Trabalhador leva oito anos para ganhar
valor deduzido em despesas médicas por super-ricos
Enquanto está em curso
a reforma tributária no Congresso Nacional e em debate a taxação dos
super-ricos no mundo, o abismo entre os poucos ricos e os outros 99% da
população brasileira não para de aumentar. Em 2022, a diferença do rendimento
médio mensal entre o 1% mais rico e os 50 mais pobres, por exemplo, era de 30,8
vezes; em 2023, passou para 31,2 vezes.
Os indicadores
integram o primeiro relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades,
publicado em agosto, em que a concentração de riqueza, renda e trabalho no
Brasil recebe um capítulo exclusivo.
O brasileiro que
ganha, em média, 600 reais por dia paga o dobro de imposto de renda do que quem
fatura 14 mil reais nas mesmas 24 horas. O primeiro está no grupo de quem
recebe 13 salários-mínimos (R$ 18.356,00) por mês, na faixa de quem paga 10,70%
de imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF). Já o outro recolhe apenas
5,40% de IRPF, mesmo ganhando 320 salários-mínimos, ou seja, R$ 451.840,00 por
mês.
E a extrema
desigualdade de riqueza e injustiça tributária não para por aí. Quando o funil
se fecha nos 0,1% mais ricos (super-ricos) – os 64 bilionários brasileiros em
2024, segundo a lista global de ricos da Hurun – a discrepância é maior ainda.
Eles têm patrimônio superior a um bilhão de dólares (cerca de 5,6 milhões de
reais) e um rendimento médio anual de 21,5 milhões de reais. Em 2022, deduziram
12,1 bilhões de reais com despesas médicas, uma média de R$ 295,4 mil por
contribuinte do topo.
Um trabalhador com
salário de R$ 2.819,00, a média que homens (R$ 3.252,00) e mulheres (R$
2.386,00) ganhavam em 2023, conforme o estudo do Observatório Brasileiro das
Desigualdades, levaria oito anos para receber a quantia que um bilionário
deduziu em despesas médicas em um ano. Isso porque, a tributação, vista a
partir do imposto de renda, é progressiva até a faixa de 10 a 15
salários-mínimos e, depois torna-se regressiva.
“Os ricos, ao longo da
história, nunca quiseram pagar imposto. Eles sempre arranjaram mecanismos,
mundo afora, para criar as formas de evitar tributação, uma legislação que os
protege, além de uma grande capacidade hoje de fuga internacional para os paraísos
fiscais, devido à informatização e comunicação em tempo real que permite uma
série de subterfúgios que eles utilizam para não pagar o imposto devido ”,
avalia o sociólogo, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais e membro do
pacto nacional pelo combate às desigualdades Clemente Ganz.
Ganz, que esteve à
frente da produção do relatório, ressalta ainda estar claro o posicionamento da
elite contra o pagamento de impostos. Além disso, uma parcela relevante dos
neoliberais defende que o Estado tem que ser mínimo, e as desigualdades, inclusive,
são positivas para sustentar o crescimento. “Então é uma visão de mundo oposta
àquela que nós defendemos: da igualdade, da equidade do ponto de vista do
acesso às políticas públicas, ao contrário dos super-ricos”, pondera.
Taxação dos
super-ricos
Um dos bilionários
brasileiros é Jorge Paulo Lemann e família com patrimônio de R$ 91,81 bilhões,
de acordo com a revista Forbes. Ele faz parte dos 0,1% mais ricos e também é um
dos acionistas das Americanas, junto com Beto Sicupira e Marcel Telles, cuja
loja está envolvida em uma fraude de R$ 25 bilhões, conforme investigação da
Polícia Federal.
Lemann seria um dos
super-ricos na lista dos que iria contribuir com taxa mínima de 2% sobre o
patrimônio, com base na proposta elaborada pelo economista francês Gabriel
Zucman. A iniciativa é defendida pelo Brasil, que conseguiu uma vitória inédita
no encontro de ministros das finanças e presidentes de bancos centrais do G20,
no Rio de Janeiro, no dia 26 de julho. O comunicado do evento traz uma menção
explicita à taxação de super-ricos, uma das bandeiras do Brasil para o mandato
à frente do colegiado neste ano.
Professor da Faculdade
de Ciências Econômicas da Ufrgs Carlos Eduardo Schonerwald da Silva salienta
que essa sinalização foi um passo importante. Entre as razões positivas da
proposta, ele cita a mudança na forma de cobrar o imposto e combate à evasão fiscal.
“Tem que haver uma revisão e a cobrança tem que ser progressiva e sobre a
renda, uma vez que o imposto indireto acaba penalizando os mais pobres porque é
sobre o consumo”.
Segundo Schonerwald,
outro ponto relevante do projeto seria enfrentar os paraísos fiscais para
combater a evasão. “Papel desses paraísos é de um ambiente que não coletam
impostos, por isso os ricos colocam os recursos lá. Enquanto houver paraíso
fiscal, sempre vai ter gente para investir e escapar do imposto. Então este
acordo e união entre os países seria eficiente para evitar que os sonegadores
levem o dinheiro para aqueles lugares”, explica.
Ganz concorda que essa
seria uma das vantagens da proposta. “Evitar a evasão de riquezas que acontece
muitas vezes entre países, especialmente nos paraísos fiscais. Os dados revelam
uma perda de arrecadação monstruosa de bilhões de dólares ou de euros, tanto
nos Estados Unidos como na Europa, como nos grandes países do G20, inclusive no
Brasil”, avalia.
O professor da Ufrgs,
que estudou nos EUA e que conhece bem a realidade do país, lembra que lá
(Estados Unidos) se paga de 18% a 40% de imposto sobre o patrimônio no momento
da transferência. “No Brasil este imposto é baixo, precisa ser como nos EUA ou
estimular a doação para entes públicos, por exemplo. Também é importante a
efetividade na cobrança, mais do que o percentual. Hoje é muito fácil coordenar
as cobranças porque há tecnologia para isto. E, depois, os recursos precisam
ser distribuídos para uma maior justiça social”, aconselha o especialista.
Outro bilionário que
iria figurar na lista de pagar os 2% de taxa seria Bill Gates, cofundador da
Microsoft. Ele é o quinto indivíduo mais rico do mundo, de acordo com a
Bloomberg, com patrimônio estimado de US$ 161 bilhões (R$ 905 bilhões). Em
entrevista à Folha de SP no início do mês, falou do projeto de criar um imposto
global sobre o patrimônio de super-ricos.
Afirmou ser um
defensor de sistemas tributários mais progressivos, mas disse haver poucas
chances de um arranjo com esse alcance ser implementado. Justificou ser difícil
de colocar em prática tal proposta por não haver um governo global. No entanto,
se houvesse uma votação sobre o projeto assim, votaria a favor.
Tributação progressiva
e redução de imposto sobre consumo
Quem ganha 10
salários-mínimos paga mais imposto de renda hoje do que quem ganha 300 salários
mínimos, por exemplo. Por que acontece isto? “A tributação sobre o consumo no
Brasil e nos demais países do mundo é sempre considerada uma tributação
regressiva, à medida em que as mesmas taxas de imposto são pagas por todos os
tipos de renda”, ”, responde pesquisador Carlos Eduardo Schonerwald da Silva.
“O Brasil está no
processo de implementação de uma mudança tributária importante do ponto de
vista da renda dos mais pobres. Inclusive, que isso aconteça com o chamado
cashback, a devolução do imposto pago por essas pessoas que têm renda muito
baixa”, completa Schonerwald.
O professor da
Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs acrescenta ainda que, agora, de todo
modo, o que o mundo indica é que a combinação do imposto de renda e de outras
contribuições, segundo a renda e riqueza. Estas devem ser prevalentes, havendo
a maior incidência do ponto de vista do financiamento do orçamento público,
evitando com que a tributação via o consumo reproduza desigualdades que não são
desejadas por quem tem política pública que combate a desigualdade.
Coordenador do Fórum
das Centrais Sindicais e membro do pacto nacional pelo combate às desigualdades
também defende uma tributação progressiva, de tal maneira que quem ganha mais
paga, proporcionalmente, mais imposto de renda e mais contribuições e taxas. “E
a outra fonte é também uma aplicação do orçamento voltada para as políticas
públicas, que atuam na desigualdade, promovendo a mobilidade daqueles que estão
na base inferior dessa desigualdade”, aponta Clemente Ganz.
Para Schonerwald, esta
calibragem de alíquotas precisa ser feita na reforma tributária, reduzir o
imposto sobre consumo e aumentar sobre a renda. “Governos sabem qual a
participação que cada parte tem na economia. Muitas vezes não querem fazer uma
reforma adequada para não perder os investimentos. Governos têm medo, mas
precisam enfrentar para aliviar os custos sobre o consumo. Aí a faixa de renda
menor ganha um alívio importante”, conclui.
Fonte: Extra Classe
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