terça-feira, 24 de setembro de 2024

Investigação aponta policiais como donos de garimpos de ouro em terra indígena

NAS REDES SOCIAIS, o garimpeiro Raí Souza Lima ostentava uma vida de riqueza pelo mundo, dirigindo carros de luxo e carregando sacolas de compras em Nova York, Londres e Amsterdã. Mas, em setembro de 2023, Lima foi assassinado dentro de uma van em Redenção, no sul do Pará. Foi alvejado por vários tiros, um deles próximo ao olho esquerdo.

Passado um ano do assassinato, a morte do “garimpeiro tiktoker” começa a ser esclarecida pela Polícia Federal (PF). O crime é atribuído a um grupo de policiais civis e militares do Pará, suspeitos de formarem uma milícia que controlava garimpos de ouro dentro da Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará.

Dias antes de ser executado, o garimpeiro Raí usou suas redes sociais para ameaçar os policiais. “Vem que eu quero te arrebentar, filho da puta. Vem e chama mais homens”, gritava o garimpeiro em um quadriciclo, enquanto circulava pelo garimpo Maria Bonita, o maior aberto na área indígena. “No Maria Bonita não existe mais milícia”, escreveu ele na legenda. 

As ameaças eram parte de uma “disputa territorial” pelo comando do garimpo, segundo a decisão da Justiça Federal que determinou a prisão dos policiais suspeitos. Eles teriam laços com um esquema ainda maior de mineração ilegal, que envolvia um político responsável por “esquentar” (legalizar) ouro extraído de várias regiões da Amazônia.

Na semana passada, a PF prendeu os quatro policiais investigados: Paulo Henrique Santos Pereira, terceiro sargento da Polícia Militar (PM) de Redenção, apontado como executor da morte do garimpeiro Raí; David Jerry Ribeiro dos Santos, terceiro sargento da PM; Vinicius Sousa Dias, delegado da Polícia Civil de Redenção, casado com uma juíza do Tribunal de Justiça do estado; e Danillo Santos Silva, escrivão da Polícia Civil de Redenção.

Questionados pela Repórter Brasil, os advogados dos policiais alegam que não tiveram acesso aos autos da investigação e que isso “cerceia” o direito de defesa de seus clientes. Confira abaixo detalhes dos posicionamentos.

Segundo a PF, os agentes não só permitiam como comandavam a exploração ilegal do ouro na Terra Indígena Kayapó, usando violência e recebendo pagamentos de subornos.

“O envolvimento dos policiais civis e militares revela também a alta reprovabilidade de suas condutas, que utilizam a função pública que exercem para intimidar outros criminosos, obter ganhos ilícitos e dificultar eventual procedimento investigativo”, destaca o juiz federal Carlos Chaves, da 4° Vara Criminal do Tribunal Regional Federal do Pará, na autorização dos pedidos de prisão. A decisão foi acessada de forma exclusiva pela Repórter Brasil.

Além dos quatro policiais, outras nove pessoas tiveram o pedido de prisão preventiva decretado. No comando da organização criminosa estaria, segundo a PF, um político e empresário de Redenção, Pedro Lima dos Santos, ex-vereador e servidor público do município.

Sua empresa, a mineradora Dente Di Leone, teria usado um “garimpo fantasma” para esquentar 3 toneladas de ouro ilegal, comercializados por R$ 847 milhões. Além da TI Kayapó, a suspeita é de que o esquema tenha se abastecido também com minério da TI Yanomami, em Roraima, onde milhares de indígenas enfrentam uma crise humanitária devido ao avanço da mineração ilegal.

•        Garimpo de ouro e tráfico de drogas estão na mira da investigação

Entre 2021 e 2023, o terceiro sargento Pereira recebeu pouco mais de R$ 1 milhão em repasses da Mineradora Dente Di Leone, segundo a PF, que teve acesso aos Relatos de Inteligência Financeira (RIF’s) obtidos com a quebra do sigilo bancário dos envolvidos.

De acordo com a investigação, Pereira explorava ouro ilegalmente no garimpo Maria Bonita e era dono de máquinas escavadeiras usadas no processo, além de gerenciar um esquema de tráfico de drogas no local.

A PF colheu depoimentos que sugerem que o policial militar atuava como uma espécie de “xerife”, utilizando sua posição para intimidar e ameaçar outros garimpeiros, além de ter sido o responsável pela morte de Raí Souza Lima.

Procurado, o advogado Wilson Mota Martins Júnior, que defende o policial, afirmou que o direito de defesa vem sendo cerceado desde o início da operação Bruciato, pois o seu cliente e os demais investigados não tiveram acesso, no momento da prisão, à decisão que decretou a prisão preventiva, e que os advogados dos policiais só tiveram acesso um dia depois, no momento da audiência de custódia.

Sobre as suspeitas envolvendo o PM Paulo Henrique Santos Pereira, ele disse que são “ilações” e que a inocência dele será comprovada no decorrer do processo. Disse ainda que seu cliente é inocente da morte do garimpeiro Raí Lima, e que este “tinha diversos adversários e era dependente de drogas”.

Ainda segundo a investigação, Pereira trabalhava sob as ordens do delegado da Polícia Civil de Redenção, Vinícius Sousa Dias. Ele seria “dono de garimpos”, de acordo com o inquérito.

Dias é investigado também por cobrar dinheiro em dois garimpos na TI Kayapó, o Maria Bonita e o Santile. Uma denúncia anônima incluída na investigação afirma que o delegado exigia R$ 500 mil para supostamente inibir a ação da Polícia Federal na região.

“Utilizando-se de seu cargo público para amedrontar rivais, em quase regime de milícia. Ou seja, para além de se beneficiar dos crimes, para os quais foi encarregado de combater, ele mesmo passou a praticá-los”, destaca a decisão.

Com base nos relatórios financeiros dos investigados, a PF apurou que o delegado movimentou mais de R$ 5 milhões em transações suspeitas. Recebeu valores de empresas envolvidas no esquema, como a Dente Di Leone, e repassou a outras empresas de fachada, como postos de combustíveis e empresas de máquinas pesadas, para ocultar a origem e o destino do dinheiro.

Ao acatar o pedido de prisão, o juiz federal destaca o fato de o delegado ser casado com uma juíza. “É extremamente constrangedor se deparar com uma situação em que um servidor público, encarregado da segurança pública, ou seja, de todos nós, e supostamente casado com uma Juíza de Direito do honroso Tribunal de Justiça do Estado do Pará, encontre-se envolvido em uma das maiores organizações criminosas (quiçá a maior) em atividade hoje no país voltada à exploração ilegal de bens da União e responsável pela movimentação de valores estratosféricos que beiram a casa de um bilhão de reais”.

O advogado Carlos Godoy, que defende o delegado, disse que vai se manifestar apenas no inquérito policial.  Até o momento, ele diz não ter conseguido acesso às investigações e que isso “cerceia o direito da defesa”.

Procurada, a Polícia Civil do Pará informou que os policiais foram afastados das funções e estão à disposição da Justiça. “O caso será apurado por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD). A PCPA reforça que não compactua com desvios de conduta de qualquer agente”, diz a nota. A PM do Pará não respondeu ao pedido de comentário.

•        Mais dois policiais investigados

Além do delegado e do terceiro sargento, a Operação Bruciato também teve como alvo um escrivão da Polícia Civil de Redenção, Danillo Santos Silva. A investigação aponta para transferências suspeitas entre Silva e a mineradora Dente Di Leone.

Silva teria movimentado cerca de R$ 40 milhões em apenas oito meses, entre agosto de 2021 e março de 2022. Segundo a PF, ele recebia valores de diferentes fontes e repassava para outros integrantes do esquema, como garimpeiros, empresários, mineradoras, postos de combustíveis e empresas de aluguel e manutenção de máquinas pesadas.

Os repasses para empresas de maquinário e combustível seriam uma forma de financiar as atividades de garimpo na região, afirma a investigação. Silva também é suspeito de participar diretamente da exploração no garimpo de Santile, dentro da TI Kayapó.

O quarto policial preso e afastado das funções é o terceiro sargento da PM David Jerry Ribeiro dos Santos.

Os relatórios de inteligência financeira mostram que Jerry, como é conhecido, recebeu R$ 470 mil da Mineradora Dente Di Leone. Os documentos identificam também outras transações com joalherias, pessoas e empresas investigadas na Operação Bruciato.

Em 2016, Jerry chegou a ser preso acusado de participar do sequestro e assassinato de um pecuarista, sendo posteriormente afastado da PM. Contudo, retornou ao cargo em 2020 e, segundo as investigações, continuou a atuar em garimpos ilegais, sendo indiciado também por transporte ilegal de combustível que seria usado no garimpo.

“É surpreendente que com esse histórico ainda permaneça fazendo parte da honrosa Polícia Militar do Estado do Pará, e mais surpreendente ainda é que esteja ainda lotado na mesma região onde supostamente vem cometendo toda uma gama de crimes”, escreveu o juiz na decisão.

Tanto Jerry quanto Silva são defendidos pelo mesmo advogado, Marcelo Mendanha, que critica a falta de acesso à investigação. Segundo ele, seus clientes foram submetidos à audiência de custódia sem conhecerem os motivos da prisão. Mendanha diz que teve acesso aos documentos mais de uma semana após a operação ser deflagrada.

COMO FUNCIONAVA O ESQUEMA

UM ESQUEMA BILIONÁRIO de garimpo ilegal de ouro na Amazônia começou a ser desmantelado pela Polícia Federal (PF) na semana passada, com a prisão de 13 suspeitos, incluindo um funcionário público e quatro policiais. A investigação aponta que a empresa de um servidor da Prefeitura de Redenção, no sul do Pará, comprava ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Kayapó e de outras lavras irregulares nos estados do Pará, Amazonas, Mato Grosso e Roraima.

O líder da organização criminosa, segundo a PF, é Pedro Lima dos Santos, sócio da Mineradora Dente Di Leone. Detido na última terça-feira (10), ele é supervisor na secretaria de obras da prefeitura de Redenção. Vereador entre 2013 e 2017 pelo PSDB, Pedro Lima ficou como suplente em 2016 pelo PSC e em 2020 pelo Democrata (atual União Brasil), chegando a assumir o cargo por alguns meses em 2024.

De acordo com a investigação, a Dente Di Leone comercializou 3,14 toneladas de ouro ilegal entre 2021 e 2023, faturando R$ 847 milhões com a venda para empresas intermediárias.

A Repórter Brasil já tinha revelado em 2023 que Pedro Lima era suspeito de operar um “garimpo fantasma” no sul do Pará. Os negócios já eram investigados por possíveis laços com um esquema de contrabando ilegal de ouro, que forneceu o minério extraído de terras indígenas para refinadoras de Nova York, nos Estados Unidos, e Istambul, na Turquia.

A Operação Bruciato da PF prendeu ainda dois policiais militares e dois policiais civis do Pará, incluindo um delegado. Os agentes seriam responsáveis por comandar garimpos dentro da TI Kayapó. Dois indígenas também foram presos acusados de conivência com os garimpeiros e de facilitação das ilegalidades, mediante pagamentos.

Ao todo foram expedidos 13 mandados de prisão preventiva, além de 33 mandados de busca e apreensão. “[Trata-se de] Uma sofisticada organização criminosa envolvida na extração e comercialização ilegal de ouro”, diz o pedido de prisão, acessado pela Repórter Brasil.

Pedro Lima é descrito como “o principal articulador da prática ilícita do ‘esquentamento do ouro’”. Além da extração e comércio ilegal do minério, ele vai responder por lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e organização criminosa. A PF também aponta o envolvimento em outros crimes dos policiais presos, como corrupção e homicídio.

Procurado, o advogado de Pedro Lima afirmou à reportagem que não vai comentar o caso, pois não teve acesso aos autos do processo.

<><> Garimpo fantasma ‘esquentou’ 3,14 toneladas de ouro

De acordo com as investigações da Polícia Federal, o esquema era baseado no uso de um “garimpo fantasma” no Pará para emitir documentos falsos e “esquentar” (legalizar) o ouro extraído ilegalmente de várias regiões da Amazônia. Além da TI Kayapó, a suspeita é de que ouro retirado da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, a 1.700 quilômetros de distância, também tenha sido “esquentado” pelo esquema.

Garimpos fantasmas são lavras garimpeiras legalizadas que informam a produção de grandes quantidades do minério, mas que de fato não extraem ouro. Esses garimpos são usados por esquemas criminosos para ocultar a real origem de metal extraído irregularmente de áreas sem permissão, como as terras indígenas.

As autorizações são concessões dadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) para a extração em pequena escala, chamadas de PLG (Permissão de Lavra Garimpeira).

Pedro Lima tinha em seu nome uma PLG em Cumaru do Norte, localizada em uma área vizinha à TI Kayapó, no limite leste do território. Legalizada, essa lavra informou uma megaprodução nos últimos anos, mas imagens de satélite não mostram sinais de atividade garimpeira no local.

“A profundidade da cava deveria ser maior para se chegar à produção indicada, o que não ocorreu na área do PLG devido à ausência de extração mineral”, diz a decisão judicial.

Segundo a investigação, entre 2020 e 2023 não houve qualquer registro de movimentação associada ao garimpo nessa PLG. Seria impossível, portanto, que mais de 3 toneladas de ouro fossem extraídas da área. O laudo geológico da PF aponta “de forma cabal” que não houve nenhum tipo de exploração mineral no local, afirma o documento da Justiça Federal obtido pela reportagem.

Além do “garimpo fantasma”, a investigação da PF aponta que a organização criminosa envolveu uma série de atores para mascarar a origem do minério, como mineradoras, cooperativas de garimpeiros, postos de combustíveis e lojas de joias e de aluguel de máquinas, alguns deles de fachada.

A PF descobriu que a Dente Di Leone comprava o minério de diversas fontes, incluindo garimpeiros, cooperativas e empresas ligadas à atividade mineradora. Segundo as investigações, Pedro Lima enviou “vultosas remessas de valores aos investigados e [a] outros não identificados, que atuam diretamente na exploração mineral”.

Em entrevista concedida em 2021 para uma rede de televisão local, o político e empresário paraense defendeu os garimpos, reclamou que os garimpeiros eram tratados como bandidos e classificou de “pirotécnicas” as operações para combater os pontos ilegais de mineração.

Contou também que, no ano de 2020, foi a Brasília reunir-se com o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), a quem avaliou como “solidário” à causa dos garimpeiros. “Quando a gente chega em Brasília, ele está pronto para nos atender”, disse.

Procurado pela Repórter Brasil, o senador disse que não se manifestaria, pois o fato não tem vinculação com o mandato dele.

<><> Empresas que compraram o ouro ilegal também estão na mira da Justiça

As 3,14 toneladas de ouro foram comercializadas pela Dente Di Leone para apenas duas empresas: a Fênix Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTMV) Ltda e a BAMC Laboratório de Análises de Solos e Minérios Ltda. Nesse negócio, a mineradora de Pedro Lima embolsou um total de R$ 847 milhões.

Segundo as informações da Justiça Federal, o ouro negociado entre Dente Di Leone, Fênix e BAMC foi “obviamente extraído de outros garimpos da região, que não fazem parte de nenhuma área acobertada por permissão de lavra junto à ANM”.

A Fênix DTVM já tinha suspendido as compras com a empresa Pedro Lima em março de 2023, após a Repórter Brasil revelar as primeiras suspeitas sobre o investigado.

A mesma reportagem mostrou as conexões da BAMC com um esquema internacional de contrabando de ouro da Terra Índigena Yanomami. O dono da empresa, Brubeyk Nascimento, foi preso quatro meses após a publicação da reportagem.

Na operação da semana passada, a Fênix foi um dos alvos dos mandados de busca e apreensão. A Justiça autorizou o acesso a computadores e banco de dados da Fênix. A decisão ainda determinou a suspensão das atividades de extração e comércio minerário, além da apreensão do “ouro in natura até o limite de 3,14 toneladas” nas buscas realizadas na sede da Fênix em Cuiabá (MT).

Procurada pela Repórter Brasil, a Fênix DTVM reiterou que encerrou os negócios com a Dente Di Leone “assim que tomou conhecimento da possível irregularidade”, e que está à disposição das autoridades para esclarecimentos.

A Repórter Brasil não conseguiu confirmar se a BAMC também foi alvo da operação Bruciato. A empresa foi procurada pela reportagem por telefone e e-mail, mas não retornou.

<><> Terra Indígena Kayapó é a mais cobiçada pelo garimpo ilegal de ouro

Bruciato é uma palavra italiana que significa “queimado”. Em 2021, a PF já tinha feito uma megaoperação contra garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena Kayapó e batizou com outro nome italiano: Terra Desolata, que denota a devastação.

Na ocasião, a PF descobriu conexões de parte do ouro extraído ilegalmente com uma refinaria italiana. Com base na investigação, a Repórter Brasil revelou o destino final do metal, que chegava às big techs, como Apple, Google, Microsoft e Amazon.

Apesar das investigações, os garimpos ilegais  continuam crescendo nas áreas indígenas, ano após ano. A TI Kayapó lidera o ranking, com 13,7 mil hectares em 2022 (o equivalente a 19 mil campos de futebol), segundo levantamento do MapBiomas. Essa área representa 54% de toda a extensão de garimpos abertos em terras indígenas naquele ano.

Embora as operações policiais devam continuar, elas não conseguirão lidar com o poder do garimpo enquanto o ouro ilegal puder ser facilmente lavado e exportado para consumidores globais como uma mercadoria legítima”, afirma Christian Poirier, diretor de programas da Amazon Watch.

Mais de 6.000 indígenas vivem na TI Kayapó. Com 3,2 milhões de hectares, o território tem quase 100 vezes o tamanho de Belo Horizonte (MG). O mercúrio usado para separar o ouro polui rios, contamina os peixes e adoece os indígenas. “As caças fogem com as explosões. O rio agora é só lama. A gente não come mais peixe nem caça; só o que compra no mercado, porque a água está contaminada e passa doença”, disse uma liderança indígena.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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