quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ronald Vizzoni Garcia: ‘Escândalo e direitos humanos em Brasília’

Os três ministérios mais diretamente ligados aos direitos humanos seguem como atores secundários na Esplanada dos Ministérios. Quando ganham repercussão, não é pelo que fazem de melho

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A crise no Ministério dos Direitos Humanos, com a saída de Silvio Almeida, é uma situação que exige atenção. Podemos extrair dela, interpretações sobre como os ativistas de direitos humanos e movimentos sociais reagiram, bem como sobre a situação das três pastas ministeriais relacionadas ao tema. Para tanto, inicialmente, entendamos as reações na sociedade, que se dividiu entre apoiar a narrativa de uma ou outra liderança do mesmo campo. Depois, discutiremos a tomada de decisões sobre a crise. E, por fim, falaremos sobre a condição atual das pastas ministeriais relacionadas ao tema.

A sensação predominante em muitos grupos de ativistas de direitos humanos é de surpresa, quando não de perplexidade. Diante da incerteza, as pessoas começam a construir suas próprias deduções. É esperado que militantes de longa data dos movimentos sociais, frequentemente acostumados a serem retratados pejorativamente pela mídia corporativa, relutem em “abandonar um companheiro” à mercê de cancelamentos.

A primeira reação foi duvidar das fontes (mídia golpista), questionar as intenções: pacto da branquitude; “ele se opõe à privatização de presídios; ONG estrangeira e assim por diante. Além disso, há algum tempo, diversos movimentos sociais vêm insistindo na importância de “raça” e “gênero” na nomeação de pessoas para cargos importantes. A nomeação de ministros e ministras negras para o STF é o ponto alto dessa reivindicação. Fora a radical disparidade material e simbólica, não há nada que justifique, positivamente, o corte de gênero e raça nos postos de elite.

As “decisões pragmáticas” “sem considerar” cor e gênero apenas reforçam as estruturas e valores vigentes. Quando já existem pessoas qualificadas para os mesmos cargos, com a singela diferença de terem nascido sem serem homens brancos, a “urgência” do cálculo político imediato tende a favorecer a estrutura social, simbólica e política dada. A mudança é uma escolha deliberada. Para que ela persista, deve ter apoio na sociedade, que se traduza em votos.

Como negar o tratamento diferenciado dado a ministros dos quais o governo depende, como, por exemplo, Juscelino Filho (Comunicações), indiciado pela Polícia Federal, em 2024, por fraude em licitações e organização criminosa? Ou a falta de alinhamento político do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que defendeu abertamente o Marco Temporal, enquanto o governo e o STF caminhavam na direção oposta?

O próprio governo optou por deixar de lado a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, mais um dos inúmeros acenos de boa vontade para com os militares. Esse ponto, inclusive, foi retomado por Silvio Almeida em uma linha de ação oposta à do governo. Não se trata de criar um ranking de transgressões “mais aceitáveis” ou equiparar falta de alinhamento político ao cometimento de crimes. O ponto é: o cálculo difere, seja pela pessoa, pasta ou meios de sustentação política.

Um falso dilema é que a simples presença de homens negros e mulheres negras acarrete obrigações morais maiores do que as dos demais em cargos de comando. Não há argumento meritocrático que explique o branqueamento dos cargos de elite. Esse argumento, por si só, é suficiente para rediscutirmos os processos de seleção para esses cargos. Não significa que os “não brancos” ascendentes tenham que ser “santos” com um grau de exigência maior ou menor do que os demais.

Certamente, há mais tristeza nos movimentos sociais em relação às denúncias contra Silvio Almeida do que contra Juscelino Filho. As expectativas eram outras. A decepção também. Essa alta expectativa vale também para Anielle Franco, à frente da Secretaria de Igualdade Racial. É uma situação dilacerante para aqueles que julgam ter sofrido violência e, em outro nível, para aqueles que precisam entender o que está ocorrendo.

Num segundo momento de reflexão, pode-se lembrar que a pessoa em questão já apresentava sinais que apontavam para esse desfecho, nós é que não queríamos aceitar. A nota da Coalizão Negra por Direitos oferece um bom exemplo dessa leitura da situação: “Nos bastidores do movimento negro, porém, já há algum tempo, é visto com reservas por várias lideranças”.

Destaca, em particular, “o assassinato de João Alberto Freitas, dentro de um supermercado Carrefour em Porto Alegre, em novembro de 2020” (…) “Enquanto vozes do movimento negro choravam publicamente seu luto, Silvio Almeida aceitou assumir a condução do Comitê de Diversidade do Carrefour”. Isso antes de ser ministro. A nota também cita o relato publicado pela revista Veja de alunas que teriam sofrido assédio sexual em uma faculdade privada de São Paulo.

Infelizmente, os prejulgamentos e tomadas de posição ocorrem de maneira mais ou menos emotiva e direta. Nunca partimos do zero, mas de inclinações já presentes em nossas mentes. Não adianta pedir calma em prol da presunção de inocência e do devido processo legal. O tempo da política, acelerado pelas redes sociais, é o das conclusões “muito evidentes”, que dividem “os bons” dos “maus”. Independentemente do resultado legal daqui a alguns meses ou anos, o impacto dos fatos (verídicos ou não) já é uma realidade no mundo político. Não é com base na produção de provas em um processo legal que decisões políticas são tomadas sobre este caso.

Inexiste fórmula mágica que transforme pessoas de direita ou de esquerda em pessoas moralmente superiores, a priori. São as ações práticas que definirão o que há de sombrio, ou não, na conduta de cada um de nós. A recusa pública de valores machistas, racistas e xenófobos é um bom começo (para direita, centro e esquerda), mas também pode servir como fachada pública para agir de outra forma no privado.

É o que muitas empresas fazem em relação ao meio ambiente; como tratam seus empregados e as populações atingidas por suas atividades. Em governos, algo semelhante pode ocorrer, especialmente por sua composição nunca ser monolítica. Existem sempre lideranças e grupos disputando mais recursos, mais poder e visibilidade. Isso é positivo, pois, nessas disputas, os “excessos” e “pecados” dos diferentes lados acabam surgindo, independentemente do governo.

A dor das vítimas é real e não deve ser menosprezada. Nossa inteira solidariedade e compromisso para com elas. Por sua vez, a veracidade dos fatos, premeditados ou não, não muda o cálculo político. O momento é de melhora na economia, eclipse político do Sete de Setembro bolsonarista e esvaziamento do Congresso devido às eleições municipais.

A crise é uma antecipação da reforma ministerial prevista para depois das eleições, que pode “ajudar” a reposicionar o governo frente à sua base parlamentar, sem falar na sucessão das presidências no Congresso. O antigo ministro não tinha muito a oferecer nesse campo, nem a pasta é alvo de grandes cobiças. Silvio Almeida mantinha certa independência de partidos e de alinhamentos automáticos, típico do intelectual que valoriza mais a biografia e a ética da convicção do que a ética da responsabilidade política.

Passando aos ministérios/secretarias, há um paradoxo nas políticas públicas de direitos humanos. Por se tratar de uma agenda transversal, que passa por políticas públicas de diversos ministérios, pode-se fazer muito por essa pauta sem, necessariamente, avançar nas políticas específicas. O governo Lula vem melhorando as condições sociais da população e se mostra mais “civilizado” do que o anterior (para dizer o mínimo) em suas posições sobre a efetividade de direitos.

Os ministérios mais específicos (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos) trabalham com orçamentos menores, tendem a fazer alianças entre si e a “sensibilizar” os demais ministérios para suas pautas (matricialidade). Desenvolvem políticas públicas mais específicas para públicos importantes. Além desse cenário geral, há a péssima imagem deixada pela antecessora. Ela soube usar o cargo para ganhar visibilidade, muitas vezes propagando fake news e políticas absurdas. Ficou a impressão de que qualquer um poderia ser ministro dos Direitos Humanos e dizer qualquer banalidade (meninas de rosa, meninos de azul), dependendo do governo que assumisse.

Os três ministérios mais diretamente ligados aos direitos humanos seguem como atores secundários na Esplanada dos Ministérios. Quando ganham grande repercussão, não é pelo que fazem de melhor. Um fato lamentável. Direitos humanos permanecem um desafio ao “reformismo fraco” do governo Lula 3.

A agenda de direitos humanos é composta por compromissos civilizatórios, pela proteção de indivíduos e pela efetividade de direitos. Representa o pacto por uma sociedade melhor, na qual cada pessoa possa expandir suas potencialidades, sem prejuízo à diversidade e aos grupos minoritários. Há muito a ser feito, e podemos começar pelas escolhas de quem confiar e pelas razões para isso. Que a mudança traga novas perspectivas!

