terça-feira, 24 de setembro de 2024

Índia: um ascenso complexo e contraditório

Jovem, poderoso militar e tecnologicamente e em rápido prescimento, país é cortejado pelos EUA (contra a China), mas não adere às sanções e compra petróleo russo. Direita governa, porém últimas eleições cortaram sua margem de manobra

  1. Da independência ao caminho de grande potência

A Índia tornou-se, em 2023, quando ultrapassou a China, o país mais populoso do mundo, com 1,4 bilhão de habitantes. Divide com outros três (EUA, Rússia e China) a primazia de possuir a chamada “tríade nuclear”, a capacidade de lançar bombas atômicas através de mísseis, aviões e submarinos e também está neste “clube seleto” de nações com a alta competência científica de ter conseguido pousar uma nave em solo lunar. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a Índia deve crescer em 2024 em torno de 6,5% e tem sido um dos países líderes no ranking do crescimento econômico nos últimos anos. Serviços, telecomunicações e software têm destaque na economia, grande exportadora de medicamentos, diamantes e óleo refinado. Instituições financeiras como o banco Morgan Stanley têm afirmado que a Índia deve ultrapassar a Alemanha e o Japão e se tornar a terceira maior economia do mundo em 2027. Em tempos de rápido envelhecimento nos países ricos e mesmo na China, com redução da população, a demografia também é uma vantagem indiana. O paístem uma população crescente e mais jovem, o que deve suprir suas necessidades de trabalhadores nas próximas décadas. Esta evolução coloca para muitos analistas a percepção de que a Índia entrará para o grupo das grandes potências.

A compreensão do papel da Índia no grupo BRICS e sua relação com o Sul Global e também com os países desenvolvidos, parte do entendimento dos formuladores de política externa indianos deste país como “não ocidental” e não como “anti-ocidente”. A Índia nem sempre segue as regras do jogo ocidentais, mas não se coloca como ator antagônico. Participa da Organização para a Cooperação de Xangai e do BRICS, ao mesmo tempo em que é membro do QUAD (com Japão, Austrália e EUA), grupo que visa conter a China e tem diversas parcerias militares e tecnológicas com os Estados Unidos. Contudo, mantém relações importantes com a Rússia, de quem compra petróleo e armas e não condenou a invasão da Ucrânia. Esta postura de independência deriva do seu posicionamento no período da Guerra Fria no qual buscou não se alinhar com nenhum dos blocos liderados por EUA e URSS, buscando ter as melhores relações com ambos. Como menciona Henry Kissinger em Ordem Mundial: “A essência dessa estratégia residia no fato de que permitia à Índia obter apoio dos dois campos da Guerra Fria – assegurando ajuda militar e cooperação diplomática por parte do bloco soviético, enquanto flertava com os norte-americanos em busca de assistência para o seu desenvolvimento e do apoio moral por parte do establishment intelectual dos Estados Unidos. Por mais que isso fosse irritante para os Estados Unidos, era uma atitude sensata para uma nação emergente. Com uma capacidade militar então incipiente e uma economia subdesenvolvida, a Índia teria sido respeitada, mas como uma aliada de segunda linha. Na condição de um protagonista independente podia exercer uma influência muito mais abrangente.” (KISSINGER, 2015, p. 205,)

A Índia tem, portanto, desde sua independência da Grã-Bretanha, como elemento central de sua política externa a postura de não alinhamento a blocos ou países. E esta política tem a feito cortejada por potências ocidentais. Para os EUA, a Índia é uma espécie de pivot para a contenção da China e é interesse indiano a aliança com os EUA para se contrapor à força chinesa na Ásia. O tabuleiro geopolítico da vizinhança indiana é complexo e conta com países como a China e o Paquistão, contra os quais a Índia já travou guerras e tem contendas territoriais.

  1. Índia: expansão dos BRICS, contradições internas e estratégia

O grupo BRIC, inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia e China se reuniu pela primeira vez em Iekaterinburgo, na Rússia, em 2009. Este grupo admitiu a África do Sul como membro pleno dois anos depois, tornando-se BRICS, e mais recentemente, em 2023, admitiu mais cinco membros plenos: Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Egito e Etiópia. A sexta adesão, a da Argentina (que foi mediada pelo Brasil) não ocorreu pela negativa do presidente de extrema-direita argentino Javier Milei, em referendar a adesão ao grupo.

Dos membros fundadores, Índia e Brasil têm posição não favorável a uma rápida expansão do grupo, no que divergem da posição chinesa e russa, defensora da expansão e adesão de novos membros. Esta última posição prevaleceu na reunião de 2023 com a adesão dos referidos novos membros. A diluição do poder no interior do grupo e o risco da adoção de uma posição explicitamente anti-G7, com o grupo orbitando em torno da China, suas posições em relação aos EUA e o Ocidente como um todo e seus projetos de projeção geopolítica e geoeconômica, como a Belt and Road Initiative, a chamada “Nova Rota da Seda” são temores, em diferentes gradações, de Brasil e Índia, que têm procurado articular posições conjuntas no grupo, como a proposta de definição de critérios objetivos para novos adesões, o que deve ser discutido conjuntamente na próxima reunião dos BRICS, em outubro próximo, em Kazan, na Rússia. A despeito desta discussão, a expectativa é que sejam negociadas novas adesões, o que, caso realmente ocorra, confirmará a vitória da perspectiva sino-russa.

A despeito, até o momento ao menos, desta posição que atende especialmente às expectativas chinesas, este grupo alternativo ao G7 tornou-se arena política internacional importante para seus integrantes, e para a Índia possibilita o exercício de sua política externa independente.

Este processo de ascensão indiana não se dá sem contradições internas. O país possui centenas de milhões de habitantes vivendo com valores inferiores à linha de pobreza definida pelo Banco Mundial (pouco mais de 3 dólares diários) e o governo nacionalista hindu de Narendra Modi acentuou as divisões internas ao conduzir políticas contrárias (e em certos casos repressivas) à grande minoria muçulmana do país, em torno de 200 milhões de pessoas, o que também trouxe a crítica internacional ao que foi visto como declínio da democracia. Modi conquistou recentemente o direito ao terceiro mandato, contudo sem a maioria absoluta. A questão do “declínio democrático”, nos dois governos anteriores de Modi, não foi impedimento para que governos ocidentais como o norte-americano de Joe Biden e o francês de Emmanuel Macron buscassem estabelecer laços estratégicos.

Portanto, produto de suas opções de política externa, ser a ponte entre Ocidente e Oriente, com a busca da posição autônoma, está no cerne da Grande Estratégia da Índia.

 

¨      A Índia desafiará a ordem eurocêntrica? Por José Luís Fiori

A civilização indiana é tão ou mais antiga que a chinesa, embora seu desenvolvimento tenha sido mais descontínuo e menos homogêneo. Sua formação se deu ao longo do Rio Indo, e o processo de “sedentarização” de suas populações começou por volta do ano 5000 a.C. Seu território, entretanto, foi objeto de inúmeras invasões e ocupações por parte de povos “estrangeiros”. Por volta de 1500 a.C., a região foi ocupada por povos indo-europeus provenientes do Mar Negro e do Mar Cáspio, quando se inicia o Período Védico. No ano de 520 a.C., seu território foi invadido por Dario, o Rei da Pérsia, e permaneceu 200 anos sob o domínio persa, até a invasão por Alexandre, o Grande, que trouxe consigo as marcas da civilização grega.

Todas essas sucessivas invasões, que prosseguiram nos séculos seguintes, só conseguiram se instalar de forma periférica, como entrepostos militares ou mercantis de uma produção local diversificada e sofisticada que fora obra milenar de uma população que era cultural e linguisticamente heterogênea, mas que seguia majoritariamente o hinduísmo, a mais antiga de todas as religiões.

Até o momento em que se iniciaram as invasões e conquistas muçulmanas, no século VII, provenientes do Sistão, atual Irã, e que deram origem ao Império Mogol ou Mogul, fundado por Babur, descendente de Gengis Kan, e que chegou a dominar quase todo o subcontinente indiano entre 1526 e 1857. Essa estrutura imperial durou até 1720, pouco depois da morte do último grande imperador mogol, Aurangzeb. Pouco depois, em 1763, a Companhia Inglesa das Índias Orientais impôs seu domínio mercantil e tributário sobre a região de Bengala e, a partir daí, progressivamente, sobre todo o território indiano, até que as forças do Império Britânico derrotaram a rebelião indiana de 1857-58, submetendo a Índia ao governo imperial da Coroa Britânica, de 1858 até sua independência, em 15 de agosto de 1948.

Em 1885, foi fundado o Congresso Nacional Indiano, primeira semente revolucionária de um movimento que adquiriu plena maturidade a partir de 1930, quando Gandhi lançou seu Movimento da Desobediência Civil, que culminaria com a independência indiana e a divisão dos territórios britânicos entre Paquistão e Índia, e posteriormente, Bangladesh.

Depois de sua independência, a Índia adotou uma política externa anticolonialista e sofreu o efeito imediato da coincidência de sua data de independência com a data do início da Guerra Fria, logo antes da vitória da Revolução Comunista na China. Esses fatos por si só colocaram o território indiano no coração de um espaço geopolítico que teve grande importância durante toda a segunda metade do século XX, durante a Guerra do Vietnã, e após a queda do Xá do Irã e a invasão soviética do Afeganistão, ocorridas em 1979. Nesse período, a Índia enfrentou várias guerras de fronteira, três com o Paquistão (1948, 1965 e 1971) e uma com a China (1962), manteve uma disputa aberta com Bangladesh (1979), em relação à nacionalidade de uma ilha na Baía de Bengala, e desde então mantém um litígio permanente com o Paquistão em torno a suas fronteiras na região de Jammu e Caxemira.

Constrangida pela forma como se deu a luta por sua independência, a Índia adotou uma posição de liderança inconteste e ativa dentro do Movimento dos Países Não-Alinhados, nascido da Conferência de Bandung, em 1955, apoiando um “neutralismo ativo” e uma defesa intransigente da soberania e igualdade de todas as nações contra todo tipo de pressão ou ingerência das grandes potências nos assuntos internos dos demais Estados. Estabeleceu um relacionamento econômico, político e militar muito estreito com a antiga URSS, que se manteve depois com a Rússia.

A Índia não apresenta, à primeira vista, as características de uma potência expansiva, e se comporta, estrategicamente, como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e garantir sua segurança numa região de alta instabilidade. Assim mesmo, desenvolve e controla tecnologia militar de ponta, como no caso de seu sofisticado sistema balístico e arsenal atômico; possui, ainda, um dos exércitos mais bem treinados de toda a Ásia. Mas foi só depois da sua derrota militar para a China, em 1962, e da primeira explosão nuclear chinesa, em 1964, logo antes da guerra com o Paquistão, em 1965, que a Índia abandonou o “idealismo prático” da política externa de Nehru e adotou a Realpolitik do primeiro-ministro Bahadur Shastri, que autorizou o início do programa nuclear, na década de 60. Foi quando a Índia atingiu sua maturidade, com as explosões nucleares de 1998 e o sucesso do míssil balístico Agni II, em 1999. Naquele momento, ela se tornou uma potência atômica e definiu sua nova estratégia de inserção regional e internacional, com base na afirmação simultânea de seu novo poder militar.

Por outro lado, desde sua independência, a Índia vem adotando uma estratégia econômica de corte fortemente nacionalista, e hoje é o país com maior crescimento econômico  dentro do sistema mundial. Apesar do viés cada vez mais orientado na direção asiática, a política externa indiana mantém uma equidistância pragmática com relação a Estados Unidos, Europa e China, e em algum momento esteve próxima de se transformar em um aliado atômico dos americanos. Mais recentemente, voltou a distanciar-se dos Estados Unidos e de seu projeto de construção de um cerco nuclear da China, com a possibilidade de extensão da área de atuação da OTAN até a região Indo-Pacífica.

Muito recentemente, já em meados de 2024, houve um movimento de reaproximação entre Índia e China, as nações mais populosas do planeta, que somam juntas três bilhões de habitantes e já são a primeira e a terceira maiores economias do mundo, respectivamente, por paridade de poder de compra. Esta reaproximação sinaliza o desejo de resolver suas disputas de fronteira na Caxemira e em Arunachal Pradesh, que remontam a décadas e já provocaram enfrentamentos armados com a China, com quem mantém uma fronteira comum de 3.379 km de extensão.

O mesmo tem acontecido com relação ao Paquistão e, em ambos os casos, o novo governo indiano parece decidido a tranquilizar e estabilizar sua zona de influência na região sul da Ásia. Mais do que isso, a Índia tem resistido a participar do “Diálogo de Segurança Quadrilateral” promovido pelos Estados Unidos, o QUAD, que também envolve a Austrália e o Japão; mantém estreita relação comercial e estratégica com a Rússia; fez parte da criação conjunta do BRICS; e é membro da Organização de Cooperação de Shangai.

Tudo indica que a Índia está se dispondo a resolver suas pendências regionais para poder assumir uma posição assertiva e global no cenário internacional, acorde com suas novas dimensões demográficas e econômicas, e com a previsão de que, até 2050, será o segundo país mais rico do mundo.

Somando todos esses fatos e fatores, parece claro que a Índia já tomou uma posição de longo prazo, ao lado de seus vizinhos asiáticos, contrários ao projeto QUAD, e mais ainda, à ideia de criação de uma OTAN na região do Indo-Pacífico. E ainda, a Índia vem sinalizando seu desejo de afastar-se progressivamente do sistema monetário-financeiro apoiado no dólar, sobretudo depois do congelamento das reservas russas depositadas nos bancos americanos e europeus. Uma posição que vem angariando número cada vez maior de apoiadores dentro e fora da Ásia, sobretudo na região que se alimenta do efeito expansivo das economias chinesa e indiana.

Esse verdadeiro turning point da política externa indiana explica, em parte, a iniciativa absolutamente inusitada e o movimento surpreendente do primeiro-ministro Narendra, que depois de ir a Moscou no mês de julho, visitou, em agosto, a Ucrânia e a Polônia, propondo-se a intermediar uma negociação de paz fora da Ásia, em plena Europa, envolvendo, como uma de suas partes fundamentais, a Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial.

Assim, a Índia vai assumindo uma posição dentro do Sul Global análoga a que ocupou na Conferencia de Bandung de 1955, e na formação do Movimento dos Países Não Alinhados que durante o período da Guerra Fria se opôs ao que consideravam como novas formas colonialismo e neocolonialismo das Grandes Potências daquele período. Mas este novo/velho caminho da política externa da Índia não será fácil, como se pôde ver pela retaliação quase imediata que sofreu com o Golpe de Estado que derrubou sua aliada, a Primeira-Ministra de Bangladesh, Shikh Hasina, no dia 4 de agosto recém passado, e que contou com o apoio/intervenção dos Estados Unidos. Uma mudança forçada de governo, que seguiu o novo figurino das intervenções norte-americanas, desde o Golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, e que pode transformar Bangladesh, em qualquer momento, num novo foco de atrito militar entre a Índia e a China. De qualquer forma, haverá que acompanhar os próximos desdobramento para avaliar o comportamento desta nova Índia que que está se propondo entrar no “jogo das Grandes Potências”.

 

Fonte: Por Wagner Sousa, em Outras Palavras

 

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