Viva João Ubaldo Ribeiro
Por estes dias, ainda
no mês de julho, tardes tristes, triste mês, a ausência de João Ubaldo Ribeiro
(1941-2014) – caminhando, alegrando, cantarolando, encantando e respirando
entre nós – vai completando dez anos. Dez anos de ausência. Dez anos sem João Ubaldo
Ribeiro. O legítimo Cícero de Itaparica, Antonio Vieira secularizado, Gregório
de Matos – quem sabe – comportado, notável Shakespeare tropicalizado.
Dez anos de uma
ausência, estranhamente, pouco notada, mas, ao mesmo tempo, muito sentida. E,
por sentida, dolorida. Dolorida a ponto de fustigar indagações. Algumas – é
verdade – demasiado simplórias e pueris. Mas outras – reconheça-se – bem
botadas. De modo a alimentar a reflexão sobre, por exemplo, que resta de João
Ubaldo Ribeiro.
Diante dessa
indagação, um analista simplesmente cortês, reagindo, tenderia a fixar o cursor
na indiscutivelmente imensa obra do admirável autor baiano, evocando peças
magistralmente marcantes como Sargento Getúlio (1971), Viva o povo brasileiro
(1984), O sorriso do lagarto (1991), A casa dos budas ditosos (1999). E faria
isso de caso pensado. Pensado porque ele reconhece e sabe que nessas peças, sem
exagero nem concessão, reside, simplesmente, o que de melhor se produziu no
planeta nos últimos cinquenta ou sessenta anos.
Um observador mais
frugal, em outro sentido, moveria o olhar para as dezenas de milhares de
crônicas jornalísticas, espelhadas por diversos jornais e revistas brasileiros
e estrangeiros, produzidas por esse nobre cidadão de Itaparica, ao longo de
quase sessenta anos de jornalismo. E faria isso sem contrição nem desilusão.
Sem desilusão porque ele sabe e sente perfeitamente que o jornalismo praticado
por João Ubaldo Ribeiro era literatura. Literatura pura, em altas Letras, ampla
qualidade e múltiplas vibrações.
Um apreciador mais
introspectivo lembraria que o autor de O albatroz azul (2009) era, sim,
romancista, jornalista, ensaísta, mas, também, era uma voz. Uma voz aos seus
ouvidos. Uma voz em barítono. Entoada, quase sempre, em calmaria. Uma calmaria
simulando águas tranquilas. Feito as das tardes do Arpoador. Quase pintura.
Feito moldura. Namorando as tardes lindas de Itapuã.
Um simples cultuador
do mestre proporia que o criador do sargento Getúlio foi o mais carioca entre
os baianos e um dos mais baianos entre os próprios baianos. E, claro, pararia
por aí. A prudência recomenda não avançar sobre essas peculiaridades das gentes
da Bahia nem do Rio de Janeiro.
Outros ainda poderiam
aproximá-lo de Jorge Amado, Glauber Rocha, Capinan ou Caribé.
Mas, ao fim, avante. E
avante pois, ao fim, João Ubaldo Ribeiro foi (é) tudo isso – que não é tudo,
mas não é pouco – e muito mais.
De modo que a única
reação conforme à ponderação que resta de João Ubaldo Ribeiro será sempre tudo,
menos ele, João Ubaldo Ribeiro.
Assim, voltando e
organizando.
Que resta de João
Ubaldo Ribeiro?
Resposta: tudo, só não
João Ubaldo Ribeiro, o homem.
Nesse tudo, por
evidente, a sua arte, a contação de histórias, cala fundo. Críticos autorizados
podem sugerir hierarquização, indicando quais livros, escritos e ensaios vêm
por primeiro e a razão. Mas, independentemente disso, mesmo os mais singelos
leitores sabem que Sargento Getúlio nasceu eterno e Viva o povo brasileiro,
imortal.
Luiz Werneck Vianna
(1938-2024) – de saudosíssima memória e, em nada, singelo leitor –, consumidor
compulsivo da arte de Dostoiévski e Machado, após ler e reler e ler novamente
Viva o povo brasileiro declarara, sem ter dúvidas, se tratar do último – verdadeiro
– romance brasileiro entregue ao mundo. Uma intuição ousada. Mas, com o tempo,
tornada real. Wilson Martins (1921-2010) que o diga. Tanto que, em 2008, quando
a honraria do Prêmio Camões bateu às portas do distinto itaparicano, a síntese
da justificação da comenda foi: João Ubaldo Ribeiro, universal.
E universal porque
antes, bem antes desse feito, a métrica das grandes letras brasileiras
universais oscilava entre Machado e Grande Sertão: veredas, Dom Casmurro e João
Guimarães Rosa. Sendo assim, antes do Sargento Getúlio e de Viva o povo
brasileiro, havia Grande Sertão. Uma obra, como sabido, feita em épico, feito
Ulisses, tipo Joyce, coisa de Homero, mas bem brasileira, obra magistral.
Magistral a ponto de
Fernando Sabino (1923-2004) reportar a Clarice Lispector (1920-1977), sua
amiga, que aquela peça de João Guimarães Rosa era “obra de gênio, não deixo por
menos. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras:
o homem é um monstro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com
uma linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém”. E Clarice Lispector, por sua
vez, responder com: “Nunca vi coisa assim. É a coisa mais linda dos últimos
tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite do
imaginável”.
Sim, não carece
discussão: Grande Sertão renovou tudo.
Mas depois, no meio do
caminho, entre Grande Sertão e Viva o povo, teve o Sargento Getúlio. “Deus
teja.” Tudo está lá. Do melhor da “literatura nordestina de cangaço, zélins,
gracilianos e bagaceiras” ao melhor do superlativo da genialidade do ladrilhador
de A Terceira Margem do Rio.
Mas, por incrível que
possa parecer, Sargento Getúlio era apenas um ensaio. Como um treino de
avant-première para a obra maior e mais abrangente em Viva o povo brasileiro.
A persona de Getúlio
Santos Bezerra – o sargento Getúlio – não ficou tão longe de Diadorim. Ambos
eram antigos modernos. Malgrado diferentes e divergentes, eram sinceramente
reluzentes.
Paulo Afonso e
Aracaju, nesses termos, ficaram bem perto de Cordisburgo. E não vai difícil
sentir.
Mas houve contexto.
Em 1956, quando Grande
Sertão veio ao mundo, vivia-se a epifania bossa-nova. Tudo era bom, bonito,
novo, nova bossa.
O Brasil efervescia. O
futuro parecia presente. Era o sorriso do JK. Fazia-se 50 anos em 5.
Em contraponto, em
1971, quando do Sargento Getúlio, o clima era outro. Ia ambientado pelo AI-5.
Tempos de penúria, tempos de mordaça, tempo nublado. Sem liberdades. Onde tudo
que se precisava fazer era “apesar de você”. João Ubaldo Ribeiro fez. Apesar de
tudo, a despeito de todos.
Sargento Getúlio foi o
começo. Viva o povo brasileiro, o arremate.
Coisa de gênio.
Coisas de João Ubaldo
Ribeiro.
Gênio brasileiro.
Vivo em alma, vivo em
nós.
Fonte: Jornal da USP
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