sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Políticas anti-imigração na Europa: xenofobia com nova roupagem ou direito soberano?

"Os refugiados forçados a vagar de país em país representam a vanguarda de seus povos […]. O respeito recíproco dos povos europeus se estraçalhou quando, e porque, permitiu-se que os membros mais fracos fossem excluídos e perseguidos."

A afirmação, da filósofa política Hannah Arendt, escrita em 1943, no ensaio "Nós, os refugiados", segue atual 80 anos depois?

Ou as recentes medidas tomadas por países da União Europeia (UE) para limitar a entrada de determinados imigrantes são justas e um direito soberano?

Na Alemanha, por exemplo, o governo iniciou o controle temporário nas fronteiras sob a alegação de combater a migração irregular e proteger a população de ameaças como o extremismo islâmico, após um imigrante muçulmano matar a facadas três pessoas e ferir oito. O país também suspendeu o Tratado de Schengen, que garante a livre circulação de pessoas.

No Reino Unido, houve protestos por todo o país no mês passado, por causa das mortes de três meninas atacadas a facadas por um adolescente, filho de imigrantes de Ruanda. Medidas mais antigas já são tomadas na Hungria e na Itália.

Para debater esse assunto, a Sputnik Brasil convidou para seu podcast Mundioka o doutor (Universidade de Brasília, UnB) e mestre (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS) e doutor em relações internacionais Bruno Mendelski; e o professor de relações internacionais do Ibmec São Paulo Carlo Cauti, nesta quarta-feira (18).

Para Mendelski, que também é pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima), da UFRGS, as recentes medidas são discriminatórias e representam o "enfraquecimento da democracia, da legitimidade da democracia".

Ele citou como exemplo a política migratória inglesa de pagar Ruanda para receber migrantes irregulares do Reino Unido.

"Esse projeto não foi uma medida imposta unilateralmente pelo Partido Conservador, ela foi aprovada no Parlamento. Ou seja, a maior parte do Parlamento aprovou uma medida que era claramente discriminatória e racista. Enfim, que bom que foi agora revogada pelos trabalhistas", opinou.

O pesquisador gaúcho comentou que estudos de agências da UE apontam que até o ano 2100 o continente vai perder 27 milhões de pessoas e que o déficit de trabalhadores já é sentido nos dias de hoje.

"Há essa grande contradição: há uma necessidade de mão de obra para manter a economia funcionando, mas, por outro lado, há uma grande resistência em parte significativa das sociedades e dos governos em aceitar os migrantes".

Carlo Cauti argumentou que nem todos os migrantes têm o direito automático a pedir asilo na Europa.

"Existem os migrantes econômicos, que mudam de um país para outro procurando um emprego melhor; mas existem também refugiados, que fogem, por exemplo, de perseguições, de torturas. Os refugiados têm direito de permanecer em solo europeu porque têm direito ao asilo político, mas os imigrantes econômicos não", argumentou ele. "Então essas pessoas, elas devem ser repatriadas, mas isso não é uma forma discriminatória, isso é a aplicação das leis, inclusive internacionais."

O professor defendeu ainda que os países têm direito de limitar os ingressos de migrantes.

"Dependendo das necessidades que têm e do fato de acreditarem que aquela pessoa possa ou não se integrar com a sua comunidade nacional. Isso não se aplica aos refugiados, porque eles, sim, têm direito automático de serem acolhidos por causa das perseguições que sofrem […]. Mas os refugiados são uma pequena parcela do mundo migratório internacional. A enorme maioria não tem esse direito."

Já para o pesquisador do Rio Grande do Sul, essa definição tem dois pesos e duas medidas, em que migrantes desejados e indesejados são classificados com viés racista e preconceituoso.

"Se o imigrante é branco, cristão e vem de um país de renda alta, ele recebe um tratamento totalmente diferente da maior parte dos migrantes que hoje a Europa recebe, que são justamente as pessoas do norte da África e do Oriente Médio [...] Há um preconceito contra os migrantes, muito forte, mas contra um tipo específico de migrantes."

O que o pesquisador da UFRGS chamou de xenofobia, o professor do Ibmec classificou como incompatibilidade de valores de muitas dessas culturas com a cultura europeia. Ele destacou que em países como a Alemanha, em que cerca de 30% dos habitantes vêm de outras nações, tem ocorrido esse choque de civilizações.

Esse choque se intensifica principalmente porque as novas gerações de imigrantes "continuam sendo cidadãos e culturalmente ligados aos países de origem e rejeitam a cultura do país onde estão", criando um "separatismo interno".

"Isso acaba incompatibilizando essa necessidade dos países europeus de mão de obra que existe com a necessidade de ter uma certa homogeneidade, um mínimo cultural para manter uma estabilidade social."

