quarta-feira, 30 de outubro de 2024

A esquerda empreendedora

Com um simples cotejo casual de afirmações da esquerda com dados empíricos podemos perceber que as análises não estão sendo calibradas pela realidade, mas por impressões subjetivas

##

A “esquerda vem perdendo adesão nas periferias”; “a esquerda perdeu o diálogo com a periferia”; “a esquerda definha nas periferias das capitais”. Essas são algumas manchetes de jornais recolhidos ao acaso nos últimos dias. Agreguem-se a isso as receitas oferecidas: “é preciso apoiar o empreendedorismo, dialogar com os neopentecostais” etc.

Entre os argumentos esgrimidos estaria o de que a periferia não quer mais CLT, Estado, impostos, “ideologia de gênero” etc. Por exemplo, o Data Favela registrou que 8 em cada 10 moradores de favelas pretendem empreender.

Entre as raras vozes que demonstraram entender que a periferia são mil cabeças pensando diferente, como dizia Mano Brown, está Tiaraju Pablo D’andrea que deu uma excelente entrevista ao portal UOL para nos lembrar o básico: não há a periferia abstrata daquelas manchetes citadas, portanto não há uma esquerda que deva se dirigir a ela. Como qualquer lugar, a periferia é o encontro de pessoas de posições políticas e religiosidades distintas e até de classes sociais diferentes.

Há empresários, trabalhadores autônomos, informais, operários, professores, catadores, cantores, poetas, fascistas, socialistas e tudo o que mais se quiser encontrar. Há pobre de direita e há pobre de esquerda. Obviamente há uma predominância de classe e raça. Aliás, periferia não é necessariamente favela, por óbvio. Mas quantas são as pessoas no país que querem empreender?

No Brasil há 16 milhões de moradores de favelas, ou seja 7,5% da população do país. Não é possível afirmar um comportamento geral sobre esse número. Pode-se argumentar que 42% dos brasileiros queriam ter um negócio próprio em 2023 segundo o Global Entrepreneurship Monitor. Esse percentual variou bastante desde 2012, quando se iniciou a série.

O sonho de “ter o próprio negócio” é inversamente proporcional à renda familiar. Entre a população com renda familiar de até 1 salário mínimo cerca de 54% manifestaram aquele sonho. No grupo com renda superior a 6 salários mínimos, essa proporção é 12 por cento menor. No entanto, 42% das pessoas de baixa renda querem “fazer carreira numa empresa” contra apenas 24% entre os que têm renda acima de seis salários mínimos.

Lula disse recentemente que a classe trabalhadora não quer mais a CLT. Para o historiador isso não deixa de ser irônico, pois ele era contrário a ela na década de 1980, embora por outros motivos. Mas a classe à qual Lula se referiu não parece concordar com ele. De acordo com pesquisa da FGV-Ibre 70% dos autônomos querem CLT e esse percentual chega a 75,6% dos informais com renda de até um salário mínimo.

Com esse simples cotejo casual de afirmações da esquerda com dados empíricos podemos perceber que as análises não estão sendo calibradas pela realidade, mas por impressões subjetivas. E são elas que levam a propostas mirabolantes como a do candidato Guilherme Boulos ao incorporar o programa de Tabata Amaral “Jovem empreendedor”: um sistema de crédito a jovens entre 18 e 29 anos que querem começar a empreender.

Ele podia ter dito que sequer é verdade que a esquerda não tenha se preocupado com os tais empreendedores. A Lei da Microempresa é de 2006 e o MEI de 2008. Há no Governo Lula um Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Houve em 2013 a Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República com status de ministério. O que só nos mostra que não é a falta de diálogo com o desejo de empreender que explica linha declinante da esquerda eleitoral desde 2016. Contam por aí que houve 20 anos de criminalização diária do PT nos meios de comunicação de massa, houve Lava Jato, aconteceu o golpe de 2016 e uma tentativa em 2023.

Trabalho informal e precário existe em grandes proporções no Brasil desde a fase colonial. Nem é preciso inspirar-se em modelos europeus para verificar isso. Nas últimas décadas, o crescimento de ocupações “autônomas” também foi fruto da desindustrialização, assim como o aumento da criminalidade. É isso que reforça o apelo neofascista.

E ninguém duvida que serviços autônomos tradicionais continuem a existir porque apresentam vantagens em nichos específicos. É o caso de camelôs, ambulantes, sacoleiros, carregadores, entregadores, costureiros, cabeleireiros, manicures, domésticas, pequenos reparos etc. Mas podemos chamar essas atividades, às vezes exercidas em condições degradantes, de empreendimentos? Há uma disputa ideológica na nomeação. Que pessoas pobres não se sintam parte de uma classe não é novidade: “Grande parte dos pobres, especialmente dos muito pobres, não se considerava proletária nem como tal se comportava e tampouco julgava as organizações e modos de agir do movimento aplicáveis ou relevantes para si”, escreveu Eric Hobsbawm sobre a Belle Époque.

Por certo, há um desejo de autonomia, de viver sem patrão. Mas autonomia não se exerce na miséria. Em vez de se adaptar à ideologia burguesa que ganhou parte da classe trabalhadora, cabe à esquerda explicar à manicure que se não houver crescimento econômico, trabalho formal e massa salarial suficiente ela não poderá “empreender” coisa alguma, pois não terá clientes. É no pleno emprego que os serviços se tornam mais caros. Também é nesses momentos em que muitos “empreendedores” largam o “bico” que faziam e conquistam um posto de trabalho com direitos.

Ao informal, uberizado ou como quer que o chamemos, é necessário dizer que sem impostos progressivos e Estado capaz de investir quando a economia está parando, igualmente não haverá demanda efetiva para seu “negócio”. E para ambos não haverá tratamentos complexos de saúde gratuitos e nem aposentadoria na velhice.

O PT ampliou sua base para o setor inorgânico da população (Caio Prado Júnior); foi um realinhamento eleitoral que ensejou o que André Singer denominou “lulismo”. O Estado seria para os segmentos pobres a fonte de serviços, auxílios monetários e da ordem pública. O compromisso do PT com transferência de renda e seu abandono do radicalismo político seriam o passaporte da “fidelização” daquela base. Isso foi diferente da social democracia clássica que atuou em países sem uma massa popular de trabalhadores informais e estendeu seu apelo à classe média.

Mas a formação de maiorias eleitorais no Brasil continuou a depender dos setores médios, especialmente porque num país urbanizado e desindustrializado o emprego no setor terciário é majoritário. Embora mal pago, ele permite ao trabalhador cultivar valores de diferenciação perante os mais empobrecidos.

O PT tem apresentado em vários casos uma menor intenção de voto na faixa de renda de 2 a 5 salários mínimos. Essas pessoas assumem gastos com plano de saúde e escola privada e rejeitam a partir daí o Estado. Mas como a vida é sempre mais complicada, eu me pergunto por que aqueles que acham que a esquerda deve se adaptar a uma visão de mundo liberal não veem os 69% de brasileiros favoráveis a uma taxação maior dos “super-ricos”?

Isso explica parcialmente as derrotas eleitorais do PT nas capitais do Nordeste e a geografia dos votos de Pablo Marçal em São Paulo. Uma esquerda paulistana que quiser vencer terá que ir ao Jardim Camargo Novo com paradas no Tatuapé e no centro da Penha. Bairro onde aliás o PT já teve a sede de um Conselho Deliberativo Zonal (CDZ).

Também não custa lembrar que as pessoas estão com raiva da esquerda por vários motivos. Um deles é que nós não temos o que oferecer aos trabalhadores formais de renda média a quem desdenhosamente chamamos de classe média. São pessoas que pagam mais impostos que os ricos e gastam seu orçamento com planos de saúde e educação privada. Atendê-las significaria inverter toda a lógica tributária brasileira, de regressiva a progressiva.

Para isso seria preciso confrontar em algum nível a coalizão de rentistas e empresários industriais e do agronegócio que mobilizam o rancor dos assalariados de renda média. Quebrar essa aliança é a verdadeira disputa de hegemonia. Maior do que as guerras culturais da direita, os necrológios da esquerda e os achismos sobre “periféricos” e “empreendedores”.

 

Fonte: Por Lincoln Secco, em A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário