EUA: As eleições vistas pela China
Perguntado sobre qual
dos candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro próximo
seria melhor (ou pior) para a China, Zhao Minghao, professor do Instituto de
Estudos Internacionais e Centro de Estudos Americanos da Universidade Fudan,
afirmou que “Trump e Kamala Harris são duas tigelas de veneno para Pequim.” (Financial
Times, 26/8/2024).
O problema é que,
parafraseando o que Mário Henrique Simonsen disse sobre inflação e câmbio,
existem venenos que aleijam e outros que matam. Muito embora a China seja o
saco de pancadas preferido tanto de republicanos e democratas e um dos pontos
em que as discordâncias entre ambos sejam mais de forma do que conteúdo, o fato
é que há diferenças nas propostas dos dois candidatos em relação à China que
precisam ser levadas em conta. Se tais diferenças nos discursos irão resultar
em linhas de ação muito diferentes já é outra questão.
Começando pelos
discursos de Trump e Kamala nas respectivas convenções que os sacramentaram
como candidatos de seus respectivos partidos para as eleições de novembro, é
importante notar que Kamala fez uma única menção à China ao passo que Trump
mencionou a China 14 vezes. Segundo o Financial Times (26/08/2024),
“Harris mencionou a China apenas uma vez em seu discurso na convenção
democrata, prometendo garantir ‘que a América — não a China — vença a
competição pelo século XXI’”. Trump, por outro lado, referiu-se à China 14
vezes na Convenção Nacional Republicana no mês passado, incluindo a bazófia de
que ele havia mantido Pequim “à distância” durante sua presidência e lamentando
a perda da Base Aérea de Bagram no Afeganistão, que alegou estar “a uma hora de
distância de onde a China fabrica suas armas nucleares”, uma ameaça implícita.
A desistência de Biden
e sua substituição por Kamala Harris como candidata do Partido Democrata para
as eleições de novembro pegou todo mundo de surpresa e há pouca informação
sobre o que ela pensa ou pretende fazer em relação à China, ao passo que todos
sabem o que Trump pensa sobre o assunto. O que cada um fará, caso seja eleito,
entretanto, depende de uma série de fatores.
Trump tem dito que
elevará as tarifas de importação dos produtos chineses para 60%. Na prática
isso equivale a fechar o mercado norte-americano para produtos chineses. Se, de
um lado, a medida poderia causar algum impacto na economia chinesa, por outro lado
é difícil imaginar os Estados Unidos abrindo mão de uma hora para outra de tudo
que importa da China. Muito do que os Estados Unidos importam de empresas
chinesas eles não produzem internamente e nem possuem fornecedores
alternativos. Os Estados Unidos importaram US$ 427 bilhões em bens da China em
2023. Basta imaginar o quanto uma tarifa de 60% sobre essas importações
impactaria na inflação nos Estados Unidos e no bolso dos consumidores
norte-americanos.
É preciso considerar
ainda que não há consenso sobre o assunto entre republicanos. A ala mais
tradicional dos republicanos é avessa a tarifas de importação elevadas,
enquanto Trump e alguns dos seus assessores diretos são protecionistas
radicais. Apesar de as empresas norte-americanas que competem com as
importações chinesas serem a favor de tarifas de importação mais altas, a
maioria das grandes corporações com sede nos Estados Unidos não pode abrir mão
do mercado chinês e não vê com bons olhos uma escalada protecionista.
Segundo a agência
Reuters (26/08/2024), desde que o presidente Joe Biden anunciou, em maio, uma
quadruplicação das tarifas sobre veículos elétricos chineses para 100%, uma
duplicação dos impostos sobre semicondutores e células solares para 50%, bem
como novas tarifas de 25% sobre baterias de íons de lítio e outros bens
estratégicos, incluindo aço, para proteger as empresas americanas do excesso de
produção chinesa, mais de 1.100 comentários públicos foram postados no site do
USTR (Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, o equivalente
ao Ministério do Comércio) expressando preocupações com os aumentos de custos
gerados pelas novas tarifas. Até o momento a aplicação das novas tarifas vem
sendo adiada, o que revela falta de consenso sobre o assunto.
Kamala Harris, por seu
turno, também não renunciará às tarifas. Apesar de todas as críticas que fez a
Trump, Joe Biden não só manteve as tarifas que Trump impôs à China na guerra
comercial iniciada em 2018, como acrescentou novas restrições. Não haveria por
que pensar que com Kamala Harris seria diferente, sobretudo se ela mantiver
cuidando do assunto as mesmas pessoas que estiveram a cargo disso no governo
Biden, como o secretário de Estado Antony Blinken, seu vice Kurt Campbell e o
conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, bem como outros altos
funcionários que foram fundamentais para políticas agressivas em relação à
China. Mas dificilmente um eventual governo de Kamala Harris adotaria uma
tarifa de 60% como Trump diz que vai fazer. Possivelmente recorreria a tarifas
específicas sobre determinados produtos, de acordo com a política industrial
implementada pelo governo Biden, como já vem ocorrendo.
A respeito dessa
questão o Wall Street Journal (13/08/2024) afirma o seguinte:
“Patrick Zweifel, economista-chefe da Pictet Asset Management, estima que, se a
presidência de Kamala Harris mantiver a política tarifária mais seletiva do
governo Biden, poderá reduzir talvez 0,03 ponto percentual do crescimento
econômico chinês no próximo ano. Ao aumentar as tarifas para 60% sobre todos os
produtos chineses, como Trump propôs, o impacto seria muito maior, talvez em
1,4 ponto percentual, o que, em suas previsões, reduziria o crescimento [da
China] em 2025 para cerca de 3,4%, de 4,8% esperados. O UBS estima que as
tarifas de 60% sobre as importações norte-americanas de produtos chineses
impediriam o crescimento do PIB em cerca de 2,5 pontos percentuais nos 12 meses
após a imposição, embora o arrasto possa ser de apenas 1,5 ponto percentual se
a China tomar ações compensatórias. Entre essas ações os formuladores de
políticas chineses poderiam deixar sua moeda enfraquecer ainda mais, estender
descontos de impostos e outras vantagens aos exportadores e reduzir as taxas de
juros. Eles poderiam tentar forçar os EUA a reconsiderar, retaliando como
aumentar as tarifas sobre produtos dos EUA, reter o fornecimento de minerais
críticos e possivelmente vender ativos dos EUA, como títulos do Tesouro, de
acordo com o Goldman Sachs.”
Visto de conjunto,
apesar da convergência bipartidária em relação à China, considerada tanto por
republicanos e democratas como uma “potência revisionista”, um competidor
estratégico e uma ameaça para o american way of live, certamente a
política externa de Harris em relação à China seria de gerenciamento das
relações bilaterais por meio dos canais diplomáticos convencionais. Já
para Trump, o objetivo seria o de “vencer” a China em uma nova guerra fria, o
que certamente o levaria a desprezar a diplomacia tradicional e partir para
ações intempestivas cujas consequências poderiam ser catastróficas, sobretudo
se envolvessem Taiwan e o Mar do Sul da China.
Nunca é demais lembrar
que se o “pivô para China” foi uma ideia do democrata Obama, as ações recentes
mais abertamente anti-China foram iniciadas no governo Trump. De acordo com
o Financial Times (21/8/2024), “Durante seu primeiro mandato,
Trump reviveu a aliança Quad com Japão, Austrália e Índia, promulgou a Lei de
Viagens de Taiwan, permitindo que funcionários de alto nível de cada país a
visitassem e iniciou hostilidades comerciais contra a China. Outros apontaram
para o antagonismo de Trump em relação a Pequim sobre a pandemia de Covid-19,
que ele rotulou de “vírus da China”.”
Em artigo publicado
na Foreign Affairs (01/08/2024) intitulado “Does China
Prefer Harris or Trump? Why Chinese Strategists See Little Difference Between
the Two”, três acadêmicos da Universidade de Pequim (Wang Jisi, Hu
Ran, and Zhao Jianwei) afirmam que “Começando com o comércio, o governo Trump
iniciou com tarifas punitivas sobre as importações chinesas e depois expandiu
sua campanha para incluir maior escrutínio e restrições aos investimentos
chineses, controles de exportação de alta tecnologia mais rígidos e ações
direcionadas contra empresas chinesas específicas com grandes presenças no
exterior, como a Huawei. Em questões de segurança, o governo Trump também tomou
novas medidas para manter a supremacia dos EUA no que os estrategistas agora
chamam consistentemente de região ‘Indo-Pacífico’, um termo geográfico que
havia sido usado apenas ocasionalmente antes. O governo Trump deu a Taiwan
garantias especiais de segurança e minimizou a política de longa data de ‘uma
China’; colocou novos recursos no Quad (o agrupamento da Austrália, Índia,
Japão e Estados Unidos) em um esforço para equilibrar coletivamente a China; e
intensificou as atividades militares dos EUA no Pacífico Ocidental para
desafiar as reivindicações territoriais da China.”
Afirmam ainda que
“Quanto à relação política entre os Estados Unidos e a China, Trump não tinha
visões rigidamente ideológicas sobre o sistema e a liderança chineses, mas
permitiu que seus funcionários do governo e o Congresso dos EUA criticassem
estridentemente o partido governante da China e sua governança doméstica,
particularmente suas políticas em relação a Xinjiang e Hong Kong. E como seu
governo adotou uma narrativa mais ampla de ‘ameaça da China’, prejudicou
gravemente os intercâmbios acadêmicos, científicos e sociais que existiam há
décadas entre os dois países. Na diplomacia multilateral, Washington também
começou a demonizar Pequim e a contrariar fortemente sua influência
internacional, tentando restringir o papel global em expansão da China em sua
Iniciativa do Cinturão e Rota e em seu crescente envolvimento nos órgãos das
Nações Unidas.”
Já com relação a
Biden, afirma: “Biden trabalhou em estreita colaboração com o Congresso para
implementar investimentos em infraestrutura em larga escala e políticas
industriais destinadas a tornar os Estados Unidos mais competitivos e menos
dependentes da China. Para competir melhor em tecnologias avançadas, o governo
Biden também buscou controles de exportação mais rígidos, novas tarifas sobre
os produtos de tecnologia verde da China e esforços internacionais mais
coordenados, como a aliança Chip 4 – uma parceria de semicondutores entre
Japão, Coreia, Taiwan e Estados Unidos. Na Ásia-Pacífico, o governo Biden
intensificou sua presença militar no Estreito de Taiwan e no Mar da China
Meridional e acrescentou uma dimensão econômica regional às alianças de segurança
asiáticas dos Estados Unidos. Biden também reuniu líderes do G-7 para
impulsionar a iniciativa Build Back Better World e a Parceria para
Infraestrutura e Investimento Global – ambas destinadas a fornecer uma resposta
ocidental à Iniciativa do Cinturão e Rota da China. Motivado pelos crescentes
laços da China com a Rússia em meio à guerra na Ucrânia, o governo Biden impôs
sanções às empresas chinesas que negociam com a Rússia. Washington também deu à
disputa com a China uma nova camada de ideologia – o que o governo chama de
“democracia versus autocracia” – em um esforço para construir uma grande
aliança contra Pequim.”
Um outro fato que
talvez possa influir nas relações com a China, ainda que indiretamente, num
eventual governo de Kamala Harris, é o seu vice, Tim Walz, ter uma longa
história de interação com aquele país, ainda que de forma nem sempre amigável.
Conhecer bem a China não significa necessariamente ser amigo da China.
Conforme informou o Financial
Times (21/8), “Walz viveu na China como um jovem professor, não como
diplomata, e voltou dezenas de vezes ao longo de sua vida adulta, primeiro como
instrutor para estudantes americanos interessados na China e depois como
político (…) Ainda assim, a conexão de Walz com o país vai além do turista
americano normal. Antes de ser eleito para o Congresso, Walz e sua esposa
dirigiam uma empresa que trazia estudantes americanos para a China.”
Ainda segundo o
jornal, “No Congresso, Walz assumiu posições que incomodaram Pequim, incluindo
o apoio ao ativista democrático de Hong Kong Joshua Wong. Quando Wong foi
preso, em 2017, por seu envolvimento na ‘revolução dos guarda-chuvas’ de Hong
Kong, Walz twittou uma selfie que eles haviam tirado em Washington um ano
antes, junto com uma citação de Wong: “Você pode trancar nossos corpos, mas não
nossas mentes!”.
No mencionado artigo
da Foreing Affairs, os autores concluem que “no geral, do ponto de vista
chinês, as políticas chinesas de um novo governo Trump e de um governo Harris
provavelmente serão estrategicamente consistentes. Como presidentes, ambos os
candidatos apresentariam desafios e desvantagens para a China, e nenhum deles
parece querer um grande conflito militar ou cortar todos os contatos econômicos
e sociais. Portanto, é improvável que Pequim tenha uma preferência clara. Além
disso, a China tem fortes incentivos para manter um relacionamento estável com
os Estados Unidos e evitar confrontos ou grandes interrupções. Dadas as
sensibilidades políticas em relação à eleição e às relações EUA-China, qualquer
ação chinesa para interferir provavelmente sairia pela culatra.” Trata-se de
uma posição sensata da China e coerente com seus cinco princípios de política
externa baseados na não-interferência em questões internas de outros países.
¨ Áudio de Biden vaza quando líder fala sobre Xi: 'Quer espaço
para buscar interesses agressivamente'
O presidente Joe Biden
foi flagrado dizendo que a "China está testando" os Estados Unidos e
seus aliados na região do Indo-Pacífico durante uma cúpula de líderes do Quad
neste final de semana — mesmo com os membros do bloco, em seus comentários
públicos, evitando a ideia de que eles são um contrapeso à influência chinesa.
Os líderes do Diálogo
de Segurança Quadrilateral (também conhecido como Quad), Biden e os
primeiros-ministros de Índia, Japão e Austrália, Narendra Modi, Fumio Kishida e
Anthony Albanese, respectivamente, deram início à reunião com palavras
calorosas para seus colegas e nenhuma menção explícita ao rival regional.
No entanto, assim que
os repórteres foram escoltados para fora da sala, eles se voltaram para seu
primeiro tópico: a China, escreve a Bloomberg.
"Acreditamos que
Xi Jinping está buscando focar nos desafios econômicos domésticos e minimizar a
turbulência na China. [...] Xi está buscando comprar para si algum espaço
diplomático, na minha opinião, para perseguir agressivamente os interesses da
China", afirmou Biden aos líderes sobre seu homólogo chinês em comentários
de abertura no sábado (21), uma parte dos quais foi publicada pelo feed de
áudio oficial em um aparente erro, diz a mídia.
O presidente
norte-americano acrescentou que "a China continua a se comportar
agressivamente, testando-nos em toda a região" em várias frentes,
"incluindo em questões econômicas e tecnológicas. Ao mesmo tempo,
acreditamos que uma competição intensa requer uma diplomacia intensa",
afirmou o mandatário.
Contudo, líderes e
autoridades minimizaram publicamente a ideia de que o foco da cúpula está em
Pequim, relata a Bloomberg.
"A China não é o
foco do Quad e o Quad não é sobre um país, é sobre uma visão maior na qual
estamos tentando trabalhar", disse o secretário de Segurança Nacional dos
EUA, Jake Sullivan, a repórteres ontem (21).
Nos comentários
públicos de abertura da reunião, os líderes evitaram menções específicas ao
gigante asiático, mas fizeram alusão às tensões regionais.
"Não somos contra
ninguém. Todos nós apoiamos uma ordem internacional baseada em regras, respeito
pela soberania e integridade territorial e resolução pacífica de todas as
disputas", afirmou.
Albanese disse que a
promessa da região Indo-Pacífico "depende da paz e estabilidade contínuas
e da gestão sábia da competição estratégica e das disputas".
Fonte: Portal Vermelho/Sputnik
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário