sábado, 28 de setembro de 2024

Georghio Tomelin: ‘Na era da “dromocracia”’

A “verdade única” sobre narrativas não existe. Já a “mentira sobre fatos” existe sim e é muito frequente. Podem parecer contraditórias as duas afirmações anteriores, sobretudo para os que entenderem que a verdade seria o contrário imediato da mentira. Verdades e mentiras precisam ser analisadas no contexto político, na era da pós-verdade.

Estamos hoje imersos em um sistema governado pela rapidez: um processo “dromocrático” transversal, pelo qual a velocidade digital transfixa todos os setores do entendimento humano. O Observatório da Democracia da Advocacia Geral da União, especialmente por sua Comissão de Jurimetria, pretende analisar dados e impactos das notícias falsas sobre o resultado das eleições.

No sistema eleitoral brasileiro, divulgações incorretas sobre fatos políticos não podem ser desmentidas a tempo, e acabam interferindo na escolha do eleitor. As notícias falsas navegam na insegurança do eleitor. Em matéria de política, eleitores frustrados acabam aliciados por conteúdos maliciosos. O sistema eleitoral precisa garantir que o eleitor não seja enganado, justo quando está decidindo em quem votar.

Um exemplo simples pode ajudar a entender: se o eleitor for “incorretamente informado”, nas vésperas do pleito, de que “o seu candidato seria um criminoso ou de que não pode mais ser eleito por algum fator”, este eleitor tenderá a reverter seu voto em favor de outro político. Após o pleito eleitoral será tarde demais para reverter os efeitos da enganação.

Notícias falsas durante o processo podem sim distorcer o resultado do pleito eleitoral, pois afetam a formação livre da vontade popular. A velocidade com que as redes sociais espalham versões mirabolantes atinge a liberdade de expressão. Somos governados pela velocidade, daí falarmos hoje em “dromocracia” (“dromos”, em grego, corresponde a rua, estrada, corrida, percurso, e até a um caminho da agilidade).

A “dromologia” é o estudo deste caminho ou atalho mais rápido. A “dromocracia” discute assim os mecanismos para uma gestão atenta aos meios digitais em tempos de democracia veloz. Quem decide rápido, pode acabar decidindo mal, pois a tomada de decisão de modo consciente precisaria de tranquilidade para seleção de premissas.

É inegável que as fake news podem afetar diretamente os resultados de uma eleição. Isto porque elas atentam contra a liberdade de expressão, que é o preceito básico para a boa informação no Estado democrático de direito. Notícias falsas circundam e sufocam o real debate das ideias políticas: quem pensa diferente não terá o imprescindível espaço para se expressar.

A “cidadania ativa” só se implementa pela discussão dos problemas sociais concretos, e não de factoides ou de fantasmas eleitorais. As relações políticas francas envolvem, portanto, selecionar livremente os problemas e projetos públicos mais relevantes. Para tanto, o processo eleitoral deve ser livre e transparente. A liberdade de expressão não pode acabar diminuída em razão da disseminação de notícias falsas.

Nas eleições, o cidadão vota no candidato que mais se assemelha à sua visão de mundo. A cabine de votação indevassável precisa garantir a extração asséptica da vontade popular. Manchar candidatos com incorreções sobre fatos pode alterar as chances reais de eleição. Somente informações completas, positivas ou negativas, podem conformar um eleitorado instruído para escolher livremente os seus governantes. A propaganda tem por fim disseminar ideias, com a meta de influenciar pessoas e conquistar a adesão do eleitor. É um processo válido e precisa se restringir aos limites do “fair play eleitoral”.

É por intermédio da propaganda que os eleitores podem formar seu juízo a respeito dos postulantes a mandatos eletivos. Política é acúmulo de forças, e não a arte do bem-querer. No entanto, a escolha individual pode ser apoiada em preferências e afinidades pessoais, e nada há de errado nisso. A liberdade do eleitor para gostar ou não de alguém, não legitima, todavia, práticas de difamação ou calúnia contra adversários. A circunstância de não haver verdade única sobre a disputa de narrativas em política não autoriza ninguém a falsear fatos sobre a situação pessoal dos que concorrem a um cargo político.

As redes sociais são um ambiente propício para que a “mentira sobre fatos” seja espalhada de forma rápida e amplificada. Durante as campanhas eleitorais, acusações ficcionais não podem ser utilizadas para enfraquecer alguns candidatos e fabricar o sucesso artificial de outros. A ampliação do acesso tecnológico se torna uma ameaça para o processo eleitoral.

As fake news são a base da desinformação eleitoral em uma sociedade com educação política reduzida. O controle de sua disseminação não pode se dar apenas pelo Poder Judiciário. Mecanismos sociais de controle e de verificação precisam ser colocados em prática. O direito eleitoral possui dispositivos que combatem as informações inverídicas: mecanismos estes reforçados pelo direito de resposta, pela vedação ao anonimato e pela garantia constitucional da liberdade de expressão.[i]

Os debates políticos amplos, as críticas sérias e a pluralidade de ideias precisam prevalecer nas eleições. Perverter fatos, sem tempo político para os contraditar, é desinformação proposital que amesquinha nossa democracia. O tema é relevante, e o Observatório da Democracia da AGU pretende trazer o assunto para a reflexão de todos, para que os mecanismos jurídicos e sociais de controle possam ser aprimorados. Na era da política pós-factual é um dado que estamos todos mergulhados na pós-verdade. Se as pré-mentiras tomarem conta da cena política, nossos eleitores não terão como se defender.