 

•        O ministro e a luta das mulheres. Por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Em artigo publicado na Revista Language & Law, Lana Lage da Gama Lima analisa a “cultura do estupro”, um conceito desenvolvido nos anos 1970 pelo movimento feminista norte-americano para descrever como leis, normas e práticas naturalizam a violência sexual contra mulheres devido às desigualdades de gênero.

A autora explora como essa cultura tem raízes na tradição judaico-cristã, que retrata a mulher de forma dicotômica – Eva, a pecadora, e Maria, a virgem pura. Essa dualidade moldou representações sociais misóginas e o controle da sexualidade feminina, consolidando a desconfiança e a desvalorização da mulher, especialmente em casos de violência sexual.

Lana Lage da Gama também analisa como a legislação ocidental, especialmente no Brasil, tem refletido e reforçado essa submissão feminina através de códigos penais que diferenciavam o tratamento legal com base na moralidade da vítima.

Mesmo após a retirada do termo “honesta” do Código Penal em 2003, a cultura do estupro persiste, como evidenciado pelo tratamento de casos recentes. A autora conclui que a superação dessa cultura exige a desconstrução de normas e representações sociais que culpabilizam as mulheres, buscando a igualdade de direitos entre os gêneros.

O movimento Me Too, fundado em 2006 pela ativista Tarana Burke para apoiar mulheres negras vítimas de violência sexual, ganhou notoriedade global em 2017 quando a atriz Alyssa Milano popularizou a hashtag #MeToo, desencadeando uma onda de denúncias públicas contra agressores, especialmente em Hollywood. Esse momento trouxe à luz a dimensão sistêmica da violência de gênero, incentivando milhares de mulheres a exporem suas experiências de abuso, agressão e assédio sexual.

No Brasil, o Me Too se organiza através de coletivos feministas, ONGs e ativistas, promovendo ações de conscientização e campanhas de apoio às vítimas. O movimento enfatiza a importância da visibilidade das agressões e do acolhimento às vítimas, criando redes de solidariedade e apoio emocional, jurídico e psicológico.

A estratégia inclui a quebra do silêncio, a denúncia coletiva e a conscientização sobre a magnitude do problema. Fortalecer essas redes e pressionar por políticas públicas eficazes é crucial para responsabilizar agressores e construir uma cultura de enfrentamento à violência de gênero, desafiando a normalização do assédio e da violência sexual.

A adoção de ações rápidas e eficazes para proteger mulheres vítimas de assédio e importunação no ambiente de trabalho é fundamental, especialmente em esferas como a política e a academia, onde há relações de poder assimétricas. Nessas esferas, a hierarquia e a influência de figuras públicas podem tornar as vítimas mais vulneráveis e inibir a denúncia por medo de retaliação. Medidas ágeis são essenciais para garantir a integridade física, emocional e profissional das mulheres e para assegurar que o ambiente de trabalho se mantenha seguro e livre de pressões.

Além disso, o afastamento de figuras que ocupam cargos políticos importantes diante de acusações graves e contextualizadas feitas por várias vítimas é essencial para garantir a integridade do processo investigativo e a proteção das denunciantes, sem comprometer o princípio da presunção de inocência.

Embora não viole os direitos de defesa do acusado, que pode buscar seus direitos nas vias judiciais adequadas, impede que ele use sua posição de poder para influenciar as investigações ou intimidar a vítima e testemunhas. O objetivo é garantir que cargos de poder não confiram imunidade ou privilégios em relação à responsabilização por comportamentos inadequados.

É crucial que, no âmbito penal, o devido processo e a presunção de inocência sejam respeitados, garantindo que todos os acusados tenham a oportunidade de se defender adequadamente. No entanto, é igualmente essencial que decisões judiciais sejam tomadas com uma perspectiva de gênero, especialmente em casos de assédio e abuso sexual onde podem não existir provas materiais ou testemunhas diretas.

No âmbito judicial, decisões com perspectiva de gênero, que têm sido estimuladas pelo Conselho Nacional de Justiça, são essenciais para valorizar a palavra das vítimas em casos de assédio e abuso sexual, especialmente na ausência de provas materiais ou testemunhas. Essas decisões reconhecem as dinâmicas de poder e controle envolvidas nesses crimes, permitindo uma avaliação mais justa das denúncias.

Muitas vezes, as vítimas enfrentam dificuldades para apresentar evidências concretas devido à natureza íntima e oculta dos abusos. A perspectiva de gênero ajuda a entender essas circunstâncias e a tratar as denúncias com seriedade, combatendo a descredibilidade frequentemente associada a tais relatos.

A criminalização do assédio e da importunação sexual é crucial para a interdição social desses comportamentos. Ela define claramente o que é inaceitável e estabelece mecanismos legais para responsabilizar os infratores e proteger as vítimas. A criminalização contribui para a conscientização pública e a mudança cultural, transformando uma cultura permissiva em relação ao comportamento masculino abusivo e promovendo um ambiente mais seguro e respeitoso.

Além disso, oferece uma via legal para que as vítimas busquem justiça e proteção, servindo como um mecanismo de dissuasão contra comportamentos abusivos. Em resumo, a criminalização dessas condutas é sim necessária para a promoção da mudança cultural, fortalecendo a proteção e a justiça para as vítimas, capacitando as autoridades a lidarem com esses crimes de maneira adequada e atuando como uma barreira contra práticas abusivas.

O caso das acusações de assédio e importunação sexual contra o ministro Silvio Almeida destaca a importância do papel de liderança do presidente Lula, em um contexto frequentemente marcado por misoginia e “broderagem”, onde denúncias são minimizadas e as vítimas são desqualificadas, muitas vezes sob o pretexto de que estariam motivadas por disputas políticas.

Nesse cenário, a intervenção de Lula no arbitramento da questão e no afastamento do ministro acusado foi crucial para garantir que as alegações sejam tratadas com a seriedade que merecem e para assegurar o devido tratamento, pelo governo federal, das questões de violência de gênero.

Na perspectiva weberiana, o papel do líder carismático é crucial para romper estruturas de poder tradicional, caracterizadas por lealdades pessoais e compadrios. Max Weber descreve o carisma como uma forma de autoridade baseada na habilidade pessoal e na capacidade de inspirar devoção, ao contrário da autoridade tradicional, que se fundamenta em normas e práticas estabelecidas.

Em um contexto onde as estruturas de poder são marcadas por relações de lealdade e compadrio, o líder carismático pode desafiar essas normas e práticas ao oferecer uma visão inovadora e um compromisso com princípios éticos que transcendem os interesses pessoais e as tradições estabelecidas.

O líder carismático tem a capacidade de transformar e modernizar instituições ao contar com uma legitimidade que desafia as estruturas de poder existentes. Ao adotar uma postura ética firme e voltada para a proteção das vítimas, o líder carismático pode enfraquecer as relações de lealdade e os arranjos de compadrio que muitas vezes perpetuam práticas injustas e abusivas. Esse tipo de liderança não só desestabiliza o status quo, mas também cria novas possibilidades para a construção de instituições mais transparentes e responsáveis, baseadas em princípios de mérito e justiça, em vez de redes de favores e lealdades pessoais.

A decisão de afastar o ministro foi, portanto, uma medida necessária para proteger as vítimas e garantir que o processo judicial seja conduzido de forma imparcial, sem interferências que possam comprometer a apuração dos fatos. Este afastamento é essencial para mitigar a influência da misoginia e das práticas de “broderagem” e lealdade pessoal e política que podem estar presentes, criando um ambiente mais seguro e respeitoso para as denunciantes. A postura firme e clara do presidente Lula foi, neste sentido, fundamental para reforçar o compromisso do governo com a justiça e a igualdade de gênero.

Além disso, o Ministério dos Direitos Humanos deve continuar comprometido com a proteção das mulheres vítimas de violência, mantendo sua missão de apoio e defesa dos direitos das vítimas, mesmo diante de controvérsias políticas.

O ministério deve garantir que sua função de proteger e acolher as vítimas não seja comprometida pelo caso, mantendo a ênfase na promoção da igualdade de gênero e na justiça social. Dessa forma, a resposta institucional estará pautada pelo compromisso com a ética e os direitos humanos.

Lembrando que recusar práticas de assédio – seja moral, sexual ou psicológico – não é uma pauta exclusiva das mulheres, mas uma questão de direitos humanos universais. A recusa a avanços indesejados, cantadas ou sugestões que condicionam o avanço na carreira a concessões pessoais e favores sexuais deve ser entendida como uma pauta humanitária e universal, e não apenas como uma reivindicação identitária.

Essas ações são expressões de relações de poder que, independentemente de seu caráter machista, devem ser rejeitadas para promover um ambiente de respeito e igualdade para todos.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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