terça-feira, 24 de setembro de 2024

Luciana V. Gatis: ‘O Brasil em chamas’

Ao longo de 21 anos de estudo na Amazonia, medindo CO2 (dióxido de carbono), CO (monóxido de carbono) e demais gases de efeito estufa, determinando as emissões e absorções destes gases na Amazônia e as emissões de queimadas, entendemos que existe uma correlação forte entre desmatamento, perda de chuva, aumento de temperatura e aumento de emissões de CO2. Para tal conclusão foram 14 anos de estudos, mais de mil voos com avião de pequeno porte, em quatro localidades da Amazônia, estrategicamente escolhidas para representar o ecossistema amazônico.

Com o objetivo de entender por que havia tanta variação entre um ano e outro, e entre uma região e outra, estudamos o que ocorreu para que uma região da floresta apresentasse emissões tão diferente de outra. Para tal estudamos 40 anos de chuva, temperatura e quanto cada área já havia sido desmatada. Descobrimos que quanto mais desmatada a região, maior a intensificação do estresse climático na região, ficando cada vez mais seca e quente, e a duração da estação seca mais longa. Esta situação afeta sua capacidade de absorver carbono. Esses efeitos ocorrem principalmente durante os meses de agosto, setembro e outubro, quando entra menos umidade do oceano para dentro da floresta.

A seca atual é também fruto desta intensificação do desmatamento a partir de 2019, não só na Amazônia, mas em todos os ecossistemas brasileiros. Observamos a partir deste ano que também ocorreu uma intensificação nos eventos extremos de chuva e seca no Brasil. A natureza, as florestas, matas fazem parte do controle climático e sua perda intensificada faz parte deste cenário de aceleração das mudanças climáticas no Brasil, que se somam às mudanças climáticas globais. Neste contexto, as atuais queimadas, não naturais, promovidas em período de seca intensa está causando grande perda vegetal e podemos afirmar que sofreremos uma intensificação das secas e eventos extremos ainda maiores no futuro. Este é o motivo do alarme e da enorme preocupação da comunidade científica.

Não é natural o atual enxame de queimadas que assola o país. Ignição natural de fogo pode ocorrer por raios e de forma acidental, que pode ocorrer por bitucas de cigarro jogadas, faísca elétrica etc. Mas esses acidentes não ocorreriam coincidentemente todos ao mesmo tempo no Brasil todo. A evidência de que são provocados está na totalidade da história de monitoramento de queimadas no Brasil. As queimadas se intensificaram no Brasil a partir de 15 de julho de 2024 (Figura 1), principalmente na Amazônia e Pantanal e um mês depois no cerrado e Mata Atlântica, somando 155 mil focos de queimada. Nos últimos 30 dias ocorreram 105.665 focos, concentrando 68% no último mês.

O ecossistema mais atingido é a Amazônia, onde sua floresta apresenta atualmente uma maior condição de queima devido ao desmatamento, promovendo secas cada vez mais intensas, acrescido da condição global dos 2 últimos anos agravando o cenário. Em 2023 tivemos tanto o El Nino extremo, como anomalia de temperaturas altas no Oceano Atlântico norte e neste ano, apesar de não haver mais o El Nino, persiste a anomalia no Oceano Atlântico norte, além do desmatamento promovendo redução de chuvas e aumento das temperaturas.

No dia 15 de setembro de 2024, durante entrevista na GloboNews, quando perguntada sobre as queimadas, ia comentar sobre as queimadas generalizadas pelo Brasil todo e ao mesmo tempo, e em larga escala, e como isto me lembrou do “dia do fogo” em 10 de agosto de 2019 e como se disseminou pela Amazônia, além de ter caído uma chuva preta em São Paulo alguns dias depois. Para falar de todos os ecossistemas comecei pelo estado de São Paulo, meu estado, que apresentou assustadores 1886 focos de queimada em um único dia: 23/08/2024. Me lembrei de quando vivia na região de Ribeirão Preto e São Carlos, e chovia fuligem devido a queimada da cana naquela época, pois o fogo era utilizado no processo da colheita. O que hoje em dia não acontece mais, para alívio dos pulmões de muitas centenas de milhares de moradores da região.

Em minha fala não identifiquei culpados em momento algum. Nem poderia, pois, nossos métodos de estudo se retêm ao número de focos de queimada, área queimada e emissões decorrentes delas, sem apontar ou responsabilizar pessoas físicas ou jurídicas. Tão pouco falei em nome do INPE, instituição onde sou cientista. Estava desenvolvendo meu raciocínio baseado nos estudos científicos que fazemos há 25 anos, quando a conexão da internet do hotel, onde me encontrava caiu. Comecei a frase sobre o governador Tarcísio anunciar em tão pouco tempo o auxílio financeiro antes que as investigações identificassem os culpados e as vítimas. Todas as vítimas merecem auxílio: tanto os grandes agricultores vitimados do incêndio, quanto os pequenos agricultores e sitiantes que tiveram suas propriedades queimadas e perdas na lavoura, animais etc. Assim como as pessoas que ficaram doentes e as famílias das pessoas que morreram, minha solidariedade sincera a todas as vitimas. Lamentável o Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo chamar uma cientista de criminosa, ao invés de colocar todos seus esforços em identificar todos os criminosos que promoveram, apenas no dia 23 de agosto de 2024, 1886 incêndios nas lavouras paulistas. Somando as ocorrências nos dias entre 22 e 24 foram 2621 focos de queimada.

Precisamos nos proteger das mudanças climáticas: plantar árvores, plantar árvores e plantar árvores. Além delas serem verdadeiras “fábricas de chuva”, “fábricas de água”, ainda reduzem a temperatura e nos protegem das ondas de calor e eventos extremos de chuvas torrenciais, e ainda retiram da atmosfera o CO2, o principal culpado pelas mudanças climáticas.     

 A situação atual nos mostra que este modelo econômico baseado em exportação de grãos, carnes e madeira nos coloca cada vez mais vulneráveis às mudanças climáticas, aos eventos extremos que tem matado muitos brasileiros. Precisamos desenvolver um modelo econômico viável nestes tempos de clima tão diferentes, e sabendo que será cada vez pior. Precisamos de produção de alimento em sistema de agrofloresta, onde ao mesmo tempo que produzimos alimentos, produzimos também chuva, baixamos a temperatura e retiramos CO2 da atmosfera. Nos dias atuais temos que nos unir para juntos desenvolvermos as soluções. Precisamos apagar os incêndios, tomar providências quanto aos que não têm nenhum compromisso com o coletivo, e somarmos forças para descobrirmos juntos como sobreviver em um Brasil, um planeta cada vez mais inóspito, devido às agressões cometidas contra o meio ambiente, contra a natureza.

 

•        O Brasil está sendo queimado. Por Renato Janine Ribeiro e Paulo Artaxo

Brasil está pegando fogo. Amazônia, Pantanal, Cerrado e estado de São Paulo queimando, e com 60% da área do Brasil embaixo de densa fumaça. Situação de calamidade e de emergência. Temos 2.848 cidades brasileiras em alerta para baixa umidade do ar, e milhares de cidades com péssima qualidade do ar, muito acima dos padrões recomendados pela legislação brasileira. Em 2024, já temos 205.815 focos de incêndios destruindo nossos ecossistemas, uma alta de 144% em relação a 2023, que já foi um ano de seca forte. Queimadas sempre ocorreram no País ao longo de pelo menos os últimos 30 anos, e elas eram fruto do desmatamento para abertura de novas áreas agrícolas e para pecuária no Cerrado e na Amazônia. Mas 2024 será lembrado como o ano em que esta questão superou os limites. A situação pode ser caracterizada como uma “pandemia” de incêndios florestais.

Estamos enfrentando a maior seca da história no Brasil e aumento drástico da temperatura. Importante salientar que não há registros de raios na região neste agosto e setembro, portanto estes incêndios são todos provocados pelo homem, sem autorização legal, já que o governo suspendeu todos os incêndios pré-autorizados. Ou seja, são incêndios criminosos. É fundamental a proibição completa do uso do fogo na agricultura brasileira.

São Paulo esteve esta semana no mapa da grande cidade mais poluída do mundo, por causa da fumaça dos incêndios sendo transportada a longa distância. Ao longo do caminho da Amazônia ao Sul do Brasil, há milhares de cidades, com seus milhões de habitantes expostos a níveis perigosos de poluição do ar.

É fundamental que o governo dê uma resposta sólida à sociedade, de ações concretas para que eventos como este não se repitam. Isso envolve uma série de ações que deveriam ter sido tomadas tempos atrás, pois a prevenção é a melhor estratégia em eventos como estes.

O presidente Lula anunciou nesta semana a criação do Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que terá 11 ministérios, além da participação de estados, municípios, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A sociedade brasileira espera que não seja somente mais um comitê multiministerial sem ações concretas para acabar com queimadas em nosso país. Precisamos reforçar em muito o sistema PREVFOGO do Ibama, e a articulação com estados e municípios, que estão mais próximos do problema. O combate ao fogo exige ações estruturais que envolvem os 3 poderes, estados e municípios.

Para enfrentar o crime organizado, que está na origem de muitos destes incêndios, é necessária uma ação concentrada do Ministério da Justiça. Isso envolve a criação de mutirões de agentes policiais federais e estaduais, atuando no combate ao crime organizado. O arcabouço legislativo precisa ser melhorado, pois as autorizações para queimadas são dadas pelos governos estaduais, muitos deles em mãos de governos que incentivam desmatamentos e queimadas. No próprio congresso nacional, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) trabalha pelo afrouxamento das regras do Código Florestal. Trabalha também contra a proteção dos mananciais, que são críticos na regulação do sistema hidrológico.

Lula também anunciou recentemente a criação do Estatuto Jurídico da Autoridade Climática, e um comitê técnico científico para guiar as medidas de combate à Mudança do Clima. Com isso, Lula pretende implementar estratégias baseadas em Ciência, e não em interesses políticos de governadores ou prefeitos da região.

Estamos observando uma forte aceleração das mudanças climáticas tanto no Brasil como em todo o planeta. Vimos que 2023 foi o ano mais quente dos últimos 125.000 anos. A seca na Amazônia em 2023 foi a mais forte em mais de cem anos, e a seca de 2024 promete ser tão forte quanto a de 2023. Estamos observando chuvas anormalmente intensas de modo muito mais frequentes. Estes eventos climáticos extremos trazem prejuízos enormes à população, principalmente a de baixa renda, e aos ecossistemas. Não por acaso, danos ambientais – como qualquer sorte de dano – prejudicam sempre os mais pobres.

Em julho de 2024, tivemos recordes seguidos de dias mais quentes da história. Com a atual exploração de combustíveis fósseis, estamos indo para uma trajetória de aquecimento global de 3 graus Celsius. Isso vai fazer que possamos ter saudades de 2024, já no futuro próximo. É fundamental o Brasil ter coerência no planejamento de seu futuro. Nosso País é um dos maiores produtores de petróleo do planeta, e planeja explorar petróleo até na foz do Amazonas. O governo anunciou que pretende asfaltar a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), que vai rasgar uma parte da Amazônia pelo meio. São ações que vão na contramão das ações necessárias para mitigar emissões de gases de efeito estufa e proteger o ecossistema amazônico.

O planeta está caminhando para um “ponto de não retorno” climático, e um programa de Estado brasileiro de longo prazo é necessário para nos adaptarmos ao clima que já mudou e que vai mudar ainda mais nos próximos anos e décadas. E temos que atuar internacionalmente para acabar com a exploração de combustíveis fósseis, que é a raiz do problema.

 

•        Fogo na mata é pedra cantada. Por Manuel Domingos Neto

Três ramos industriais muito rentáveis estiveram na aurora da modernidade: o metalúrgico, o naval e o açucareiro. Rivalizavam em sofisticação tecnológica e importância estratégica. A indústria açucareira nasceu globalizada e o teor energético do açúcar mudaria a condição alimentar da humanidade.

Para produzir açúcar além-mar o colonizador assassinou nativos, trouxe escravizados da África e tocou fogo na mata.

O engenho precisava de gado vacum como fonte proteica, força de tração e meio de transporte. O couro servia para mil aplicações. A cultura do tabaco e a extração do ouro também precisaram do boi.

Os sertões foram tomados pelos rebanhos. O colonizador dizimou povos originários e tocou fogo em bioma especialíssimo, favorável à reprodução humana. Na caatinga, o fogo era aceso antes das chuvas para o rápido florescimento de ramagem que engordasse o boi.

Centenas de espécies que ajudavam a nutrir a população sumiram para sempre. A drenagem natural das chuvas foi destroçada. Antigos bebedouros e nascentes desapareceram. No Ceará, já no final do século XVIII, o colonizador criara o maior rico seco do mundo, o Jaguaribe.

Na Europa, a indústria têxtil avançara no século XIX. Mais fogo na mata para produzir algodão.

Os ricos e civilizados aprenderam a beber café e, para produzi-lo, os colonizados continuaram tocando fogo na mata.

No Brasil, as cidades cresciam e demandavam proteína animal. Para a criação de bovinos, seja extensiva (em terras abertas) ou em espaços demarcados, tocava-se fogo na mata.

A reprodução dos rebanhos passou a depender de chapadas montanhosas e, sobretudo, do Vale do Parnaíba. Todos cantavam “o meu boi morreu, o que será de mim, vou mandar buscar outro, maninha, lá do Piauí”. Essa foi a primeira canção entoada de norte a sul do Brasil.

A agressão aos biomas mostraria suas consequências em 1877, quando eclodiu a maior crise humanitária da história do Brasil: meio milhão de pessoas morreram de fome, sede e peste. A população brasileira girava em torno de dez milhões.

Não fosse o refrigério do Vale do Parnaíba, onde havia água, peixe, carne, mel e frutas nativas, a mortandade seria maior. Meio século se passara desde que dois cientistas austríacos descreveram o Piauí como a Suíça brasileira.

Os países industrializados precisaram de cera de carnaúba, óleos vegetais e borracha natural. A exploração avançou nos biomas do Meio Norte e na Amazônia. As divisas resultantes beneficiariam a industrialização concentrada no Sudeste, observou Celso Furtado.

A Ditadura Militar empenhou-se em garantir a venda das riquezas naturais. Abriu estradas na floresta e ofertou grandes glebas ao estrangeiro.

Os governos democráticos persistiram com igual orientação, agora entregando a mata aos monocultores e mineradores. As velhas práticas de dizimação dos povos originários persistiram. Além de fogo, o mato foi atingido por produtos químicos.

A defesa ambiental entrou em pauta há décadas sem que houvesse revisão do modelo agrícola basicamente definido na colonização. O Estado apoiou os agroexportadores.

Essa de “celeiro do mundo” é roubada. O lucro não fica aqui. Vai para o estrangeiro que controla as finanças e o comércio internacional. Beneficia quem produz máquinas e insumos agrícolas.

A agricultura moderna não gera empregos no campo: gera demandas à indústria. No caso brasileiro, não beneficia nem o campo nem a cidade.

Monocultura para exportação é desgraça. Incendeia a mata, empobrece o ambiente e prepara calamidades. Enriquece poucos e deixa o povo sem arrimo. O Piauí, que forneceu proteína para boa parte dos brasileiros, hoje bebe leite de São Paulo.

Desastre ambiental não é emergência, é rotina histórica, velha como a colonização; é traço permanente da economia agrícola prioritariamente voltada para a demanda externa.

Há quem diga que os incêndios de hoje são criminosos, provocados para atingir Lula. Assim, encobre-se perversidade secular. Que os bandidos sejam presos, mas não vale esquecer que o crime maior é o tipo de agricultura incentivado pelo Estado.

Não há plano de combate ao fogo que dê jeito. Nem programa de defesa ambiental que atenue a perda da biodiversidade ou programa assistencial que tire da penúria milhões de famintos de hoje e de amanhã.

O que precisamos é de uma agricultura que produza comida farta, barata, diversificada, saudável e que não nos jogue fumaça nos olhos.

Onde se viu governo progressista bater palmas para o MATOPIBA?

O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda.

 

Fonte: A Terra é Redonda/IHU

 

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