Luciana V. Gatis: ‘O Brasil em chamas’
Ao longo de 21 anos de
estudo na Amazonia, medindo CO2 (dióxido de carbono), CO (monóxido de carbono)
e demais gases de efeito estufa, determinando as emissões e absorções destes
gases na Amazônia e as emissões de queimadas, entendemos que existe uma correlação
forte entre desmatamento, perda de chuva, aumento de temperatura e aumento de
emissões de CO2. Para tal conclusão foram 14 anos de estudos, mais de mil voos
com avião de pequeno porte, em quatro localidades da Amazônia, estrategicamente
escolhidas para representar o ecossistema amazônico.
Com o objetivo de
entender por que havia tanta variação entre um ano e outro, e entre uma região
e outra, estudamos o que ocorreu para que uma região da floresta apresentasse
emissões tão diferente de outra. Para tal estudamos 40 anos de chuva, temperatura
e quanto cada área já havia sido desmatada. Descobrimos que quanto mais
desmatada a região, maior a intensificação do estresse climático na região,
ficando cada vez mais seca e quente, e a duração da estação seca mais longa.
Esta situação afeta sua capacidade de absorver carbono. Esses efeitos ocorrem
principalmente durante os meses de agosto, setembro e outubro, quando entra
menos umidade do oceano para dentro da floresta.
A seca atual é também
fruto desta intensificação do desmatamento a partir de 2019, não só na
Amazônia, mas em todos os ecossistemas brasileiros. Observamos a partir deste
ano que também ocorreu uma intensificação nos eventos extremos de chuva e seca
no Brasil. A natureza, as florestas, matas fazem parte do controle climático e
sua perda intensificada faz parte deste cenário de aceleração das mudanças
climáticas no Brasil, que se somam às mudanças climáticas globais. Neste
contexto, as atuais queimadas, não naturais, promovidas em período de seca
intensa está causando grande perda vegetal e podemos afirmar que sofreremos uma
intensificação das secas e eventos extremos ainda maiores no futuro. Este é o
motivo do alarme e da enorme preocupação da comunidade científica.
Não é natural o atual
enxame de queimadas que assola o país. Ignição natural de fogo pode ocorrer por
raios e de forma acidental, que pode ocorrer por bitucas de cigarro jogadas,
faísca elétrica etc. Mas esses acidentes não ocorreriam coincidentemente todos
ao mesmo tempo no Brasil todo. A evidência de que são provocados está na
totalidade da história de monitoramento de queimadas no Brasil. As queimadas se
intensificaram no Brasil a partir de 15 de julho de 2024 (Figura 1),
principalmente na Amazônia e Pantanal e um mês depois no cerrado e Mata
Atlântica, somando 155 mil focos de queimada. Nos últimos 30 dias ocorreram
105.665 focos, concentrando 68% no último mês.
O ecossistema mais
atingido é a Amazônia, onde sua floresta apresenta atualmente uma maior
condição de queima devido ao desmatamento, promovendo secas cada vez mais
intensas, acrescido da condição global dos 2 últimos anos agravando o cenário.
Em 2023 tivemos tanto o El Nino extremo, como anomalia de temperaturas altas no
Oceano Atlântico norte e neste ano, apesar de não haver mais o El Nino,
persiste a anomalia no Oceano Atlântico norte, além do desmatamento promovendo
redução de chuvas e aumento das temperaturas.
No dia 15 de setembro
de 2024, durante entrevista na GloboNews, quando perguntada sobre as queimadas,
ia comentar sobre as queimadas generalizadas pelo Brasil todo e ao mesmo tempo,
e em larga escala, e como isto me lembrou do “dia do fogo” em 10 de agosto de
2019 e como se disseminou pela Amazônia, além de ter caído uma chuva preta em
São Paulo alguns dias depois. Para falar de todos os ecossistemas comecei pelo
estado de São Paulo, meu estado, que apresentou assustadores 1886 focos de
queimada em um único dia: 23/08/2024. Me lembrei de quando vivia na região de
Ribeirão Preto e São Carlos, e chovia fuligem devido a queimada da cana naquela
época, pois o fogo era utilizado no processo da colheita. O que hoje em dia não
acontece mais, para alívio dos pulmões de muitas centenas de milhares de
moradores da região.
Em minha fala não
identifiquei culpados em momento algum. Nem poderia, pois, nossos métodos de
estudo se retêm ao número de focos de queimada, área queimada e emissões
decorrentes delas, sem apontar ou responsabilizar pessoas físicas ou jurídicas.
Tão pouco falei em nome do INPE, instituição onde sou cientista. Estava
desenvolvendo meu raciocínio baseado nos estudos científicos que fazemos há 25
anos, quando a conexão da internet do hotel, onde me encontrava caiu. Comecei a
frase sobre o governador Tarcísio anunciar em tão pouco tempo o auxílio
financeiro antes que as investigações identificassem os culpados e as vítimas.
Todas as vítimas merecem auxílio: tanto os grandes agricultores vitimados do
incêndio, quanto os pequenos agricultores e sitiantes que tiveram suas
propriedades queimadas e perdas na lavoura, animais etc. Assim como as pessoas
que ficaram doentes e as famílias das pessoas que morreram, minha solidariedade
sincera a todas as vitimas. Lamentável o Secretário da Agricultura do Estado de
São Paulo chamar uma cientista de criminosa, ao invés de colocar todos seus
esforços em identificar todos os criminosos que promoveram, apenas no dia 23 de
agosto de 2024, 1886 incêndios nas lavouras paulistas. Somando as ocorrências
nos dias entre 22 e 24 foram 2621 focos de queimada.
Precisamos nos
proteger das mudanças climáticas: plantar árvores, plantar árvores e plantar
árvores. Além delas serem verdadeiras “fábricas de chuva”, “fábricas de água”,
ainda reduzem a temperatura e nos protegem das ondas de calor e eventos
extremos de chuvas torrenciais, e ainda retiram da atmosfera o CO2, o principal
culpado pelas mudanças climáticas.
A situação atual nos mostra que este modelo
econômico baseado em exportação de grãos, carnes e madeira nos coloca cada vez
mais vulneráveis às mudanças climáticas, aos eventos extremos que tem matado
muitos brasileiros. Precisamos desenvolver um modelo econômico viável nestes
tempos de clima tão diferentes, e sabendo que será cada vez pior. Precisamos de
produção de alimento em sistema de agrofloresta, onde ao mesmo tempo que
produzimos alimentos, produzimos também chuva, baixamos a temperatura e
retiramos CO2 da atmosfera. Nos dias atuais temos que nos unir para juntos
desenvolvermos as soluções. Precisamos apagar os incêndios, tomar providências
quanto aos que não têm nenhum compromisso com o coletivo, e somarmos forças
para descobrirmos juntos como sobreviver em um Brasil, um planeta cada vez mais
inóspito, devido às agressões cometidas contra o meio ambiente, contra a
natureza.
• O Brasil está sendo queimado. Por Renato
Janine Ribeiro e Paulo Artaxo
Brasil está pegando
fogo. Amazônia, Pantanal, Cerrado e estado de São Paulo queimando, e com 60% da
área do Brasil embaixo de densa fumaça. Situação de calamidade e de emergência.
Temos 2.848 cidades brasileiras em alerta para baixa umidade do ar, e milhares
de cidades com péssima qualidade do ar, muito acima dos padrões recomendados
pela legislação brasileira. Em 2024, já temos 205.815 focos de incêndios
destruindo nossos ecossistemas, uma alta de 144% em relação a 2023, que já foi
um ano de seca forte. Queimadas sempre ocorreram no País ao longo de pelo menos
os últimos 30 anos, e elas eram fruto do desmatamento para abertura de novas
áreas agrícolas e para pecuária no Cerrado e na Amazônia. Mas 2024 será
lembrado como o ano em que esta questão superou os limites. A situação pode ser
caracterizada como uma “pandemia” de incêndios florestais.
Estamos enfrentando a
maior seca da história no Brasil e aumento drástico da temperatura. Importante
salientar que não há registros de raios na região neste agosto e setembro,
portanto estes incêndios são todos provocados pelo homem, sem autorização legal,
já que o governo suspendeu todos os incêndios pré-autorizados. Ou seja, são
incêndios criminosos. É fundamental a proibição completa do uso do fogo na
agricultura brasileira.
São Paulo esteve esta
semana no mapa da grande cidade mais poluída do mundo, por causa da fumaça dos
incêndios sendo transportada a longa distância. Ao longo do caminho da Amazônia
ao Sul do Brasil, há milhares de cidades, com seus milhões de habitantes expostos
a níveis perigosos de poluição do ar.
É fundamental que o
governo dê uma resposta sólida à sociedade, de ações concretas para que eventos
como este não se repitam. Isso envolve uma série de ações que deveriam ter sido
tomadas tempos atrás, pois a prevenção é a melhor estratégia em eventos como
estes.
O presidente Lula
anunciou nesta semana a criação do Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo,
que terá 11 ministérios, além da participação de estados, municípios, Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A sociedade
brasileira espera que não seja somente mais um comitê multiministerial sem
ações concretas para acabar com queimadas em nosso país. Precisamos reforçar em
muito o sistema PREVFOGO do Ibama, e a articulação com estados e municípios,
que estão mais próximos do problema. O combate ao fogo exige ações estruturais
que envolvem os 3 poderes, estados e municípios.
Para enfrentar o crime
organizado, que está na origem de muitos destes incêndios, é necessária uma
ação concentrada do Ministério da Justiça. Isso envolve a criação de mutirões
de agentes policiais federais e estaduais, atuando no combate ao crime organizado.
O arcabouço legislativo precisa ser melhorado, pois as autorizações para
queimadas são dadas pelos governos estaduais, muitos deles em mãos de governos
que incentivam desmatamentos e queimadas. No próprio congresso nacional, a
Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) trabalha pelo afrouxamento das regras
do Código Florestal. Trabalha também contra a proteção dos mananciais, que são
críticos na regulação do sistema hidrológico.
Lula também anunciou
recentemente a criação do Estatuto Jurídico da Autoridade Climática, e um
comitê técnico científico para guiar as medidas de combate à Mudança do Clima.
Com isso, Lula pretende implementar estratégias baseadas em Ciência, e não em
interesses políticos de governadores ou prefeitos da região.
Estamos observando uma
forte aceleração das mudanças climáticas tanto no Brasil como em todo o
planeta. Vimos que 2023 foi o ano mais quente dos últimos 125.000 anos. A seca
na Amazônia em 2023 foi a mais forte em mais de cem anos, e a seca de 2024
promete ser tão forte quanto a de 2023. Estamos observando chuvas anormalmente
intensas de modo muito mais frequentes. Estes eventos climáticos extremos
trazem prejuízos enormes à população, principalmente a de baixa renda, e aos
ecossistemas. Não por acaso, danos ambientais – como qualquer sorte de dano –
prejudicam sempre os mais pobres.
Em julho de 2024,
tivemos recordes seguidos de dias mais quentes da história. Com a atual
exploração de combustíveis fósseis, estamos indo para uma trajetória de
aquecimento global de 3 graus Celsius. Isso vai fazer que possamos ter saudades
de 2024, já no futuro próximo. É fundamental o Brasil ter coerência no
planejamento de seu futuro. Nosso País é um dos maiores produtores de petróleo
do planeta, e planeja explorar petróleo até na foz do Amazonas. O governo
anunciou que pretende asfaltar a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), que vai
rasgar uma parte da Amazônia pelo meio. São ações que vão na contramão das
ações necessárias para mitigar emissões de gases de efeito estufa e proteger o
ecossistema amazônico.
O planeta está
caminhando para um “ponto de não retorno” climático, e um programa de Estado
brasileiro de longo prazo é necessário para nos adaptarmos ao clima que já
mudou e que vai mudar ainda mais nos próximos anos e décadas. E temos que atuar
internacionalmente para acabar com a exploração de combustíveis fósseis, que é
a raiz do problema.
• Fogo na mata é pedra cantada. Por Manuel
Domingos Neto
Três ramos industriais
muito rentáveis estiveram na aurora da modernidade: o metalúrgico, o naval e o
açucareiro. Rivalizavam em sofisticação tecnológica e importância estratégica.
A indústria açucareira nasceu globalizada e o teor energético do açúcar mudaria
a condição alimentar da humanidade.
Para produzir açúcar
além-mar o colonizador assassinou nativos, trouxe escravizados da África e
tocou fogo na mata.
O engenho precisava de
gado vacum como fonte proteica, força de tração e meio de transporte. O couro
servia para mil aplicações. A cultura do tabaco e a extração do ouro também
precisaram do boi.
Os sertões foram
tomados pelos rebanhos. O colonizador dizimou povos originários e tocou fogo em
bioma especialíssimo, favorável à reprodução humana. Na caatinga, o fogo era
aceso antes das chuvas para o rápido florescimento de ramagem que engordasse o
boi.
Centenas de espécies
que ajudavam a nutrir a população sumiram para sempre. A drenagem natural das
chuvas foi destroçada. Antigos bebedouros e nascentes desapareceram. No Ceará,
já no final do século XVIII, o colonizador criara o maior rico seco do mundo, o
Jaguaribe.
Na Europa, a indústria
têxtil avançara no século XIX. Mais fogo na mata para produzir algodão.
Os ricos e civilizados
aprenderam a beber café e, para produzi-lo, os colonizados continuaram tocando
fogo na mata.
No Brasil, as cidades
cresciam e demandavam proteína animal. Para a criação de bovinos, seja
extensiva (em terras abertas) ou em espaços demarcados, tocava-se fogo na mata.
A reprodução dos
rebanhos passou a depender de chapadas montanhosas e, sobretudo, do Vale do
Parnaíba. Todos cantavam “o meu boi morreu, o que será de mim, vou mandar
buscar outro, maninha, lá do Piauí”. Essa foi a primeira canção entoada de
norte a sul do Brasil.
A agressão aos biomas
mostraria suas consequências em 1877, quando eclodiu a maior crise humanitária
da história do Brasil: meio milhão de pessoas morreram de fome, sede e peste. A
população brasileira girava em torno de dez milhões.
Não fosse o refrigério
do Vale do Parnaíba, onde havia água, peixe, carne, mel e frutas nativas, a
mortandade seria maior. Meio século se passara desde que dois cientistas
austríacos descreveram o Piauí como a Suíça brasileira.
Os países
industrializados precisaram de cera de carnaúba, óleos vegetais e borracha
natural. A exploração avançou nos biomas do Meio Norte e na Amazônia. As
divisas resultantes beneficiariam a industrialização concentrada no Sudeste,
observou Celso Furtado.
A Ditadura Militar
empenhou-se em garantir a venda das riquezas naturais. Abriu estradas na
floresta e ofertou grandes glebas ao estrangeiro.
Os governos
democráticos persistiram com igual orientação, agora entregando a mata aos
monocultores e mineradores. As velhas práticas de dizimação dos povos
originários persistiram. Além de fogo, o mato foi atingido por produtos
químicos.
A defesa ambiental
entrou em pauta há décadas sem que houvesse revisão do modelo agrícola
basicamente definido na colonização. O Estado apoiou os agroexportadores.
Essa de “celeiro do
mundo” é roubada. O lucro não fica aqui. Vai para o estrangeiro que controla as
finanças e o comércio internacional. Beneficia quem produz máquinas e insumos
agrícolas.
A agricultura moderna
não gera empregos no campo: gera demandas à indústria. No caso brasileiro, não
beneficia nem o campo nem a cidade.
Monocultura para
exportação é desgraça. Incendeia a mata, empobrece o ambiente e prepara
calamidades. Enriquece poucos e deixa o povo sem arrimo. O Piauí, que forneceu
proteína para boa parte dos brasileiros, hoje bebe leite de São Paulo.
Desastre ambiental não
é emergência, é rotina histórica, velha como a colonização; é traço permanente
da economia agrícola prioritariamente voltada para a demanda externa.
Há quem diga que os
incêndios de hoje são criminosos, provocados para atingir Lula. Assim,
encobre-se perversidade secular. Que os bandidos sejam presos, mas não vale
esquecer que o crime maior é o tipo de agricultura incentivado pelo Estado.
Não há plano de
combate ao fogo que dê jeito. Nem programa de defesa ambiental que atenue a
perda da biodiversidade ou programa assistencial que tire da penúria milhões de
famintos de hoje e de amanhã.
O que precisamos é de
uma agricultura que produza comida farta, barata, diversificada, saudável e que
não nos jogue fumaça nos olhos.
Onde se viu governo
progressista bater palmas para o MATOPIBA?
O Brasil precisa de um
tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente,
inclusive em importantes parcelas da esquerda.
Fonte: A Terra é
Redonda/IHU
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