“Se a gente não lutar, nossos filhos e
nossos netos serão escravos digitais”, avisa sociólogo
Desde os anos 1970 o
sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), pesquisa as relações de trabalho. Acompanhou a ascensão dos
movimentos sindicais do ABC Paulista e do trabalho feito em computadores, as
mudanças provocadas pela pandemia e o home office. Autor de mais de uma dúzia
de livros, nos últimos anos ele vem investigando as plataformas digitais como
uber e ifood. E está consternado com o que está acontecendo.
Para o experiente
pesquisador, a precariedade do trabalho nas plataformas digitais só encontra
paralelo lá na Revolução Industrial, há mais de 200 anos. “O capitalismo de
plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo: a exploração
ilimitada do trabalho”, avalia.
Nas entrevistas que
faz com esses trabalhadores para suas pesquisas, o comum é escutar que eles
cumprem jornadas de 10, 12 horas. “Eu entrevistei um trabalhador que me falou
que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o
que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e
comecei de novo”, contou Ricardo Antunes, para uma plateia que lotou a sala
Aloísio Magalhães, no campus do Derby da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj),
durante a abertura do I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral
ao adoecimento mental, promovido na semana passada pela Fundaj e os grupos de
pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE) .
Para Antunes, estamos
ingressando em uma nova era de subordinação do trabalho ao capital. Agora, sob
o comando de ferramentas informacionais que tende a acentuar ainda mais o
processo de desantropomorfização – retirando ao máximo o fator humano do trabalho.
“No capítulo de O capital em que Karl Marx trata da grande indústria, ele diz
que na indústria da revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, os
trabalhadores e trabalhadoras se tornam autômatos e atentes da máquina. Hoje
nós somos autômatos e atentes desta máquina digital (mostra o celular) que está
controlando o nosso tempo. O trabalho humano que nós temos hoje, ele é ainda
mais desantropomorfizador, ele perde ainda mais o seu sentido humano”, disse.
As longas jornadas do
chamado “capitalismo de plataforma” traz também formas mais sofisticadas de
submissão dos trabalhadores. Há quem chame de subordinação algorítmica, mas a
procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca,
que dividiu a mesa de abertura com Ricardo Antunes, prefere caracterizar como
subordinação clássica, por entender que não há diferença no controle.
“Há uma parte que tem
o capital e outra parte que tem a força de trabalho. Esses termos muito usados
pelas empresas, como colaborador, economia de compartilhamento, parceria, foram
criados para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas
exploradas às empresas que as exploram”, disse a procuradora. “As plataformas
digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos
os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das
trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente
fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas
grandes corporações”, completou.
Ricardo Antunes usou
por algumas vezes a palavra “devastação” para falar do momento atual do mundo:
devastação ambiental e devastação no trabalho.
“No século XX, a
grande Rosa Luxemburgo nos disse certa vez que o dilema do seu tempo era
socialismo ou barbárie. Acertou. Só que se Rosa Luxemburgo estivesse viva hoje,
ela diria que não é mais esse, pois na barbárie nós já estamos. E o trabalho é
a nossa autocracia dessa barbárie”, disse o professor.
A frase, atribuída aos
filósofos Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que “é mais fácil imaginar o fim
do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” foi citada algumas vezes durante
os dois dias de seminário. Mas Ricardo Antunes lembra que a história é imprevisível.
E que a luta de classes é o que vai mudar a realidade de precarização de
trabalhadores e trabalhadoras.
“Nós vamos ter que
lutar. Porque se a gente não fizer isso, os nossos filhos e os nossos netos, se
tiver mundo para eles viverem, serão escravos digitais. Então, nós, se não
quisermos lutar por nós mesmos, é bom que comecemos a lutar por eles”, alertou.
Ricardo Antunes tem
uma fala cativante: é direto e sem papas na língua, arrancando, aqui e ali,
risadas da plateia. É também extremamente gentil. No evento da Fundaj não se
furtou a nenhum pedido de autógrafos, fotos, selfies ou conversas rápidas com
as dezenas e dezenas de leitoras e leitores que o abordaram.
Ao final da palestra,
uma longa fila se formou para fotos. Logo em seguida, sem intervalo, ele
participou do lançamento do livro Subordinação (mal) Camuflada: a dominação
capitalista no trabalho em plataformas digitais, da procuradora Vanessa
Patriota da Fonseca, do qual escreveu o prefácio.
Enquanto a autora
autografava os exemplares do livro, Ricardo Antunes arranjou uma brechinha para
esta rápida entrevista abaixo.
Nela, afirma que a
política de conciliação do governo Lula não vai fazer as mudanças que os
trabalhadores e trabalhadoras precisam. “Tem que combater o capitalismo. E
lutar por políticas públicas, sociais, etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o
capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer
a neoliberalização geral. O capitalismo que está fazendo sucesso hoje é o que
combina fascismo com neoliberalismo”, alerta.
• Como a precarização e a falta de
direitos atinge a saúde do trabalhador?
Ricardo Antunes –
Quanto mais informalidade, melhor para as empresas. Ou seja, trabalha, ganha;
não trabalha, não ganha. O mundo das empresas que ainda têm alguma regulação,
como bancos e metalúrgicas, só têm regulação porque os sindicatos lutam.
Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte
de mais de um por dia na cidade de São Paulo. Sem falar dos acidentes: esses
motoqueiros quebram braço, perna, bacia, cabeça. É um vilipêndio. É uma morte a
céu aberto.
A resiliência é
trabalhar todo o possível para a empresa. Qual é o resultado da resiliência? É
o burnout, é a depressão, é o assédio, é o sofrimento. E muitas vezes o
suicídio.
Um bom exemplo do que
é o capitalismo é o Japão. A sociedade japonesa é uma das que tem mais
suicídios no mundo. Porque até os gerentes de cada um dos intermediários acham
que se a empresa faliu ou está indo mal, a culpa é deles. Ficam trabalhando na
empresa até morrer. Quando a Telefrance, na França, foi privatizada,
aconteceram mais de 50 suicídios lá dentro. Porque a privatização hoje avança
para quebrar direitos da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora sem
direitos é uma classe trabalhadora empurrada para o sofrimento, para a
depressão, para o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte.
E como é que você muda
isso? Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais,
etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem
regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. No
capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com
neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade indigente e
inqualificável do Javier Milei na Argentina. Este é o boçal do nosso tempo: um
burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora argentina
dizendo-se neoliberal e libertário.
“Uma classe
trabalhadora sem direitos é empurrada para o sofrimento, para a depressão, para
o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte”
• Como é que o senhor avalia o que o
terceiro governo Lula tem feito para os trabalhadores?
A primeira coisa
importante para avaliar o governo Lula é entender que ele pegou um país de
terra arrasada. Fundamentalmente, Michel Temer deu legalidade à aberração do
arcabouço fiscal, ou seja, não se amplia recursos para saúde, educação e
previdência pública. Um país que não amplia recursos para saúde, educação e
previdência pública é o país que comete um crime contra a sua população.
E por que não amplia
recursos? Porque os bancos querem dominar o capital financeiro. A primeira
coisa que teria que fazer é cortar o domínio e a hegemonia dos bancos e do
capital financeiro na política econômica do país. E isso o governo Lula não
conseguirá porque é um governo politicamente débil e frágil. Mas, por exemplo,
o governo Lula está tentando, ao seu modo, lutar por uma coisa importante, que
é retirar a autonomia do Banco Central.
O segundo fator é que,
politicamente, para derrotar o Bolsonaro, que foi a expressão do neofascismo do
Brasil, evidenciou-se que era preciso eleitoralmente ampliar uma frente. No
segundo turno, a diferença de Lula para Bolsonaro foi de menos de 2 milhões de
votos. O que o Bolsonaro fez nos últimos seis meses do seu governo foi a
devastação total para comprar votos dos eleitores pobres. Lula tomou posse e
viveu um golpe oito dias depois da eleição, seria então um milagre que nós
tivéssemos no paraíso
Outro ponto é que Lula
foi eleito com um programa moderado de conciliação de classes. É sempre bom
lembrar que Geraldo Alckmin era o homem do neoliberalismo do Brasil até ontem e
continua sendo. É que o Alckmin não é fascista e o Bolsonaro é. E, claro, que
Alckmin também estava muito fragilizado no PSDB, que praticamente tinha
desaparecido.
Dito isto, o Lula que
ganhou a eleição está muito aquém do que ele poderia fazer, mas reconheço ações
importantes.
• Quais? Na área do trabalho?
Não na área de
trabalho. A área de trabalho até agora é lamentável. Reconheço, por exemplo, a
tentativa de combater o crime organizado na Amazônia e tentar minimizar as
condições de sofrimento e adoecimento do povo indígena. Não é fácil você fechar
a Amazônia para o crime porque é uma fronteira aberta imensa, o crime entra por
todos os lados. Uma parte da polícia estadual muitas vezes é vinculada ao
crime, basta pensar que os milicianos que nascem dentro da polícia e se tornam
criminosos e outras tantas dificuldades.
Agora, no que diz
respeito à questão do trabalho, o governo Lula não fez nada do que poderia.
Claro, não estou falando aqui da política econômica, é evidente que tem havido
já uma redução do desemprego razoável. Acabamos de ver agora que houve o
crescimento do PIB, então há uma tentativa de retomada do crescimento
econômico, mas, por exemplo, o que o Lula disse em campanha? Que ia debater com
seriedade a “contra-reforma” trabalhista de Michel Temer. Não só não debateu e
não fez a revisão, como o PL 12/2024 (o projeto de lei 12/2024 cria a categoria
“trabalhador autônomo por plataforma” e atualmente está fora de pauta no
congresso) do seu governo é a continuidade do projeto Temer de destruição do
trabalho.
• O senhor está se referindo ao projeto de
lei que estabelece 12 horas de trabalho diário por aplicativo?
Isso, 12 horas para
cada aplicativo. Não fala das mulheres – não há uma nota sobre as
trabalhadoras! – e não fala da questão crucial. A questão crucial é que quando
você avalia o trabalho em plataformas é se é um trabalho que é verdadeiramente
autônomo, ou seja, o trabalhador faz o que quer e não faz o que não quer, ou se
ele é um assalariado sem direitos.
No artigo terceiro
deste PL do Lula, se diz que esses trabalhadores são “autônomos”, que
trabalhadores de plataformas de automóveis são autônomos. É criminoso, porque
não é verdadeiro, é falso. Você acha que quem trabalha 12, 14, 16, 18 horas por
dia é autônomo?
Autonomia é outra
coisa. Se eu sou um eletricista autônomo, eu faço o serviço da sua casa, e eu
quem vou dizer quanto eu cobro, quando eu posso fazer, quantos dias eu vou
levar e como eu quero receber. Você fala que só vou pagar quando terminar, eu
falo que não, eu preciso que você me pague antes uma parte para eu comprar
material. Isso é que é ser autônomo, é elementar.
No que diz respeito à
questão trabalhista, dos direitos do trabalho, o Lula tem algumas questões
cruciais e urgentes a enfrentar: extinguir o trabalho uberizado da
“contra-reforma” de Temer; recuperar o mínimo de força sindical que a
“contra-reforma” de Temer também arrebentou, tentando minar economicamente os
sindicatos; acabar com as tantas formas de precarização, inclusive, do trabalho
feminino na “contra-reforma” trabalhista, porque você desobrigou as empresas de
uma série de obrigações que ela tinha, até do transporte de levar trabalhadores
e trabalhadoras; e quarto elemento, que diz respeito ao trabalho em plataforma,
é inaceitável que um ex-operário que durante décadas trabalhou em fábrica, faça
um projeto de lei do seu governo que atende a Uber e iFood, que estão contentes
e felizes na vida.
• Os entregadores não aceitaram essa
proposta do PL?
Felizmente, há luta de
classes e há resistência. E, neste caso, além de toda a denúncia que muitos
fizeram – eu também fiz, porque era inaceitável – os jovens entregadores e
entregadoras de motos e bicicletas repudiaram essa proposta e a Aliança
Nacional dos Entregadores de Aplicativos, chamada de Aliança, disse: “não
aceitamos”. E saiu da negociação, deixando o Lula levando o pau do
bolsonarismo, que é de extrema direita e é fascista, mas levando críticas
também dos setores de esquerda que lutam em defesa dos direitos da classe
trabalhadora.