Cauti defendeu que a única forma de coexistência pacífica de populações no mesmo território ocorre quando há aceitação dos usos dos costumes, especialmente das leis do país para onde se migra.

"Os países da Europa são países secularizados, onde não existe uma interferência da religião no Estado ou nas leis. E como compatibilizar isso, por exemplo, com a poligamia ou com a discriminação feminina no caso de populações que vêm de alguns países árabes, ou com a mutilação genital feminina, por exemplo, que 90% das mulheres somalianas sofrem isso e na Europa claramente é proibido?", questiona.

Entretanto, para Mendelski, a aparente incompatibilidade de culturas tem relação com a xenofobia do europeu, que, segundo ele, é um sentimento de superioridade sobre determinados povos, sobretudo os colonizados. Ele defendeu que a intolerância em relação à cultura e à religião ocorre sobretudo contra os imigrantes.

O pesquisador gaúcho comentou ainda que a agência de direitos humanos da UE divulgou um estudo sobre a prevalência de discriminação em vários países do bloco: "Imigrantes que vivem na Áustria retrataram que 67% deles se sentiram discriminados. Na Alemanha, 65%. Finlândia, 57%, enquanto em Portugal, 17%".

"Há uma antipatia histórica e um sentimento de superioridade, um etnocentrismo que foi usado como justificativa para o período colonial. […] infelizmente, pelo quadro da situação, os conflitos, a instabilidade, a divisão do mundo, não sou muito, no curto prazo, otimista de que os países, sobretudo da Europa, que precisam dessas pessoas, possam ter políticas que minimamente cumpram com os direitos humanos,"

Mendelski frisou que as agências europeias reconhecem o problema do preconceito e da xenofobia com dados e estudos, mas que as comprovações não saem do papel.

"Faltam grandes lideranças europeias que realmente compreendam que essa questão da migração é não apenas um dever moral, sobretudo em um continente que é o berço dos direitos humanos, que é o berço do Iluminismo, como também uma questão estratégica para o próprio desenvolvimento da Europa", argumentou ele.

Ele completou afirmando que a prioridade de todo o Estado deve ser o bem-estar dos seres humanos e da natureza.

"Então acho que a gente tem que começar a olhar para a questão da migração como seres humanos, para se colocar no lugar dessas pessoas que estão migrando, que poderiam ser nós", concluiu ele.

¨      Migrantes são “imprescindíveis” em Portugal e “um bem para todos”

Querendo fazer face às cada vez mais “vozes hostis aos imigrantes” que se vão ouvindo “em Portugal e noutros países”, a Comissão Nacional Justiça e Paz acaba de divulgar uma nota em que sublinha “a imprescindibilidade de trabalhadores imigrantes em vários setores da atividade económica em Portugal” e “o bem que migrações legais, ordenadas e seguras podem trazer às sociedade de origem e destino dos imigrantes”.

Ao mesmo tempo, o organismo laical da Igreja Católica desmistifica ideias erradas que existem em torno do fenómeno migratório: “Ao contrário do que muitas vezes se propala, o incremento da imigração que Portugal conheceu nos últimos anos não se traduziu num incremento da criminalidade. De um modo geral, o imigrante típico caracteriza-se por uma especial capacidade de trabalho, poupança e dedicação à família, o que contrasta em absoluto com uma maior tendência para a delinquência”, pode ler-se na nota enviada ao 7MARGENS nesta terça-feira, 17 de setembro.

E acrescenta: “Há quem tema o choque que possa resultar do encontro com imigrantes de culturas diferentes da nossa. Sendo certo que a maior parte dos imigrantes que chegam até nós partilham a nossa língua e, nessa medida, nos são culturalmente próximos, também o Papa  tem sublinhado como o diálogo de culturas se traduz num enriquecimento recíproco”.

Salvaguardando que “não podemos limitar-nos, egoisticamente, a atender ao bem que os imigrantes podem trazer ao nosso país, esquecendo o bem que as migrações podem representar para eles próprios e para os seus países de origem”, a Comissão Nacional Justiça e Paz defende que “há que encarar as migrações na perspetiva da justiça social, à luz do princípio do destino universal dos bens”. E cita o Papa Francisco, quando na encíclica Fratelli tutti afirma que “cada nação é co-responsável pelo desenvolvimento de todas as pessoas, o que pode traduzir-se de dois modos, que não se excluem mutuamente: no acolhimento de imigrantes e no contributo para o desenvolvimento dos países de origem destes”.

E conclui: “Deverá continuar a ser sempre para nós motivo de orgulho patriótico e de alegria que os imigrantes queiram viver em Portugal por ser um país acolhedor onde se sentem em casa. Deverá ser motivo de vergonha e de tristeza que aqui se sintam hostilizados e vítimas de discriminação e injustiça”.