 

•        ‘A elitização da esquerda’. Por Raúl Zibechi

A esquerda surgiu dois séculos atrás como representação das classes oprimidas na luta contra o sistema capitalista. Nas diversas vertentes desta corrente, das inspiradas em Marx às seguidoras de Bakunin ou de Jesus Cristo, não se tratava de remendar o sistema, mas de superá-lo, na convicção de que os remendos não podem acabar com os sofrimentos das pessoas oprimidas, mas estendê-los até a eternidade.

Com o tempo, o surgimento da esquerda foi sendo normalizado, apareceram vertentes que apostavam em uma sucessão de reformas como o melhor caminho para alcançar a superação do capitalismo, ao passo que outras apostavam na revolução, identificada com a tomada do poder do Estado. Até o início do século passado, todos se propunham a “tomar o céu de assalto” por diferentes caminhos.

Com a Primeira Guerra Mundial, surgiu algo a mais do que diferenças. Quando a esquerda alemã apoiou a “sua” burguesia na carnificina desencadeada na Europa, o golpe foi tão forte que merecia alguma explicação, sobretudo porque uma parte considerável das bases desses partidos apoiava a guinada chauvinista. Lenin e depois outros líderes consideraram que nos países centrais havia surgido, graças à exploração das colônias, uma camada de trabalhadores privilegiados a quem chamou de “aristocracia operária”.

Esse setor estava mais interessado em se acomodar o melhor possível dentro do sistema do que em arriscar seus privilégios para superá-lo, em uma luta que, como já demonstravam os bolcheviques, não seria um mar de rosas.

Um século depois, não é mais uma aristocracia operária que constitui a base social dos partidos de esquerda, mas um quadro mais complexo e, sobretudo, completamente novo.

Entre as forças de esquerda, o debate mais forte acerca deste tema é proposto pela alemã Sara Wagenknecht, que decidiu se separar do Die Linke (A Esquerda) e formar o seu próprio partido. Foi acusada de concordar em alguns aspectos com a ultradireita e de ser pró-Rússia, mas o que interessa é se os seus argumentos se sustentam. Em uma entrevista recente, criticou o conformismo: “Hoje, quem deseja expressar o seu descontentamento contra a política imperante não costuma votar na esquerda, mas na direita”, pois tem sido mais eficaz em abordar as preocupações das pessoas empobrecidas (Público, 07/07/24).

Em sua análise sociológica das pessoas às quais a esquerda se dirige, diz que “faz política pensando em ativistas com formação acadêmica nas grandes cidades e não percebem que estão desprezando os seus antigos eleitores”.

A política alemã lança uma bomba de profundidade quando acusa os partidos dessa tendência de ser liberais de esquerda: “Na classe média acadêmica das grandes cidades, encontramos um ambiente liberal de esquerda que tende a ver os seus próprios privilégios e hábitos de consumo como virtudes morais. As pessoas compram em lojas de produtos naturais, valorizam a linguagem politicamente correta, estão comprometidas com a proteção climática, os refugiados e a diversidade e olham com arrogância para as pessoas que nunca puderam ir à universidade, vivem em ambientes de cidades pequenas ou rurais e precisam lutar com muito mais dificuldades para manter a pouca riqueza que possuem”.

Por sua vez, o historiador Emmanuel Todd argumenta em A derrota do Ocidente que a nova estratificação educacional, com a expansão do ensino superior para 25% da população, criou uma “oligarquia de massas”, ou seja, “gente que vive em sua própria bolha e que se considera superior”. Trata-se de um conceito provocativo, mas talvez adequado para descrever esta nova realidade.

Todd considera que a capacidade de ler e escrever foi o fundamento da democracia, pois alimentava um sentimento de igualdade. No entanto, isto mudou. “O avanço do ensino superior acabou transmitindo a 30 ou 40% de uma geração o sentimento de ser verdadeiramente superiores: uma elite de massas”.

Aqueles que na esquerda afirmam representar o povo, para Todd, “não respeitam mais as pessoas com ensino primário e secundário”, a ponto de considerarem que “os valores das pessoas com ensino superior são os únicos legítimos”.

Esse sentimento de superioridade contradiz o que foram os valores da esquerda no século passado e contrasta com o compromisso que os universitários de esquerda mantiveram por muito tempo.

É evidente que estas são posições polêmicas e impertinentes para muitas pessoas honestas de esquerda. No entanto, penso que é necessário debatermos com profundidade, sem ficarmos paralisados com narrativas que cantam vitórias inexistentes (como está acontecendo agora na França), porque na verdade caminhamos para um abismo humanitário tanto inédito quanto profundo. Prefiro o desconforto da crítica e a autocrítica a um conformismo que revela falta de compromisso.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Correio da Cidadania

 

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