“Felizmente, há luta
de classes e há resistência”
• Os motoristas aceitaram, não foi?
Os motoristas
aceitaram em parte. Não é que eles aceitaram, mas os que estavam lá aceitaram.
Mas se você for fazer uma enquete entre eles, a maioria não aceita. E não é por
bons motivos que eles não aceitaram, né? Mas quem é o motorista nos aplicativos
hoje? Um era veterinário, outro era engenheiro, outro era motorista de
caminhão, outro era operário metalúrgico, outro era trabalhador da construção
civil, outro era estudante, outro era gestor de pequena empresa, é um compósito
heterogêneo de categorias sociais que, de repente, tem um carro ou aluga, tem
uma moto ou aluga, tem um bicicleta e aluga e vai trabalhar.
E é muito importante
entender que esta categoria, além de ser heterogênea, fragmentada, ela vem de
experiências diferentes. Um operário metalúrgico, por exemplo, que virou um
uberizado, ele tem a experiência das greves.
O operário, o antigo
motoqueiro, tinha a experiência do sindicato dos motoqueiros. Já um engenheiro
que está desempregado, ou um pequeno empresário, eles não querem saber. Os mais
jovens nasceram – e a maioria é muito jovem, especialmente os entregadores –
sob o signo de que o sindicato atrapalha, política é negativa e a CLT é um
horror.
E isso é tudo
construção ideológica das empresas para poder ter uma classe trabalhadora
disponível para a exploração ilimitada. Mas muito importante uma coisa: a luta
de 1º de julho de 2020 mostra que os trabalhadores, quando a porca torce o
rabo, perceberam que há um problema e aí começaram a lutar.
• O senhor é otimista com esse movimento
Breque dos apps? Porque já faz quatro anos que aconteceu…
Não estou sendo
otimista, porque nenhum movimento operário, em toda a história do movimento
operário, nasce no primeiro, segundo, terceiro ou quarto ano. Quantos anos o
ABC Paulista levou para fazer greve depois das greves de Contagem e Osasco? (em
abril de 1968, a primeira grande greve no Brasil após o golpe de 1964). Dez
anos. Por quê? Por que eram bobos? Não. Porque era uma ditadura. Veja, pense o
seguinte: se eu estou endividado, se eu alugo um carro ou compro um carro, se
eu alugo uma moto ou compro uma moto, eu compro um celular e fico endividado,
eu vou chegar nessa plataforma e vou começar a lutar contra ela? Não, a
primeira coisa que eu quero é ganhar dinheiro e trabalhar que nem louco para
pagar o carro, a moto ou o celular.
Quanto tempo a Uber
está no Brasil? Ela chegou em 2014. Ela só ganhou corpo na pandemia. Em 2016,
2017 ela era pequenininha, mesmo na Inglaterra, mesmo em outros países. É que
com a explosão do desemprego na pandemia, as plataformas se expandiram.
É por isso que a Uber,
a 99, a Cabify, a Lyft, a Deliveroo, como exemplos generalizados, pagavam muito
mais antes. Quando você tem 10 trabalhadores ou trabalhadoras, você paga X.
Quando você tem 100, você paga X menos tanto. Quando você tem 1.000, você paga
100 menos X menos Y. Quanto mais trabalhadores e trabalhadoras disponíveis,
desempregados, menor é o seu salário.
• Se a economia do Brasil melhorar, o
número de trabalhadores de aplicativos também pode diminuir?
Não dá para dizer isso
porque os salários médios do Brasil hoje estão muito baixos. Então, por
exemplo, todos os trabalhadores que eu entrevistei até hoje, todos eles dizem
que preferem trabalhar 12, 13 horas e tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil do que trabalhar
numa empresa e ganhar R$ 3 mil, com descontos. O trabalhador só vai começar a
perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não
tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir. Eu tenho acompanhado
as movimentações dos trabalhadores em aplicativos em Portugal, Inglaterra,
Espanha, Itália, Argentina, Uruguai, Brasil. É uma categoria nova, tem apenas
alguns anos.
Fonte: Marco Zero
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