 

¨      Alemanha, uma ameaça para a Europa? Por Flávio Aguiar

Será a Alemanha uma ameaça para o restante da Europa? Calma: não estou falando de uma guerra, embora graças ao conflito na Ucrânia muitos países do continente, inclusive a Alemanha, estejam aumentando seus orçamentos militares. Estou falando de um outro campo de batalha: a economia.

Na semana passada uma parte de uma das principais pontes da cidade de Dresden, na província da Saxônia, quebrou-se durante a madrugada e desabou no rio Elba. Equipes de engenharia passaram o fim de semana trabalhando febrilmente para remover os destroços, pois teme-se uma inundação com a cheia do rio, graças a intensas chuvas e neve precoce em sua cabeceira e sobre alguns de seus afluentes.

Ouvi no rádio o comentário de um economista dizendo que esta era uma metáfora perfeita para a economia alemã. Esta vem desabando e a queda vem provocando um efeito cascata no continente, devido ao fato de que muitos outros países dependem das importações da e exportações para a Alemanha, cuja economia ainda é a mais forte da Europa.

Depois de um longo período de prosperidade no começo do século XXI, os problemas da economia alemã começaram com a pandemia da COVID-19, que afetou seriamente o comércio, os serviços e os transportes. De início pequenos e médios estabelecimentos fecharam suas portas e em seguida a crise chegou às grandes lojas de departamentos. Para complicar mais a situação, uma parte dos consumidores acostumou-se a fazer compras pela internet. Os efeitos mais dramáticos da pandemia passaram, mas o hábito de comprar à distância não. Até hoje grandes lojas estão fechando filiais pelo país afora.

A situação se agravou com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A Alemanha aderiu ao fornecimento de armas, ao apoio financeiro ao governo de Kiev e às sanções econômicas contra a Rússia. Os gasodutos Nord Stream 1 e 2, este último em construção, que traziam o gás russo para a Alemanha foram sabotados em setembro de 2022, num episódio até hoje não esclarecido.

Em consequência de todo este processo o fornecimento do gás russo foi interrompido bruscamente, atingindo seriamente a indústria alemã, que começou a encolher. Insumos agrícolas que vinham da Ucrânia também foram prejudicados pela guerra. O custo da energia subiu vertiginosamente, o dos alimentos também. A economia alemã se retraiu e o país se encontra agora à beira do abismo de uma recessão prolongada.

Segundo Franciska Palma, analista da londrina Capital Economics, a queda na economia alemã começou em 2018 e se agravou a partir de 2020 e depois de 2022, e não há sinais de pronta recuperação.

Em 2023 a economia do país caiu em 0,3%. A previsão para 2024 é de crescimento zero. Apesar dos esforços do governo, a situação não deve melhorar em 2025. Para responder à crise, Berlim deseja promover a biotecnologia, as tecnologias verdes, a Inteligência Artificial e as indústrias da defesa, isto é, militares. Mas está amarrado pelo princípio de que a dívida pública, ou déficit orçamentário não pode ultrapassar os 0,35% do Produto Interno Bruto.

Houve uma queda de braço interna à coalizão do governo, formada pelo SPD social-democrata, os Verdes e o liberal FDP (Freie Demokratische Partei). Os Verdes e o SPD queriam aumentar o percentual da dívida pública em relação ao PIB, mas o FDP fechou questão e ganhou a parada: só permaneceria no governo se os 0,35% fossem mantidos.

O resultado de tudo é que a Alemanha entrou num processo acelerado de desindustrialização, arrastando consigo o continente todo.

De julho de 2023 a julho de 2024 a produção industrial alemã caiu em 5,45%, índice superado apenas pela queda do setor na Hungria ( – 6,4%) e na Estônia ( – 5,8%). O recuo global foi de 2,2% na Zona do Euro e de 1,7% na União Europeia.

Um sinal agudo da crise apareceu na Volkswagen, empresa umbelical e culturalmente ligada à identidade alemã. Acossada também pela queda nas importações chinesas e pela concorrência deste país dentro da Europa, pela primeira vez em seus quase 90 anos de existência a empresa anunciou a disposição de fechar unidades de produção para equilibrar as contas. Anunciou também a decisão de romper um acordo trabalhista de 30 anos com o sindicato dos trabalhadores, que protege salários e empregos.

Como o sindicato tem uma forte representação no Conselho Diretor da empresa, a batalha promete ser dura.

Como também a luta pela recuperação e pelo equilíbrio na economia alemã e europeia promete ser tenaz e longa.

 

Fonte: Sputnik Brasil/7Margens/A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário