Lula tenta usar fome, crise climática e
Musk para projetar liderança do Brasil na ONU
Pela segunda vez em
apenas cinco anos, o presidente do Brasil abrirá a Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU),
em Nova York, nos Estados Unidos, enquanto o país literalmente pega fogo.
Mas Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
ao contrário do que fez seu antecessor, Jair
Bolsonaro (PL), em 2019, não deverá minimizar o
problema.
Diante de uma ONU
dividida pelo momento delicado na geopolítica global, na manhã de terça-feira
(24/9), Lula deverá usar o catastrófico cenário de incêndios — considerados os
piores nos últimos 20 anos tanto na Amazônia quanto no Pantanal, segundo o Serviço
de Monitoramento da Atmosfera Copernicus, da União Europeia — como exemplo do
que o mundo todo deve enfrentar em breve e prova da urgência em implementar uma
agenda de combate a mudanças climáticas globalmente.
Em que pese a
responsabilidade do governo, que, como admitiu o próprio Lula, não estava “100%
preparado” para lidar com a situação, o presidente brasileiro deve
responsabilizar a associação de fenômenos como El Niño e comportamentos
humanos criminosos e predatórios em relação ao meio ambiente pelas cenas de
destruição.
Integrantes do governo
têm usado o termo “terrorismo” para se referir aos possíveis atos criminosos
que detonaram as queimadas, embora ressaltem que o governo Lula não pretende se
vitimizar no palco internacional.
O presidente deverá
ainda citar outros eventos climáticos extremos ao
redor do mundo.
Tudo isso para
argumentar que o tempo de ação para os líderes globais está se esgotando e que
o mundo pode em breve atingir um ponto de não retorno que comprometeria a
própria sobrevivência humana.
A urgência que o
presidente deverá imprimir ao tema em seu discurso ainda não é uma unanimidade
em seu próprio gabinete ministerial.
Enquanto o Brasil organiza a COP30, a ser
realizada em novembro de 2025 em Belém, parte do governo defende, por
exemplo, a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, algo a que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede),
se opõe.
Além disso, o plano
da Petrobras, de quem o governo é
acionista majoritário, é seguir ampliando a produção diária de barris de
petróleo até chegar a 5,3 milhões de barris por dia em 2030.
A queima de combustíveis fósseis está diretamente relacionada ao
aquecimento do planeta.
No domingo (22/9),
Lula fez um discurso na Cúpula do Futuro, um evento da ONU. Ele criticou a
falta de ação internacional para cumprir as metas de desenvolvimento
sustentável — que segundo Lula "foram o maior empreendimento diplomático
dos últimos anos, e caminham para se tornar o nosso maior fracasso
coletivo".
·
Menos grandioso
A atmosfera para a
Assembleia Geral da ONU agora é significativamente distinta da vista no ano passado —
tanto na forma como no conteúdo.
Se em 2023 Lula chegou
a Nova York com uma grande delegação e “certa pompa e efeito surpresa”, como
definiu um embaixador brasileiro que acompanha a agenda, “agora, já não há mais
que se falar que ‘o Brasil voltou’, a posição internacional já está restabelecida”.
A delegação foi
reduzida, e há “uma bem-vinda austeridade”, adicionou o mesmo diplomata, em
conversa reservada com a BBC News Brasil.
Acusado pela oposição
de gastos excessivos com hotel e viagens em 2023 — o que, na visão do Planalto,
teria afetado a popularidade do governo —, Lula optou desta vez por se hospedar
na residência do representante do Brasil na ONU.
Ministros com agendas
paralelas à do presidente, como Fernando Haddad (PT),
da Fazenda, viajaram em voo de carreira.
“Será algo menos
grandioso e ambicioso agora, até porque o discurso é confrontado com a
realidade”, afirma Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da
Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"Lula deve se
concentrar em três aspectos nos quais o Brasil realmente tem a contribuir. Além
das mudanças climáticas, o combate
global à fome e à pobreza e a reforma de mecanismos
multilaterais."
No combate à fome, o
Brasil tem tentado exportar experiências domésticas bem-sucedidas, como o programa Bolsa Família, ao mesmo
tempo em que se esforça para construir uma rede internacional para criação e
adoção de novas políticas públicas no tema: a Aliança Global contra a Fome e a
Pobreza Extrema, lançada no âmbito do G-20.
Em Nova York, Lula
deverá receber das mãos do fundador da Microsoft e filantropo Bill Gates um prêmio por
sua trajetória no combate à fome — ele quer atrair recursos do bilionário para
a causa.
Já na proposta de
reforma da governança global, o governo do petista repisa uma pauta tradicional
da diplomacia brasileira.
Desta vez, diplomatas
brasileiros chegaram a cogitar a evocação do artigo 109 da Carta das Nações
Unidas para, com maioria qualificada na Assembleia Geral, forçar uma
reconfiguração de órgãos como o Conselho de Segurança, cada vez
mais travado por três dos cinco membros permanentes e com poder de veto:
Estados Unidos, China e Rússia.
Na representação
brasileira em Nova York, houve até quem se pusesse a pensar em como chegar a
uma espécie de “Constituinte” para a ONU.
Mas cinco diplomatas
brasileiros com expertise no assunto com quem a BBC News Brasil conversou
demonstraram dúvida sobre a viabilidade ou a conveniência de lançar algo nesta
linha no discurso do presidente e anteviam que a questão deveria ficar em
aberto até instantes antes de Lula subir ao púlpito da Assembleia Geral.
Eles argumentam que,
hoje, as negociações multilaterais “são muito mais difíceis” e “travadas” do
que nos dois primeiros mandatos do petista e que qualquer ideia é lançada em um
“terreno polarizado e desfavorável”.
Propostas de reforma
mal colocadas poderiam gerar o indesejável resultado de uma piora nas condições
de negociação multilaterais.
Prova da dificuldade
foi dada no último domingo (22/9), quando a Rússia tentou derrubar um compromisso
proposto pelo Secretário Geral da ONU, António Guterres, batizado
de Pacto do Futuro, que tentava atualizar certas regras da relação
multilateral.
Entre outros pontos, o
pacto propõe reformar o Conselho de Segurança até 2030, aliviar a dívida
internacional para os países mais pobres e reformar os organismos financeiros
como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial nos próximos seis
anos.
O texto acabou
aprovado por 143 votos, mas não por consenso como boa parte da plenária
desejava.
Em breve manifestação
na ONU, Lula comemorou os avanços trazidos pelo pacto, mas afirmou que “nos
faltam ambição e ousadia” para melhorar a representatividade das Nações Unidas,
onde o Sul Global estaria sub
representado.
Ele voltará à carga em
seu discurso na Assembleia Geral, e Lula deverá usar o atual conflito em Gaza
como exemplo da disfuncionalidade da ONU, da incapacidade dos líderes de
buscarem e implementarem soluções pela paz e impedirem tragédias humanitárias.
Depois de ter comparado a situação dos palestinos com o Holocausto — o que gerou uma resposta dura de Israel e uma crise
diplomática entre os dois países —, Lula não repetirá a dose, mas, segundo um
de seus auxiliares, frisará a desproporcionalidade do uso da força por Israel.
·
Menos América Latina,
mais G-20
Não por acaso, fome,
clima e reforma de mecanismos multilaterais são os mesmos temas que o Brasil tem pautado no G20, grupo
das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia e a União Africana, do
qual o país é o atual presidente.
Segundo um embaixador
brasileiro, Lula tenta “promover a confluência entre a Assembleia Geral e o
G20”.
Em Nova York, ele
patrocinará a primeira reunião do bloco das 20 maiores economias do mundo
estendida à audiência da Assembleia Geral.
Cerca de 90 países
confirmaram presença no evento, de acordo com a assessoria do Planalto.
Diante de uma série de
derrotas recentes para sua liderança regional, a agenda G20 tem se mostrado
prioritária para o Brasil.
Na América Latina, que
Lula pretendia liderar, o argentino Javier Milei se recusa a
participar de reuniões do bloco do Mercosul, e o venezuelano Nicolás Maduro descumpriu
os termos do acordo de Barbados para garantir a lisura das eleições
presidenciais, aprofundando a crise no país — e tem fustigado o Brasil em suas
tentativas de mediação.
O México deixou
as conversas tripartites que os brasileiros promoviam com a
Colômbia para buscar saídas para a situação
venezuelana.
De outro lado, Lula
foi criticado por Gabriel Boric por, segundo o líder chileno, deixar de
condenar em termos mais fortes o que ele vê como um recrudescimento autoritário
na Venezuela.
Até mesmo a Nicarágua, de Daniel Ortega,
historicamente um aliado do petista, tem imposto constrangimentos diplomáticos
ao Brasil, por não endossar medidas tidas por Brasília como autoritárias.
Para um embaixador
brasileiro que atua na região e falou reservadamente à BBC News Brasil, “é
impossível hoje liderar o Sul Global", porque "não parece existir uma
agenda mínima com que esses países pareçam concordar”.
“Os problemas estão aí
e não se pode negá-los, mas diante disso, qual seria a alternativa? Se
retirar?”, questiona Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Para o Brasil,
interessa o multilateralismo para aumentar seu peso e condição de negociação no
mundo. E, se não Lula, quem poderia ser este líder? Talvez (o primeiro-ministro
indiano Narendra) Modi, mas não há muitas opções."
Para Lopes, o que o
governo Lula tem tentado e seguirá tentando é “se credenciar como um
interlocutor confiável tanto do Sul como do Norte, ser um promotor e um fiador
de diálogos”.
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Musk, democracia e
Venezuela
É nesta posição que o
Brasil copatrocinará, junto com a Espanha, o evento Em defesa das
democracias, combatendo extremismos.
Quando foi pensado por
Lula e o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, o foco do evento era a
atuação da direita radical com milícias digitais, algo que preocupa as duas
administrações.
De acordo com um
auxiliar de Lula, o plano é que cada país apresente uma espécie de “cardápio de
soluções para lidar com a extrema direita e discursos de ódio”.
“Se a extrema direita
está todo o tempo se articulando internacionalmente, por que os democratas
também não deveriam fazê-lo?”, explica esse mesmo auxiliar.
Devem participar da
conversa os líderes de Chile, Boric, do Canadá, Justin Trudeau e da França,
Emmanuel Macron.
Em maior ou menor
grau, os três têm tido sua liderança doméstica colocada em xeque por movimentos
de direita em cada um desses países.
No caso do Brasil,
Lula deve salientar a recente contenda entre o bilionário dono da plataforma X, Elon Musk, e o
ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a derrubada de perfis que espalhariam falsas
notícias e a necessidade de representação legal da rede no Brasil.
A escalada da disputa
judicial culminou na decisão de Moraes de suspender o acesso ao X em todo o
país.
O governo Lula defende
que este é um exemplo exitoso de preservação da soberania nacional frente a
ataques extremistas externos, a despeito de críticas indiretas de países como
os Estados Unidos, que, por meio de sua embaixada em Brasília, salientaram a importância
da garantia à “liberdade de expressão” ao comentar o caso.
O assunto também deve
entrar no discurso de Lula, que, sem citar Musk, deixará claro que fala sobre o
bilionário.
“Seremos sempre
intolerantes com qualquer pessoa, tenha a fortuna que tiver, que desafie a
legislação brasileira”, disse Lula em pronunciamento oficial de rádio e TV por
ocasião do 7 de setembro.
O recente
aprofundamento da crise venezuelana, no entanto, que levou o candidato à
Presidência pela oposição, Edmundo Gonzalez, a pedir asilo na Espanha deve
forçar o tema na mesa do encontro, o que pode causar constrangimentos ao
Brasil.
“Se virar algo sobre a
Venezuela, acabou o evento”, afirmou à BBC News Brasil um embaixador brasileiro
com conhecimento do assunto.
Os diplomatas do
Brasil defendem que este não é o foro ideal para o assunto, mas admitem que é
possível que Sánchez tenha interesse de discutir possíveis ideias para a
questão da Venezuela, a serem tentadas ainda antes da posse de Maduro, marcada
para janeiro.
Auxiliares do
presidente defendem que Lula cite a situação da Venezuela em seu discurso no
plenário da Assembleia Geral da ONU, mas a intenção é que o modo como essa
menção acontecerá permita que o Brasil siga sustentando conversas tanto com
Maduro quanto com a oposição.
Ainda às margens da
ONU, o Brasil fará com a China uma reunião com cerca de 20 países do Sul
Global, entre os quais estariam Índia, África do Sul e Indonésia, para debater
opções para o fim da guerra entre Rússia e Ucrânia.
Nenhum dos dois países
envolvidos diretamente no conflito, no entanto, participará do evento, que
tampouco contará com a presença do próprio Lula.
Embora o presidente
tenha tentado exercer papel direto na mediação do conflito no ano passado, com declarações que foram alvo de críticas no Brasil e no exterior, não houve qualquer tipo de avanço
prático promovido pelo brasileiro no cenário.
·
Clinton e Gates
Além dos eventos
multilaterais nas Nações Unidas e às suas margens e de reuniões bilaterais com
Macron, Sánchez, o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz, o primeiro ministro
haitiano, Garry Conille e a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der
Leyen, este ano Lula optou por comparecer em dois eventos laterais, que lhe
conferem prestígio pessoal.
Ele discursará na
iniciativa Global Clinton, após convite feito por telefone, em agosto, pelo
ex-presidente americano Bill Clinton, que patrocina o evento.
E participará de um
talk-show com Bill Gates na premiação anual Goalkeepers, da Fundação Bill e
Melinda Gates, em que será laureado por seu trabalho em combater a fome.
Nos dois casos, ele
espera levantar doações para suas agendas ambiental e de combate à fome junto
aos bilionários americanos que circulam nesse tipo de evento.
E também enriquecer
seu portfólio como personalidade e líder global de expressão mundial.
Fonte: BBC News Brasil
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