O que fazer com uma pessoa deprimida
Sejam gentis com a
pessoa deprimida. Não a cobrem como se ela fosse normal. E, mais importante de
tudo, informem-se. Vocês podem estar fazendo muito mal a alguém que amam
• Troque sua boa intenção por um pouco de
informação
Pessoas que não têm
depressão: sei que as intenções são as melhores, mas é que de boas intenções o
inferno já está cheio. E a vida do seu amigo, colega, parente, companheira ou
padre já está infernal o suficiente para que você a torne ainda pior.
Então atenção: dá um
Google no assunto de vez em quando e, em primeiro lugar, não venha com nenhum
emplastro Brás Cubas. Pode ter certeza que a pessoa que tem depressão severa já
tentou de tudo, porque seria muito bom se pudesse ser fácil. Chá de amora, acupuntura,
chá de lavanda, suplementos vitamínicos A, B ou C., espiritualidade, meditação,
terapia corporal… E os tradicionais “Mas vai se encher de remédios? Pra que vai
por essa química toda dentro do seu corpo? Tente antes aquele emplastro Brás
Cubas, você vai ver que é bem melhor”.
Só que não é. E quem
fala isso invariavelmente nunca teve uma depressão severa.
Tenho minha vida
devastada pela depressão há 22 anos, é óbvio que já tentei de tudo. Então parem
com as soluções mágicas que vão fazer efeito rápido. Não existe efeito rápido
em depressão severa. E por mais que te incomode ver seu irmão etc. sofrer, é preciso
ter calma, acolher, e não ficar empurrando o paciente para soluções mágicas que
inclusive ele já tentou. Muito ajuda quem não atrapalha.
• A fratura
Há 22 anos, quando
tive meu primeiro episódio depressivo e antes de ler muito sobre o assunto, eu
também achava que era preguiçosa e que, se eu me esforçasse mais, melhoraria.
Isso me causou um sofrimento imenso. Tempos depois, inventei a metáfora do quadril
quebrado para tentar comunicar aquilo que ninguém entendia – e até hoje quase
ninguém entende, apesar de a informação estar aí pra quem quiser.
Então pense que seu
próximo que está em depressão, na verdade fraturou gravemente o quadril. Partiu
ao meio mesmo, troço sério. Ele não pode sentar, ficar de pé, tomar banho ou
fazer nada sem ajuda. Nada. Ele está pra baixo e sente muita dor. Você foi visitá-lo
e tenho certeza que não falou:
– Mas até essa hora na
cama? Abre as cortinas, sacode a poeira, vamos dar uma volta na quadra!
– Fulana está dando
uma festa hoje, vamos comigo, você vai se animar!
– Menina, toma um
banho, relaxa, passa uns cremes que você vai sentir melhor.
– Como assim não vai
trabalhar? O trabalho vai te distrair, te fazer bem!
– Amiga, que casa
suja! Desistiu de limpar, foi? Precisa fazer uma forcinha.
– Começa a se
exercitar a-go-ra que vai te fazer muito bem.
– Tá indo na terapia?
Etc.
Não vou explicar a
metáfora toda porque vocês são inteligentes. Mas, resumindo, o deprimido é um
fraturado e você é o mala que está fazendo ele sofrer ainda mais.
• Tá melhor?
Por favor, por todos
os deoses, não despeje sua ansiedade em cima da pessoa deprimida. Eu imploro!
Ela não tem como lidar.
Bom dia, tá melhor?
Bom dia, melhorou?
Bom dia, você acha que
vai dar pra fazer aquela coisa hoje?
Bom dia, você precisa
começar a terapia.
Bom dia, já começou a
melhorar?
Bom dia, não tá
demorando muito?
Bom dia, como se
sente?
Bom dia, liga pro
médico, tem que aumentar os remédios.
Bom dia, não aguento
mais ver você assim…
• Não tente estimular uma pessoa deprimida
Nossa, fulana, abre
essa janela, troca essa cama, vamos sacudir a poeira e dar a volta por cima!
As tarefas que não
estão sendo feitas, ficam rodando em looping na cabeça do deprimido. Com
certeza o inferno tem técnicas muito parecidas de tortura psicológica. Quer ver
como é lá dentro?
O que eu fiz hoje:
lavei a louça e paguei uma conta.
O que eu não fiz (essa
é a parte do looping):
Não fiz comida
Não lavei os lençóis
Não marquei dentista
Não procurei trabalho
Não estudei pra
concurso
Não falei com a minha
editora
Não tomei banho
Não fui consertar o
celular
Cancelei aquela visita
Não consegui chegar no
psiquiatra
Não fui tomar vacina
Não limpei o chão
Não passei fio dental
Não limpei a areia dos
gatos
Não fui ao banco
Não guardei a louça
Não guardei a roupa
Não dei remédio pro
gato
Etc.
Etc.
Tá bom? Lembrando que
de boas intenções o inferno tá lotado, não tire da cartola a sua forma de lidar
com um deprimido. De novo, isso só aumenta nosso sofrimento. Antes de sair
falando, dá um Google, segue uma página no Instagram, a informação tá aí, nem
precisa ler um livro. Mas se quiser pode ler “O demônio do meio dia” que é um
livro muito importante.
Não entendo muito bem
o fato de que todo mundo sabe o que é bom para depressão sem nunca ter lido uma
mísera linha sobre o assunto. Famílias assistem por décadas o sofrimento agudo
do deprimido é mesmo assim não consideram se informar sobre assunto. Tem coisa
que eu também não entendo. Se fosse diabetes as pessoas iriam se informar antes
de falar. Acho.
• Pessoas que fazem coisas
Ouço meus vizinhos
cantando alegremente na cozinha. Eles são um casal bastante feliz. Trabalham
com coisas bacanas, ganham o suficiente, passeiam o cachorro todo dia, dão
festas, sabem inglês e ainda correm pra manter a saúde e a forma.
Tenho a impressão que
fui assim até meus 28 anos. Fiz faculdade de letras junto com minha formação em
dança. Ia para a faculdade pela manhã e, à tarde, fazia 200 aulas de dança em
200 lugares diferentes, o que implicava andar muito de uma aula pra outra.
Voltava pra casa cansada e feliz, era normal. E fui excepcionalmente bem nas
minhas duas formações: Letras e Dança-teatro.
Já no mercado de
trabalho, trabalhava exaustivamente em escolas particulares a semana toda.
Cansava muitíssimo mais que dançar, e nos fins de semana fazia faxina,
participava de grupos de estudo e ensaiava com a banda, ia à feira e cozinhava.
Era cansativo, mas era normal.
De 20 anos pra cá,
nada foi a mesma coisa. Passei a maior parte do tempo fazendo um esforço
oceânico para manter a cabeça fora da lama. E só isso. Nesses momentos que são
quase todos, eu não danço, não estudo, não limpo a casa e, inclusive, não leio
– o que faz eu me sentir uma grandicíssima duma impostora, já que sou
escritora.
É como ser obrigada a
fazer uma casa funcionar com a chave geral desabada. Não há energia pra
absolutamente nada. Chega depois do almoço, não fiz quase coisa nenhuma e minha
energia acaba, bum! Como se fosse uma grande queda de pressão. E eu durmo.
Quando posso. Quando não posso, rastejo para ir onde tenho que ir e sinto dor o
tempo todo. Chego em casa inválida. E todo dia é assim.
• Pulsões
O sofrimento e a
pulsão de morte de uma pessoa em depressão profunda podem ser insuportáveis
para você. Pense bem antes de se aproximar e não piore as coisas tentando
fazê-la sentir diferente.
• Uma dor incomunicável
Nunca me faltaram
palavras para comunicar o que quer que fosse. Tenho sorte com elas, estão
sempre aqui, muito minhas amigas. Também por isso é muito frustrante para mim
não encontrar palavras para expressar a dor da depressão. O que vou fazer é
listar aqui as metáforas que inventei ou aprendi para tentar comunicar uma dor
que só se diz em sentido figurado. É difícil.
As metáforas e
comparações que se seguem tentam descrever a depressão, a ansiedade e a
angústia.
– É como perder a pele
e caminhar num mundo feito de sal
– É com ser esfaqueado
por muitas facas, o tempo todo, repetidamente, sem pausas
– Dói na alma
– A morte encarnada
num corpo vivo
– A certeza de que o
mundo é inviável
– Uma dor tão
insuportável que a morte passa a ser uma alternativa considerável, contanto que
faça a dor parar
– Uma dor que devora
por dentro a partir do estômago
– Um apagão de energia
e a dor de manter o corpo funcionando mesmo assim
– A sensação de que
vou morrer agora
– Incapacidade total
de sentir prazer
– Pensamentos
obsessivos de depreciação, culpa e autocobrança
– Viver em queda num
poço sem fim
– É encostar o olho no
olho bovino da morte
– É o câncer da alma
– Ter certeza que não
deveria existir e se sentir um peso para os outros
– Sentir-se fracassado
em tudo
– Enxergar o horror do
real o tempo todo, sem pausas
– Sentir pavor do
mundo e nunca enxergar saída
– Como no World Trade
Center, a dor de morrer queimando é tão excruciante que é preferível pular
– A certeza de que
morrer seria bem mais tranquilo
Lembrem-se de que a
pessoa com depressão nunca exagera. Ao contrário, como não pode comunicar, ela
disfarça sua dor. Nem ela suportaria escutar os próprios gritos.
• Sobre o que funciona
Falei aqui sobre as
soluções milagrosas, tipo emplastro Brás Cubas que se oferecem por aí e que eu
inclusive já tentei, porque a pessoa com depressão crônica de nível gravíssimo
é uma pessoa desesperada. Quando vem alguém do nada oferecendo um emplastro qualquer,
isso me irrita e me adoece muito.
Mas tem coisas que
comprovadamente funcionam, e daí o irritante são outras pessoas não
considerarem que tenho depressão há 22 anos e, portanto, talvez eu saiba do
óbvio.
Vamos ao óbvio:
– Atividade física é
muito bom, sabia?
Claro que sabia.
Inclusive acho que minha primeira depressão veio aos 28 anos e não aos 18
porque eu era bailarina. Quando eu deprimi, tinha parado de dançar há um
tempinho. Mas existem outros fatores. É preciso medicar o doente para que ele
possa levantar da cama e fazer alguma atividade. Remédios são necessários,
antes de mais nada para que a pessoa doente possa fazer o recomendado.
– Já pensou em fazer
terapia?
Claro que sim, né? Eu
comecei a fazer terapia aos 7 anos, ludoterapia, e foi ótimo. Depois fiz
psicanálise aos 13. Não lembro quantos anos fiquei, mas pelo menos 2. Quando
tive meu primeiro episódio, aos 28, fui fazer análise com um analista
sensacional e fiquei com ele por 10 anos. E foi um processo muito corajoso de
tentativa de me restaurar. Nas palavras do meu analista, a paciente mais
corajosa que ele já teve. Eu.
Mas, de novo, antes é
necessária a medicação ou o paciente não consegue ir. Ou não consegue
aproveitar o encontro (quando estou muito ruim, simplesmente não entendo ou
esqueço imediatamente o que falam comigo).
Então vamos lá:
Atividade física é
necessária em todos os aspectos da vida e pode sim ser fundamental na superação
de um episódio depressivo. Mas não é cura; atletas também deprimem.
Terapia é necessária
em todos os aspectos da vida e pode sim ser fundamental na superação de um
episódio depressivo. Mas não é cura, é perfeitamente possível o paciente
deprimir de novo, como eu.
Remédios são
necessários antes de qualquer outra coisa e podem ajudar a superar um episódio
depressivo. Mas também não curam. Todos os medicamentos que existem atuam na
remissão dos sintomas. Ainda não há cura para a depressão. Por isso sigo
escrevendo.
• O que perde uma pessoa com depressão
grave?
O emprego (a gente não
tem saúde pra enfrentar 8h por dia, a gente perde a memória, foco, capacidade
de organização e uma boa dose da nossa capacidade cognitiva em geral Então,
demissão).
A carreira. Se você
passa a maior parte do seu tempo nadando pra não afundar ou afundando, não há
como construir uma carreira sólida ao longo da vida. Impossível.
Amizades (de tanto os
amigos nos chamarem pra sair, vão aos poucos desistindo. Não os culpo, mas
entristeço).
Família (tem gente que
não consegue lidar com tanta pulsão de morte, então, ou entram em negação e
viram o agressor que diz “levanta e anda”, ou deduzem que você tem graves
problemas psicológicos, “é doido, coitado”, e se afastam).
Eu já disse que a
pessoa deprimida perde boa parte da capacidade cognitiva?
Também tem os
encontros maravilhosos com amigues que a gente perde.
Nos últimos meses eu
perdi uns cinco, todos importantes.
Duas consultas e um
exame, tudo urgente
Um monte de eventos
legais
A capacidade de ler
A autoestima
• Considerações finais: o sofrimento
ensina?
Tem aquilo de dizer
que o sofrimento ensina. Uma ova! Estou há 22 anos nadando incansavelmente
contra a corrente – a alternativa a isso seria largar o corpo e seguir o fluxo
que leva invariavelmente à morte. Sabe o que eu aprendi? Que sou mais frágil do
que pensava. Ganhei um shot de humildade e foi só. Eu nem precisava da
depressão pra aprender isso, bastava passar dos 25 ou 30 anos, ou entrar no
mercado de trabalho ou ter um casamento fodido etc. E como eu passei por tudo
isso, não precisei da depressão para aprender absolutamente nada. Venho
suportando um sofrimento agudo, morrendo e voltando a toda hora, sempre cansada
de tanto nadar pra não sucumbir. A depressão não é boa em nenhum aspecto.
Nenhum.
Assim, sempre esgotada
do esforço que me manter viva exige, não desenvolvi minha carreira de
professora – e eu era uma professora das boas, das muito talentosas. Mas logo
não tive mais energia para suportar o ambiente escolar. O mesmo com minha
carreira acadêmica, eu era muito talentosa, mas logo não tive mais energia para
suportar o ambiente acadêmico.
O único aspecto da
minha vida que não está arruinado por essa doença é a escrita literária. Ela é
uma tábua de salvação que me permite tomar um fôlego enquanto escrevo. Isso é
bom. Mas depois volta o exercício diário e exaustivo de nadar e nadar, sem nunca
sair do lugar.
Sejam gentis com a
pessoa deprimida. Não a cobrem como se ela fosse normal. E, mais importante de
tudo, informem-se. Vocês podem estar fazendo muito mal a alguém que amam.
Fonte: Por Helena Tabatchnik, em Outras Palavras
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