papel de figura
decorativa, a lembrar que houve vida e ousadia, onde então só restará
subalternidade? Saberemos nas próximas semanas.
E caso ele sucumba?
Estaremos dispostos a trocar nossos projetos e sonhos de um país reconstruído
por um punhado de ministérios de consolação? Ou, pior ainda, a fazer parte de
um projeto que não sobreviverá à onda de ultradireita, devido à sua própria claudicância?
Nas últimas semanas,
têm surgido, entre personagens de uma esquerda insubmissa, considerações de que
este destino não é digno, nem aceitável. As próximas semanas e meses dirão se
esta ousadia tem futuro.
• Maré direitista. Por Jeferson Miola
Os resultados do
segundo turno consolidaram o cenário de derrota estrondosa das esquerdas
prefigurado no primeiro turno da eleição municipal.
As urnas evidenciaram
um país adernado à direita. E mostraram o avanço do extremismo para além dos
legislativos estaduais e federal, alcançando também a esfera municipal de
poder.
A partir de janeiro do
próximo ano, direita e extrema-direita assumem a administração de políticas
públicas e dos orçamentos de importantes centros urbanos em todo país,
aumentando ainda mais sua audiência e ressonância na sociedade.
Embora Bolsonaro tenha
assistido a derrota de candidatos extremistas em cujas campanhas ele mais se
empenhou, é bastante positivo o resultado eleitoral para a extrema-direita, que
está alojada em diferentes partidos, como União Brasil, Novo, Podemos, Republicanos,
PP e, secundariamente, em outras siglas, como até no MDB e PSD, e não só no PL
do Bolsonaro.
Como Bolsonaro, Lula
também sofreu reveses importantes, o principal deles na cidade de São Paulo. No
início do ano, Lula fez uma aposta de risco – disse que a eleição na capital
paulista seria um confronto entre ele e Bolsonaro, e acabou absorvendo o custo
da derrota de Guilherme Boulos.
O PT também foi
derrotado no ABC paulista, berço do Partido, e no Estado de São Paulo, onde
conquistou apenas quatro prefeituras, a maior delas de Mauá, com 318 mil
habitantes; Matão, com 64 mil; Santa Lucía, com 6,4 mil; e Lucianópolis, com
2.173 habitantes.
A alegação de que o PT
cresceu em relação a 2020 contrasta com o perfil das cidades que o Partido
passará a governar a partir de 2025: 75% delas [188] têm até 20 mil habitantes,
outras 16% [41] têm entre 20 mil e 50 mil, 5% [15] entre 50 mil e 100 mil, e
apenas oito cidades com população maior que 100 mil habitantes, dentre elas a
capital Fortaleza.
O PT governará 10
milhões de pessoas, o PSB 9 milhões e o PDT 3 milhões. Por outro lado, o PSD
governará uma população de 37 milhões, o MDB 36,6 milhões, o PL 27 milhões,
União 22 milhões, PP 20 milhões, e o Republicanos 13,8 milhões.
Um detalhe é muito
relevante: enquanto as esquerdas se localizam preponderantemente nas menores
cidades, as direitas e as extremas-direitas controlarão os centros urbanos mais
densos e com maior poder de propagação da disputa pela hegemonia política, cultural
e ideológica.
Quase 70% das
prefeituras conquistadas pelo PT estão em três estados – Bahia [50], Piauí [50]
e Ceará [47]. Na região Sudeste estão 17% das prefeituras [42 no total], sendo
35 delas em Minas Gerais, enquanto no Rio foram três, São Paulo apenas quatro e
no Espírito Santo nenhuma. A região Sul representa 12% das vitórias municipais
[30 prefeituras], sendo 20 delas no Rio Grande do Sul, sete em Santa Catarina e
três no Paraná.
O reflorescimento do
extremismo e do fascismo tracionou a política para a direita do espectro
ideológico, e praticamente causou o desaparecimento do centro político.
Isso não é
exclusividade do Brasil, porque é um fenômeno verificado mundialmente. O que é
genuinamente brasileiro é o ódio antipetista, que serve para compactar o campo
reacionário e conservador tanto da política como da mídia hegemônica, que
exerce um papel funcional na alimentação da subjetividade odiosa e
estigmatizada do PT e das esquerdas.
A auto-classificação
que Gilberto Kassab faz do seu PSD como um partido de centro é apenas uma
acrobacia retórica oportunista. Com sua acrobacia, Kassab preserva a condição
de pêndulo que pratica jogo duplo, triplo e até quádruplo para se aboletar em
qualquer governo, seja progressista ou extremista.
Heterogêneo, com
políticos de centro-direita e até de centro, o PSD é hegemonicamente um partido
de direita, conservador e ultraliberal. Quando salta do falso muro centrista,
Kassab assume que o projeto dele é o mesmo do Tarcísio de Freitas, um
extremista com sabor artificial de moderado.
“Eu vou estar alinhado
com o projeto que seja compatível com o projeto do Tarcísio, seja ele
governador ou presidente”, disse Kassab, ao mesmo tempo em que afirma que a
bancada do PSD no Congresso não fechará posição contra o Projeto de Lei que
anistia criminosos golpistas, dentre eles Bolsonaro e outros delinquentes civis
e fardados.
Não há correlação
automática de efeitos entre os resultados dos pleitos municipais e a eleição
presidencial de 2026, mas a realidade indica um cenário de dificuldades
consideráveis para a reeleição do presidente Lula.
As esquerdas e o
governo Lula precisam urgentemente decifrar essa derrota acachapante e entender
a maré direitista vis a vis os limites de hoje das políticas governamentais que
já não conseguem atrair, empolgar e manter o eleitorado lulo-petista como conseguiam
nos governos anteriores de Lula e Dilma.
É preciso analisar as
razões dessa realidade mais além de identificar causas-efeitos aparentes, como,
por exemplo, a supervalorização da influência das emendas parlamentares nos
resultados.
O PT foi o partido que
teve mais verbas do orçamento liberadas neste ano eleitoral: foram R$ 617
milhões.
Esta cifra é muito
superior aos valores liberados para o MDB, que teve R$ 450 milhões; ao União
Brasil, com R$ 445 milhões; ao PSD, com R$ 407 milhões; ao PP, com R$ 395
milhões; e ao Republicanos, que recebeu R$ 386 milhões.
E é também muito maior
que as emendas liberadas para o PL do Bolsonaro, que contou com quase metade do
PT – R$ 367 milhões, e ainda assim teve um desempenho eleitoral bem superior.
Este momento não
admite ilusões ou falsos consolos, pois o negacionismo diante dessa realidade
cobrará um alto preço no próximo período.
Fonte: Outras Palavras/Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário