terça-feira, 24 de setembro de 2024

Indígena desmente PM e afirma que Guarani Kaiowá morto no MS não tinha arma

NERI RAMOS, o jovem Guarani Kaiowá morto a tiros na manhã da última quarta-feira (18), no município de Antônio João (MS), “não tinha nada nas mãos” – o que contradiz a alegação da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul de que a causa de sua morte seria uma troca de tiros.

A afirmação é de Avelino da Silva Vareiro, uma das lideranças da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu. Em 18 de setembro, uma “retomada” (nome dado pelos indígenas às ocupações para recuperação de territórios ancestrais) iniciada uma semana antes, na Fazenda Barra, foi reprimida pela PM após os donos da propriedade obterem uma decisão da Justiça Federal garantindo acesso à sede da fazenda. Ramos foi morto nessa ocasião. No dia 12, uma ação policial já havia deixado três indígenas feridos.

A Fazenda Barra está sobreposta à Terra Indígena Nhanderu Marangatu – a área chegou a ser regularizada como território dos Guarani Kaiowá em 2005, mas teve o processo suspenso no mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, o conflito se instalou no local.

Os indígenas acusam a PM de ter realizado os disparos e adulterado a cena do crime. Inicialmente, o corpo teria sido deslocado pelos policiais para a mata e depois levado ao Instituto Médico Legal (IML), antes da chegada de peritos.

•        Secretaria do governo diz que houve ‘troca de tiros’

Em nota oficial à imprensa, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul diz que “o óbito ocorreu depois de um confronto e troca de tiros com a Polícia Militar”, e que exames periciais estão sendo realizados no local.

O texto afirma ainda que “foram apreendidas armas de fogo com o grupo de indígenas que entrou em confronto com os policiais militares”. Questionamentos da Repórter Brasil sobre a acusação de alteração da cena do crime não foram respondidos.

No entanto, segundo os Guarani Kaiowá e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não houve tiroteio. O ataque da PM teria começado logo cedo, com a queima das barracas utilizadas pelos indígenas.

De acordo com uma integrante da TI Nhanderu Marangatu, que prefere não ser identificada, a informação de que a tropa de choque da corporação agiria começou a circular por grupos de WhatsApp da comunidade na noite de 17 de setembro. No dia seguinte, a operação chegou ao local.

“Eles vieram, botaram fogo nos barracos, o Neri voltou para pegar uns pertences que havia em sua barraca, e acabaram atirando nele”, conta Vareiro. “Ele não tinha nada nas mãos, nenhuma arma. O guri morreu sem defesa”, indigna-se. “Estão falando no jornal que foram lá só para proteger, garantir a segurança, mas não, eles foram lá para massacrar os povos indígenas, foram para atirar”, complementa a liderança Guarani Kaiowá.

A nota da secretaria estadual afirma que os policiais militares continuam no local em cumprimento a uma ordem da Justiça Federal “para manter a ordem e segurança na propriedade rural (Fazenda Barra), assim como permitir o ir e vir das pessoas entre a rodovia e a sede da fazenda”.

A ordem é do juiz federal Ricardo Duarte Ferreira Figueira, da 1ª Vara Federal de Ponta Porã, que em 13 de setembro acatou parte do pedido dos fazendeiros e determinou que o acesso deles à área não fosse impedido pelos indígenas da retomada, autorizando a “permanência ostensiva da força policial no imóvel”.

Luis Ventura Fernández, secretário-executivo do Cimi, qualifica como “grave” a decisão judicial, ao permitir a presença da PM no território. “Em um litígio que envolve povos indígenas, a atuação deveria ser da Polícia Federal, não da Polícia Militar”, afirmou à Repórter Brasil.

“Em todo caso, a decisão não permite nenhum tipo de despejo, muito menos de reintegração de posse. Isso foi explicado para o coronel da PM, mas no entendimento deles a atuação da corporação deveria ser pela retirada à força da comunidade indigena”.

A Polícia Federal instaurou um inquérito para apurar o ocorrido. “Agentes da PF, da Força Nacional e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) estão no local coletando todas as informações necessárias para a investigação”, diz nota enviada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à Repórter Brasil.

A ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas) solicitou ao governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, que o policial responsável pelo disparo “seja imediatamente afastado e responsabilizado pela conduta inadmissível e violenta que tirou a vida de Neri Guarani Kaiowá”.

•        Homologação da TI está no STF há quase 20 anos

A TI Nhanderu Marangatu foi homologada via decreto presidencial em 2005 com 9,3 mil hectares. A homologação é o último passo do processo de demarcação, após a identificação e delimitação de um território. Mas, no caso da Nhanderu Marangatu, a medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo ano, a pedido dos fazendeiros, empurrando os indígenas para uma parte diminuta do território. O processo segue até hoje sem julgamento definitivo.

“Estamos diante de uma terra homologada há 20 anos. As comunidades indígenas foram obrigadas a viver num território pequeno de 300 hectares por muito tempo. Foram retomando algumas das áreas de seu território, e em 12 de setembro fizeram a última retomada”, esclarece Fernández.

A Fazenda Barra, a única que resta na TI Nhanderu Marangatu, pertence a Roseli Ruiz e Pio Queiroz Silva, autores da ação. Sua filha, Luana Ruiz, advogada de ambos no processo, é assessora especial da Secretaria estadual da Casa Civil do Mato Grosso do Sul, cargo que ocupa desde 12 de agosto de 2024. Entre janeiro de 2023 e julho de 2024, ela foi chefe de gabinete na Secretaria de Infraestrutura e Logística do estado.

Mas seu poder de influência também alcança Brasília. Durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Luana foi secretária adjunta da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, que tinha como ministra a senadora Tereza Cristina (PMDB/MS). O secretário era o líder ruralista Luiz Antonio Nabhan Garcia.

Tanto Luana quanto sua mãe, Roseli Ruiz, destacam-se no estado por sua forte atuação anti-indígena. “A família da Roseli é uma ameaça para o povo indígena. Ela movimenta os fazendeiros do agronegócio para nos atacar”, afirma a liderança Guarani Kaiowá Avelino da Silva Vareiro.

A reportagem questionou Luana Ruiz sobre um possível conflito de interesses entre público e privado envolvendo o embate entre indígenas e sua família, uma vez que ela integra o governo estadual. Em resposta, a advogada escreveu o seguinte: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Sugiro analisar os autos do processo que tramita na Justiça Federal. É salutar se ater à realidade dos fatos!”.

Em seguida, ela encaminhou um vídeo do deputado estadual Coronel David (PL-MS) em que o parlamentar defende a PM e faz acusações aos indígenas, em discurso na Assembleia Legislativa do estado.

•        Entidades criticam atuação da PM

Para Luis Ventura, do Cimi, a PM atua como “segurança privada de interesses privados”. Tal crítica é compartilhada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. “A Polícia Militar é acusada frequentemente de ser composta por policiais que fazem bicos para os fazendeiros e que são, ao mesmo tempo, segurança privada e segurança estadual. E que, portanto, são absolutamente contrários aos indígenas”, diz ela à Repórter Brasil.

No dia 13 de setembro, Cunha, reconhecida como uma importante defensora do direito dos povos indígenas do Brasil e fundadora da Comissão Arns, organização de direitos humanos, esteve presente na retomada Guarani Kaiowá na Fazenda Barra como parte de uma delegação de entidades da sociedade civil, parlamentares e autoridades.

Ela conta que o destino original da missão eram áreas de conflito em Douradina (MS), na TI Panambi-Lagoa Rica, mas, em razão dos ataques policiais aos indígenas ocorridos em Antônio João no dia 12, seus integrantes decidiram visitar o local. A ação deixou três feridos. Entre eles, a Guarani Kaiowá Juliana Gomes, que levou um tiro no joelho e continua hospitalizada.

Chegando à retomada, a delegação se deparou com uma situação de grande tensão, conta a antropóloga. “Vimos os indígenas Kaiowá muito revoltados, muito indignados porque na véspera tinha havido já um embate com feridos. E o joelho da indígena que foi atingida por uma bala letal ficou completamente destruído”, relata.

Segundo a antropóloga, no momento em que a missão se preparava para deixar a área, seus integrantes avistaram um grande número de viaturas da Polícia Militar. Na saída, na estrada, cruzaram mais de uma dezena de carros da PM, dos Bombeiros e de outras forças. “Era evidente que estavam se reforçando. Eles estavam cercando os indígenas”, diz.

Em nota enviada à reportagem, o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) condenou os ataques. “A escalada de violência contra os povos indígenas no Brasil é extremamente preocupante, em particular no Mato Grosso do Sul, onde ataques graves têm ocorrido durante todo o último mês”, diz o texto.

