quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Antonio Martins: Derrota e Descaminho

Mesmo quando previstas, as derrotas graves são doídas. Embora Lula governe o país, os partidos de esquerda e centro esquerda fecharam, ontem, o pleito deste ano elegendo apenas três, de 26 prefeitos de capitais – uma queda abrupta frente aos 14, em 2012, e abaixo mesmo dos 6, em 2020, sob o mandato de Jair Bolsonaro. A esquerda perdeu redutos históricos como Diadema (SP), onde governou por 32 anos nas últimas quatro décadas e elegeu, em todo o país, um número de prefeitos menor do que o alcançado há quatro anos. No primeiro turno, o PL, de Jair Bolsonaro, foi o partido mais votado (com 13,95% dos votos), graças a sua ascensão nas grandes cidades; e o PT, apenas o sexto (com 7,79%).

Mas no cômputo geral dos municípios, prevaleceram os quatro partidos do Centrão – cujo compromisso com as pautas neoliberais, na economia, e conservadoras, nos costumes, é indisputado. PSD, MDB, PP e União Brasil venceram juntos em 3097 cidades, quase onze vezes mais que a federação formada por PT, PCdoB e PV. No Nordeste, tradicional reduto lulista, PT e PSB elegeram apenas duas prefeituras – contra sete do Centrão (5) e PL (2) somados. Em São Paulo, a coalizão formada em torno de Ricardo Nunes venceu em todos os distritos eleitorais da periferia, exceto dois. Em todo o país, as pesquisas sugerem que direita e Centrão avançaram sobre o eleitorado jovem, invertendo uma tendência histórica.

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Embora muitos fatores (inclusive internacionais) devam ser elencados para buscar os motivos do fiasco, um parece claro. Em seus primeiros dois anos, o governo Lula foi incapaz de corresponder às esperanças de que iniciaria a reconstrução nacional, superando o interregno de retrocessos aberto pelo golpe de 2016 e ampliado por Bolsonaro. As condições eram difíceis desde o início, mas o Palácio do Planalto acomodou-se à correlação de forças existente – ao invés de tentar alterá-la. A mobilização popular, sua principal ferramenta para fazê-lo, foi sempre desprezada.

Disso advieram duas consequências, desastrosas e complementares. As instituições conservadoras, que atuam como barreiras das elites para manutenção dos privilégios e da desigualdade, jamais sentiram-se pressionadas a fazer concessões. Um exemplo típico é o Banco Central. Bem cedo seus dirigentes – nomeados por Bolsonaro e abertamente partidários do ex-presidente – perceberam que, embora esbravejasse contra as taxas de juros, Lula não os submeteria a constrangimentos reais; assim como não mobilizaria os bancos públicos para aliviar a inadimplência e captura dos tostões da população endividada. O mesmo ocorreu com as concessionárias privadas do setor elétrico ou, em muito maior escala, com o Congresso Nacional, onde as pautas antipopulares tramitam sem tensão.

O segundo efeito é que, ao não abrir disputa contra os conservadores, Lula é visto como mais um entre eles – ou seja: parte da minoria que enriquece enquanto o país definha. Num cenário de crise prolongada, esta identificação dá origem a fenômenos bizarros, pois entrega à direita a poderosíssima bandeira de “antissistema”. Como em São Paulo, onde parte expressiva do eleitorado atribuiu esta imagem a Pablo Marçal – um milionário que se identifica com o homem mais rico do mundo – e não a Guilherme Boulos, que associou sua figura à do chefe do governo…

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A baixa potência de Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação de todos os profissionais necessários a estas tarefas.

Ao invés de abraçar projetos como estes, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há décadas e acaba de ampliá-los; a União Europeia debate neste exato momento o Plano Draghi (1 2), que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a movida que o próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo.

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Por volta de 10 de outubro, quando o ministro da Fazenda deu iniciou à fase crucial do movimento que deflagrara quatro meses antes, o resultado das urnas já estava delineado. Haddad sabia, portanto, que seus atos incidiriam sobre um cenário de derrota eleitoral do governo e de início das definições rumo a 2026. Decidiu ir adiante.

Em 15 de outubro, algumas das colunas jornalísticas mais prestigiadas do país – em especial, as de Mônica Bergamo e Míriam Leitão – publicaram entrevistas em que o ministro admitia publicamente, pela primeira vez, seu desejo de promover “cortes estruturais” no gasto social da União. As medidas exatas, disse ele às jornalistas, estavam sobre a mesa de Lula (ou chegariam, nos dias seguintes), depois de terem sido longamente arquitetadas por seu ministério e pelo Planejamento, de Simone Tebet. Seriam feitos após as eleições.

Mas os itens do cardápio eram claros. Fim dos dispositivos que asseguram à Saúde e Educação percentuais mínimos do Orçamento. Restrições ao Benefício de Prestação Continuada (BCP), a aposentadoria dos mais pobres. Cortes no seguro-desemprego. Em certas versões, fim da âncora que protege as aposentadorias, ligando-as à evolução do salário-mínimo. Caberia a Lula optar. Mas em todos os momentos o ministro frisou “ver razão” nas pressões da Faria Lima por mais apertos nos gastos públicos. Insinuou que, se fossem satisfeitas, o “interesse internacional” poderia manifestar-se em busca de “vantagens comparativas que têm a ver com nossa matriz produtiva e energética”. Um brinde à ENEL e suas correlatas…

A manobra, porém, ainda não estava completa. No dia seguinte, 16/10, Haddad conduziria ao encontro de Lula os maiores banqueiros do país, que se reuniram juntos com o presidente pela primeira vez. O acerto, conta a repórter e analista Maria Cristina Fernandes, no Valor, vinha sendo feito pelo ministro e pela Febraban desde junho. Ou seja: as entrevistas da véspera tinham a intenção de reforçá-lo, criando sinergia entre os dois eventos. E assim foi. A própria Maria Cristina reportou mais tarde que, embora tenham tratado também de temas laterais (como o efeito dos saques na poupança sobre o crédito imobiliário e a regulação das bets), os banqueiros quiseram frisar, acima de tudo, seu apoio à cruzada de Haddad pelo corte “estrutural” nos gastos públicos. [Ninguém tocou, decerto, num tema-tabu: o fato de os juros pagos pelo Estado a um punhado de rentistas corresponder, a cada ano, a 2,5 vezes todo o orçamento federal para a Saúde, que atende 210 milhões de pessoas em 5600 municípios…].

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A Economia precisa encontrar-se com a Política. Em vista das eleições, qual será o perfil do governo Lula, caso ele aceite o sentido do pacote proposto pelo ministro da Fazenda? E que cenário está pressuposto nesta “conversão” do presidente?

À esquerda, as perdas de Lula serão inevitáveis. Nos grupos de internet ligados à defesa do SUS, por exemplo, já circulam manifestos contra o fim da garantia de verbas para a Saúde Pública – que contam com a simpatia, inclusive, de ex-ministros de Lula e Dilma. Porém, é possível que Haddad (e talvez seu superior) faça(m) outros cálculos. Nestas contas hipotéticas, a esquerda não terá outra alternativa: engolirá o corte de verbas e direitos, pois será forçada a apoiar Lula (ou seu eventual candidato sucessor…) contra a ultradireita, em 2026.

E o desenho da disputa presidencial, em dois anos, será muito diferente do vivido em 2022. De um lado estará a ultradireita. De outro, Lula (ou um sucessor…). A Frente ampla que o apoiará já não terá em sua espinha dorsal a esquerda e a centro-esquerda. Basta olhar para a composição do Congresso (e a das prefeituras recém-eleitas) para enxergar. Nesse novo arranjo, dará as cartas o Centrão. Gilberto Kassab (PSD) e Baleia Rossi (MDB) serão os ministros mais poderosos – ou as eminências pardas… Caberá à esquerda coadjuvar, tanto no ministério quanto – muito mais importante – na definição dos planos de governo.

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Estamos condenados a tão pouco? A primeira resposta cabe a Lula. Ele se conformará a tal conchavo? Aceitará – assim como Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França, Alberto Fernandez na Argentina ou Olaf Sholz na Alemanhha – o papel de figura decorativa, a lembrar que houve vida e ousadia, onde então só restará subalternidade? Saberemos nas próximas semanas.

E caso ele sucumba? Estaremos dispostos a trocar nossos projetos e sonhos de um país reconstruído por um punhado de ministérios de consolação? Ou, pior ainda, a fazer parte de um projeto que não sobreviverá à onda de ultradireita, devido à sua própria claudicância?

Nas últimas semanas, têm surgido, entre personagens de uma esquerda insubmissa, considerações de que este destino não é digno, nem aceitável. As próximas semanas e meses dirão se esta ousadia tem futuro.

 

•        Maré direitista. Por Jeferson Miola

Os resultados do segundo turno consolidaram o cenário de derrota estrondosa das esquerdas prefigurado no primeiro turno da eleição municipal.

As urnas evidenciaram um país adernado à direita. E mostraram o avanço do extremismo para além dos legislativos estaduais e federal, alcançando também a esfera municipal de poder.

A partir de janeiro do próximo ano, direita e extrema-direita assumem a administração de políticas públicas e dos orçamentos de importantes centros urbanos em todo país, aumentando ainda mais sua audiência e ressonância na sociedade.

Embora Bolsonaro tenha assistido a derrota de candidatos extremistas em cujas campanhas ele mais se empenhou, é bastante positivo o resultado eleitoral para a extrema-direita, que está alojada em diferentes partidos, como União Brasil, Novo, Podemos, Republicanos, PP e, secundariamente, em outras siglas, como até no MDB e PSD, e não só no PL do Bolsonaro.

Como Bolsonaro, Lula também sofreu reveses importantes, o principal deles na cidade de São Paulo. No início do ano, Lula fez uma aposta de risco – disse que a eleição na capital paulista seria um confronto entre ele e Bolsonaro, e acabou absorvendo o custo da derrota de Guilherme Boulos.

O PT também foi derrotado no ABC paulista, berço do Partido, e no Estado de São Paulo, onde conquistou apenas quatro prefeituras, a maior delas de Mauá, com 318 mil habitantes; Matão, com 64 mil; Santa Lucía, com 6,4 mil; e Lucianópolis, com 2.173 habitantes.

A alegação de que o PT cresceu em relação a 2020 contrasta com o perfil das cidades que o Partido passará a governar a partir de 2025: 75% delas [188] têm até 20 mil habitantes, outras 16% [41] têm entre 20 mil e 50 mil, 5% [15] entre 50 mil e 100 mil, e apenas oito cidades com população maior que 100 mil habitantes, dentre elas a capital Fortaleza.

O PT governará 10 milhões de pessoas, o PSB 9 milhões e o PDT 3 milhões. Por outro lado, o PSD governará uma população de 37 milhões, o MDB 36,6 milhões, o PL 27 milhões, União 22 milhões, PP 20 milhões, e o Republicanos 13,8 milhões.

Um detalhe é muito relevante: enquanto as esquerdas se localizam preponderantemente nas menores cidades, as direitas e as extremas-direitas controlarão os centros urbanos mais densos e com maior poder de propagação da disputa pela hegemonia política, cultural e ideológica.

Quase 70% das prefeituras conquistadas pelo PT estão em três estados – Bahia [50], Piauí [50] e Ceará [47]. Na região Sudeste estão 17% das prefeituras [42 no total], sendo 35 delas em Minas Gerais, enquanto no Rio foram três, São Paulo apenas quatro e no Espírito Santo nenhuma. A região Sul representa 12% das vitórias municipais [30 prefeituras], sendo 20 delas no Rio Grande do Sul, sete em Santa Catarina e três no Paraná.

O reflorescimento do extremismo e do fascismo tracionou a política para a direita do espectro ideológico, e praticamente causou o desaparecimento do centro político.

Isso não é exclusividade do Brasil, porque é um fenômeno verificado mundialmente. O que é genuinamente brasileiro é o ódio antipetista, que serve para compactar o campo reacionário e conservador tanto da política como da mídia hegemônica, que exerce um papel funcional na alimentação da subjetividade odiosa e estigmatizada do PT e das esquerdas.

A auto-classificação que Gilberto Kassab faz do seu PSD como um partido de centro é apenas uma acrobacia retórica oportunista. Com sua acrobacia, Kassab preserva a condição de pêndulo que pratica jogo duplo, triplo e até quádruplo para se aboletar em qualquer governo, seja progressista ou extremista.

Heterogêneo, com políticos de centro-direita e até de centro, o PSD é hegemonicamente um partido de direita, conservador e ultraliberal. Quando salta do falso muro centrista, Kassab assume que o projeto dele é o mesmo do Tarcísio de Freitas, um extremista com sabor artificial de moderado.

“Eu vou estar alinhado com o projeto que seja compatível com o projeto do Tarcísio, seja ele governador ou presidente”, disse Kassab, ao mesmo tempo em que afirma que a bancada do PSD no Congresso não fechará posição contra o Projeto de Lei que anistia criminosos golpistas, dentre eles Bolsonaro e outros delinquentes civis e fardados.

Não há correlação automática de efeitos entre os resultados dos pleitos municipais e a eleição presidencial de 2026, mas a realidade indica um cenário de dificuldades consideráveis para a reeleição do presidente Lula.

As esquerdas e o governo Lula precisam urgentemente decifrar essa derrota acachapante e entender a maré direitista vis a vis os limites de hoje das políticas governamentais que já não conseguem atrair, empolgar e manter o eleitorado lulo-petista como conseguiam nos governos anteriores de Lula e Dilma.

É preciso analisar as razões dessa realidade mais além de identificar causas-efeitos aparentes, como, por exemplo, a supervalorização da influência das emendas parlamentares nos resultados.

O PT foi o partido que teve mais verbas do orçamento liberadas neste ano eleitoral: foram R$ 617 milhões.

Esta cifra é muito superior aos valores liberados para o MDB, que teve R$ 450 milhões; ao União Brasil, com R$ 445 milhões; ao PSD, com R$ 407 milhões; ao PP, com R$ 395 milhões; e ao Republicanos, que recebeu R$ 386 milhões.

E é também muito maior que as emendas liberadas para o PL do Bolsonaro, que contou com quase metade do PT – R$ 367 milhões, e ainda assim teve um desempenho eleitoral bem superior.

Este momento não admite ilusões ou falsos consolos, pois o negacionismo diante dessa realidade cobrará um alto preço no próximo período.

 Fonte: Outras Palavras/Brasil 247

 

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