Walden Bello: ‘Adeus ao mundo
eurocêntrico?’
A primeira vez que
encontrei Walden Bello foi no verão de 2001, em Porto Alegre. Por ocasião do
primeiro Fórum Social Mundial (FSM), há mais de duas décadas, esse sociólogo
das Filipinas, ex-membro do parlamento de seu país viajou para o sul do Brasil
como tantos ativistas, líderes e acadêmicos ou pesquisadores que esperavam que
esse fórum, e os que o seguiram por vários anos, se consolidasse como uma
tribuna internacionalista de resistência ao neoliberalismo – então em seu
momento de expansão – e, ao mesmo tempo, uma plataforma para ideias
alternativas. Bello, pouco conhecido na América do Sul, já era presença
importante nos movimentos “altermundistas”. Dirigia uma rede de organizações
sul-asiáticas denominada Focus on the Global South, cujo nome
me chamou atenção.
O termo “Sul Global”
apareceu pela primeira vez em 1969, quando o professor e ativista
norte-americano Carl Oglesby escreveu um artigo sobre a Guerra do Vietnã no
qual mencionou a “dominação do Norte sobre o Sul Global” — causa, segundo ele,
de uma “ordem social intolerável”.
“Certamente não fomos
os inventores nem os pioneiros em falar do ‘Sul Global'””, diz Walden Bello na
Casa de las Madres de Plaza de Mayo, no inverno de 2024 em Buenos Aires, uma
cidade que ele está visitando pela primeira vez. Ele conta que a Focus
on the Global South foi estabelecida em Bangkok, Tailândia, em 1995,
acrescentando:”de qualquer forma, adotamos esse nome, sintonizando-nos no
momento certo com o que estava começando a acontecer no mundo”.
Walden Bello visitou à
capital argentina (e não deixou de observar com perplexidade tudo o que emerge
do governo de Javier Milei) a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências
Sociais (CLACSO) e da Fundação para a Pesquisa Social e Política (FISYP).
Palestrou sobre o “Impacto e oportunidades da crise da hegemonia dos EUA” e
conversou com a Tektónikos sobre esse tema.
LEIA A ENTREVISTA
·
O que o Sul Global
significa para você hoje?
– O que chamamos de
países em desenvolvimento, subdesenvolvidos ou colonizados costumava ser
chamado de “Terceiro Mundo”. Mas a União Soviética e a Europa Oriental entraram
em colapso, entre 1989 e 91. Isso pôs fim à ideia de que havia um “segundo
mundo”, um mundo comunista. Ficou difícil manter estes termos. Então, o termo
Sul Global, que já havia sido inventado, ressurgiu como uma ideia na década de
1990, sob a premissa de reivindicar o fim de sua dominação.
·
Quais
foram os principais desafios — e quais ainda são agora — nesse novo
mundo em formação?
Continuam a ser o fim
da dominação econômica e política dos Estados Unidos e de suas potências
aliadas no Ocidente. São forças estruturais que dominaram o mundo por 500 anos,
um cenário que, no entanto, está sendo questionado neste século XXI. Isso se dá
principalmente por causa do surgimento de um grande ator como a China. Isso
criou algum espaço para que o Sul Global pudesse se distanciar do Ocidente,
tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas – e não
continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos Estados
Unidos.A disputa da União Soviética com os EUA abriu espaço de manobra para o
Terceiro Mundo. Mas a diferença é que agora a China possibilita outro cenário:
é uma grande potência econômica e política de uma forma que a URSS não era – ou
era apenas militarmente, mas não em outros níveis. Em outras palavras, agora a
China tem grandes recursos econômicos e pode cooperar muito melhor com o mundo
em desenvolvimento. Essas são condições muito diferentes daquelas da Guerra Fria.
·
Qual é o papel do
BRICS?
É uma nova formação
importante, hoje já com 10 países que se juntaram ao chamado BRICS+. Isso
significa que não apenas os quatro e depois cinco fundadores do início (Brasil,
Rússia, Índia, China e depois África do Sul), mas agora o dobro de nações
(Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se juntaram desde
2024). Além disso, outros países querem aderir. Em outras palavras, agora temos
um nível maior de recursos que podem ser usados para o desenvolvimento do Sul
Global. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, temos a China novamente,
não apenas como uma potência econômica, mas oferecendo um modelo bem-sucedido
de desenvolvimento liderado pelo Estado, em contraste com o que o FMI ou o
Banco Mundial vêm defendendo há décadas, com seu foco no mercado como condutor.
E, em terceiro lugar, o peso político dos BRICS é muito importante para
fornecer recursos, espaço e margem de manobra, além de crédito para o Sul
Global. Os BRICS também oferecem diversidade, pois em muitos aspectos os parceiros
são diferentes uns dos outros (Brasil da Arábia Saudita ou Rússia do Irã etc.).
Ainda assim, o importante é que o grupo agora ampliado não pode mais, devido ao
seu tamanho e peso, ser dominado pelas potências ocidentais.
·
E quanto ao papel da
China em particular, sendo a mais poderosa desse grupo?
É claro que a China
lidera o grupo, é a principal fornecedora de recursos e impulsionadora dos
bancos de desenvolvimento que estão sendo criados nesse novo ambiente, dos
fundos de contingência, que têm formatos e exigências diferentes dos esquemas
do FMI (o que mostra uma alternativa em potencial à ordem multilateral
existente). A liderança da China é muito interessante. Pequim forneceu uma
quantidade impressionante de recursos aos países do Sul Global e é um modelo,
insisto nisso, em que o Estado controla as forças de mercado. Cada vez mais
países estão olhando para isso como uma alternativa às economias orientadas
pelo mercado. E, por fim, há o peso político e militar da China, embora ainda
seja muito menor do que o dos EUA. A China tem muito cuidado para não se
apresentar como um substituto dos EUA e disse explicitamente que bancos como o
Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) ou o Banco Asiático de Investimento em
Infraestrutura (AIIB) não querem substituir o sistema de Bretton Woods.
Entretanto, os EUA afirmam que a China é uma potência revisionista e ambiciosa,
que quer ser a número um, substituir tudo, não se integrar ao capitalismo e que
representa um desafio. Na verdade, essa é uma tentativa de justificar o
primeiro objetivo dos EUA, que é conter a China com uma postura muito
agressiva, presente em especial no governo Biden, que está saindo.
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A guerra interna imperial
·
O Ocidente está
inevitavelmente entrando em guerra ou há setores que querem negociar algum tipo
de transição?
Acho que a Europa está
sendo arrastada pelos EUA nesse objetivo de conter a China. Ela foi fortemente
influenciada e isso levou à expansão da OTAN para o leste e para a Ásia. Por
meios econômicos, diplomáticos e militares, os EUA têm procurado conter a China
durante todos esses anos e o Partido Democrata (PD) deu sinais muito claros aos
seus militares de que é isso que eles querem em relação à China. O número de
missões e bases dos comandos militares dos EUA no Pacífico foi aumentado e as
forças armadas receberam sinal verde para isso. O comandante da Força Aérea,
Mike Minihan, chegou a ser citado como tendo falado sobre a possibilidade de
entrar em guerra contra a China em 2025.
·
A posição da extrema
direita e do Partido Republicano em geral nos Estados Unidos é menos clara,
você não acha?
Vamos examinar isso
com atenção. A candidata democrata Kamala Harris e os líderes democratas
gostariam de manter o papel do “livre comércio”, a hegemonia dos EUA, o uso de
órgãos multilaterais que controlam e o fluxo “livre” de capital. Mas
basicamente essa é a velha ordem. O presidente Biden e outros disseram que os
EUA são os únicos capazes de preservar tudo isso, as instituições do domínio
ocidental em seu conjunto, etc. Eles também acreditam que o desafiante
republicano, Donald Trump, não faria isso. Com relação a Trump, acho que ele
não está tão interessado em expandir o poder econômico dos EUA no Sul Global —
nem no fluxo de capitais, nem na promoção de uma economia global ou
transfronteiriça. Pense que, em seu primeiro governo, uma das ações imediatas
de seu governo, em janeiro de 2017, foi retirar-se da Parceria Transpacífica
(TPP). Isso é muito diferente do que o Partido Democrata quer. A mesma coisa
aconteceu com a forma diferente de lidar com a ocupação do Afeganistão durante
a mudança de governo de Trump para Biden. Acho que Trump está basicamente
interessado em trazer o capital de volta para os EUA, o chamado reshoring,
porque ele acusa as corporações de levar empregos para fora do país. Toda essa
ideia de colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” é seu ponto de apoio. E
seus apoiadores odeiam as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e
de Wall Street. Embora o próprio Trump seja obviamente um grande capitalista,
ele explora esses sentimentos contra o grande capital. Entretanto, sua ideia
não é tanto expandir os EUA, mas priorizar o mercado doméstico.
·
Será que o trumpismo
se posiciona como completamente alheio aos problemas globais?
Eu diria que, em
geral, sim, embora obviamente preservando o poder unilateral em questões
mundiais. Ele é claramente anti-imigração. Em termos militares, eu o vejo mais
comprometido e interessado em ter um país poderoso em si mesmo novamente, não
um país de alianças como a OTAN, pois ele não gosta disso. Em resumo, vejo uma
perspectiva diferente da dos democratas. Há diferenças reais entre os dois
candidatos e os dois projetos. A pergunta que faço é se nós, no Sul Global,
devemos escolher uma dessas duas opções. Minha resposta é que não precisamos
fazer isso, não temos interesse na ordem liberal ou na ordem “América em
primeiro lugar”. Mas precisamos prestar atenção em qual das duas posições
prevalece e tentar tirar proveito dessas contradições.
·
Olhando das Filipinas,
qual é o papel do Sudeste Asiático na reconfiguração global em andamento?
Há muitas
contradições. O Vietnã e as Filipinas são muito críticos em relação à China
pelo mesmo motivo: a disputa de limites no Mar do Sul da China, onde a China
assumiu unilateralmente uma posição. É um mar com seis países reivindicantes e
a China estabeleceu unilateralmente que 90% dele lhe pertence. Pode-se entender
que a razão chinesa não é expansionista, mas defensiva – porque o Sudeste
Asiático está muito próximo do núcleo industrial da China (Xangai, Guangzhou,
suas áreas adjacentes etc.) e a ideia é que ela precisa proteger ou impedir um
ataque dos EUA à sua infraestrutura produtiva. Em um cenário de guerra, isso é
fundamental para a China, e os norte-americanos têm muitos ativos militares na
área. Isso é compreensível do lado chinês, o que não é compreensível foi seu
método unilateral de dizer “isso é nosso e, por ser nosso, vamos desenvolvê-lo
de tal maneira”. A China deveria ter negociado isso com os outros países.
Então, talvez fosse possível avançar na desmilitarização da área. É por isso, entre
outros motivos, que o Vietnã critica a China nesse ponto. O país tem uma
política externa independente. Como você sabe, já lutou no passado contra os
norte-americanos e os franceses e exerce neutralidade diplomática.
·
E quanto ao seu país?
As Filipinas são
diferentes. São totalmente aliadas militarmente aos EUA com o atual presidente
Ferdinand Marcos Jr. Os norte-americanos têm nove bases militares e Marcos não
tem nenhum senso de nacionalismo. Ele não se importa, só se preocupa com a fortuna
de sua família, seu grupo central de pessoas próximas, a dinastia, seus
investimentos milionários nos EUA e em outros países ocidentais, que podem ser
facilmente expropriados se ele não fizer o que Washington quer. O governo de
Marcos está completamente vendido aos EUA e não tem controle sobre a política
de defesa.
·
E quanto ao cenário
global, o restante das nações do Sudeste Asiático?
O restante da ASEAN, a
associação que integra todas essas nações, é diversificado, mas a maioria da
população tem uma opinião melhor sobre a China do que sobre os Estados Unidos,
especialmente na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e na Malásia. A maioria
prefere a China como parceira aos EUA, de acordo com relatórios recentes. Os
únicos dois países que se opõem a isso são, não surpreendentemente pelo que
expliquei, embora por motivos diferentes, o Vietnã e as Filipinas. Essa é a
situação atual na região, que se tornou decisiva no tabuleiro de xadrez global.
Fonte: Por Walden
Bello, entrevistado a Néstor Restivo, em Tektónicos | Tradução: Antonio Martins,
em Outras Palavras
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