O escritório regional do ACNUDH cobrou o STF para que conclua a análise da Lei 14.701 de 2023, que instituiu a tese do “marco temporal” e está “favorecendo a escalada de violência contra os povos indígenas no país”.

 

•        Vice-governador de Mato Grosso deve R$ 240 mil ao estado por queimada de 2010

EM AUDIÊNCIA no Supremo Tribunal Federal (STF) para tratar do combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, realizada nesta quinta-feira (19), o governador de Mato Grosso – Mauro Mendes (União Brasil) – defendeu medidas mais duras para coibir as queimadas e o desmatamento ilegal.

“O cara põe fogo, paga multa de R$ 800 e não vai preso; é preciso mudar a lei”, afirmou Mendes. O Mato Grosso é o estado com mais focos de fogo registrados em setembro. Foram 15.770 até o dia 19, segundo o BDQueimadas.

Mendes, no entanto, desconsiderou que o próprio vice-governador Otaviano Pivetta (Republicanos), um dos maiores produtores rurais do país e top 10 dos políticos mais ricos do Brasil, tenta há 14 anos anular na Justiça uma multa por queimada ilegal em uma propriedade rural em Lucas do Rio Verde, no norte do estado.

Em outubro de 2010, a Secretaria de Meio Ambiente (Sema) determinou o pagamento de R$ 46,6 mil por “uso de fogo em áreas agropastoris sem autorização do órgão competente”, em uma área equivalente a 65 campos de futebol. Atualmente, o valor da multa já ultrapassa R$ 240 mil.  

À Repórter Brasil, a assessoria de imprensa de Pivetta enviou nota afirmando que o vice-governador “está recorrendo do processo, junto ao Superior Tribunal de Justiça, pois o incêndio na área em questão foi um acidente provocado por terceiros”.

Segundo a nota, Pivetta não era proprietário da área quando ocorreu a queimada. “Por isso não se pode atribuir nenhuma conduta à [sic] ele (tanto ambiental quanto fiscal).”

O texto diz ainda que o imóvel rural era explorado pela Vanguarda do Brasil, uma das maiores produtoras agrícolas do país. Porém, na data do incidente, a empresa tinha como um de seus donos o próprio Pivetta, fundador da companhia incorporada em 2011 ao grupo Vanguarda Agro.

Em setembro de 2023, a Justiça de Mato Grosso julgou o pedido de anulação da multa improcedente. Em sua decisão, a juíza Adair Julieta da Silva afirmou que “o simples fato da área ter sido arrendada não exclui a responsabilidade do seu proprietário, visto que diante da responsabilidade objetiva, tanto o proprietário quanto o arrendatário são solidariamente responsáveis”.

Atual vice-governador do estado, Pivetta já foi deputado estadual e prefeito de Lucas do Rio Verde, município onde ocorreu a queimada.

Os bens declarados por Pivetta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na eleição de 2022 somam quase R$ 379 milhões. A cifra o coloca em 6º lugar entre os políticos mais ricos do país, segundo levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

A ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, diz que é comum que grandes desmatadores entrem na Justiça para evitar o pagamento de multas.

“A média paga é de R$ 11 mil. Aquela pessoa que teve uma multa baixinha, tirou uma árvore sem autorização, por exemplo, paga”, explica Araújo. “Mas os grandes desmatadores, fazendeiros, empresas com multas mais altas, preferem gastar dinheiro com bancas caríssimas de advogados para não pagar, confiando também no longo tempo que esses processos vão levar para serem avaliados”, complementa.

É o caso da infração envolvendo Pivetta, que em outubro completa 14 anos. Após ter o pedido de cancelamento da multa indeferido em primeiro e segundo graus, o vice-governador informou que aguarda julgamento de recurso apresentado ao STJ.

“Na prática, os autuados não se assustam com as multas, porque eles sabem que podem ficar recorrendo”, afirma Araújo. Na avaliação da ex-presidente do Ibama, o que realmente preocupa os produtores é a possibilidade de “embargo” (proibição do uso) das áreas desmatadas.

Nesta quarta (18), na esteira da emergência ambiental relacionada às queimadas das últimas semanas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma normativa recomendando que juízes e membros do Ministério Público dêem especial atenção à tramitação de inquéritos e ações envolvendo a punição de infrações ambientais.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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