Existe um Deus que não deve ser defendido
"O Deus de
que precisamos não é nem pode ser mais aquele da tradição, o Deus do monoteísmo
e das guerras religiosas, o Deus em cujo nome praticamente quase
todos os crimes foram cometidos proclamando 'Deus quer isso'. Não pode ser
o Deus da moral única e de família única que mandava para o inferno
todos que viviam com ele que não fossem casados regularmente
no altar, considerados públicos pecadores e,
portanto, sujeitos a um duplo pecado mortal (de adultério e de escândalo). Esse Deus é distante do coração e da alma dos seres humanos e
invocá-lo só pode nos levar ao fracasso e à violência.
Qual Deus Meloni tem em mente quando fala de Deus?",
escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele,
de Milão, e da Universidade de Pádua.
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Eis o artigo.
A presidente Giorgia Meloni não é a primeira líder política a declarar que quer
defender Deus. A história sempre conheceu políticos que se arvoram tanto
em defensores de Deus (como Henrique VIII da Inglaterra nomeado Defensor fidei pelo Papa
Leão, mesmo que isso não lhe impediu alguns anos mais tarde
decapitar Thomas More), quanto homens da Igreja que se tornam paladinos de
objetivos políticos (como Bento XVI com os seus “valores não negociáveis” de
vida-escola-família). Da Roma imperial à Roma de hoje, do
antigo Israel ao Israel de hoje refém dos partidos
religiosos, da Rússia de Putin e Kirill à Índia de Modi, existem inúmeras civilizações
baseadas na aliança entre o trono e o altar, independentemente de como forem
chamadas. Geralmente a aliança funciona porque é conveniente para ambos, embora
nem sempre seja conveniente para os cidadãos que, de fato, por vezes a fazem
estourar: basta pensar na Revolução Francesa e no fim do Antigo
Regime, e em anos mais recentes na Itália nos referendos populares
sobre o divórcio e o aborto, quando a maioria dos cidadãos optou por uma ideia
de família diferente daquela do trono e do altar, que naquela época estavam
muito mais próximas do que hoje.
Mas
qual Deus deveria ser defendido? E de quem deveria ser defendido e do
quê? Na Bíblia podem ser lidas essas palavras de Jó aos
três amigos teólogos que vieram defender Deus de suas acusações:
“Será que para defender a Deus vocês vão dizer mentiras? Vão falar
palavras enganosas a favor dele?” (Jó 13,7).
A verdadeira questão,
portanto, não é defender Deus (operação que a teologia e a filosofia
têm praticado desde sempre com o que a primeira chama de “apologética” e a
segunda de “teodiceia”), mas o propósito e os argumentos com os quais isso é feito.
Para a primeira-ministra a equação não poderia ser mais clara: Deus =
identidade; defesa de Deus = defesa da nossa identidade.
Defender Deus, portanto, é defender a nós mesmos, a nossa pátria, toda a
civilização ocidental. Na sua opinião, Deus e a Pátria estão e caem
juntos, e o que permite que ambos existam é a família e sua natalidade.
Eu acredito que hoje
devemos mesmo defender Deus do niilismo imperante, considero que até
mesmo os ateus deveriam defender a plausibilidade do seu conceito, mas penso
que se trata de uma operação espiritual, e não política, que deve ser realizada
dentro de nós mesmos, não em comícios ou na TV.
Acrescentaria
que Deus, pátria e família são valores preciosos, para mim muito
importantes, e que o nosso problema é que a Esquerda quase nunca se
preocupa em defendê-los (esquecendo o quanto Deus, pátria e família sejam
recorrentes nas cartas dos condenados à morte na Resistência italiana) e que a Direita os defende da maneira errada.
Mas voltando
a Deus, reitero que a sua defesa não é uma ação política, mas
espiritual. Deus representa o ideal por excelência do otimismo
metafísico, a esperança de que a vida tenha um sentido, um destino, uma
destinação; a esperança que palavras como justiça, verdade, beleza, harmonia
não sejam uma ilusão, mas a dimensão mais verdadeira do ser. Defender essa
esperança, cultivada desde sempre pela humanidade, é importante, eu diria
decisivo. Principalmente hoje, quando é fácil verificar o que significa crescer
sem um Deus, sem uma religião e uma religiosidade: na história nunca houve
sociedade sem religião, e agora que ficamos sem religião (porque é evidente que
o cristianismo não tem mais influência nas consciências da maioria) assistimos
à desintegração progressiva da sociedade, não mais "conjunto de
sócios", mas cada vez massa mais amorfa e rixosa de rivais.
A questão, porém, é
que o Deus da tradição é indefensável. O Deus que Giorgia Meloni associa à pátria e à família, o Deus dos
exércitos, senhor da história e rei do universo, o Deus que governa o
destino dos povos e da vida de cada ser humano, o Deus pai e viril projeção do
pater familias e do seu poder, esse Deus que é “o nosso Deus” e
que como tal nos divide daqueles que têm um diferente, esse Deus, depois
de tudo o que aconteceu na história (o Holocausto, por exemplo) e depois
de tudo o que nela não aconteceu (a sua intervenção libertadora, por exemplo),
resulta hoje totalmente indefensável.
O Deus de
que precisamos não é nem pode ser mais aquele da tradição, o Deus do monoteísmo
e das guerras religiosas, o Deus em cujo nome praticamente quase todos os
crimes foram cometidos proclamando "Deus quer isso". Não pode ser o
Deus da moral única e de família única que mandava para o inferno todos que
viviam com ele que não fossem casados regularmente
no altar, considerados públicos pecadores e,
portanto, sujeitos a um duplo pecado mortal (de adultério e de escândalo). Esse Deus é distante do coração e da alma dos seres humanos e invocá-lo só pode nos levar ao
fracasso e à violência. Qual Deus Meloni tem em mente quando fala
de Deus?
Pensar em enfrentar os
imensos problemas deste mundo com a imagem e a teologia do passado significa
alimentar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington em 1993 e, infelizmente, hoje em tudo potencialmente real.
Basta um nada, uma só palavra para que irrompa: basta pensar no incidente
de Regensburg, no qual Bento XVI esteve envolvido em 2006, só
para dar um exemplo.
O Deus que
devemos defender só pode ser interior. O que significa que as religiões
precisam dar um passo para trás e devem se converter. A quê? A algo mais
importante que elas: ao bem do mundo. Precisamos de uma nova base para a nossa
convivência civil e que não pode mais ser o Deus da tradição, da
Pátria e da sua natalidade, que Giorgia Meloni diz querer defender.
Aquele Deus foi consumido pela história à custa de muito sangue
inocente. É o mesmo Deus, para dar um exemplo, que sobre os homossexuais assim
se expressa na Bíblia: “Se um homem se deitar com outro homem, como se
fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o
seu sangue será sobre eles” (Levítico 20.13). É esse o Deus que queremos defender? Na realidade,
desse Deus devemos nos defender: devemos impedir que retorne, devemos
evitar que novamente se instaurem a sua violência, a sua intolerância, o seu
medo, o seu terror.
Está escrito
que Deus, a Moisés no Sinai, que lhe perguntara seu nome,
respondeu assim: “Ehyeh ašer ehyeh" (Êxodo 3,14), tradicionalmente
traduzido como "Eu sou o que sou". O significado mais plausível é o
de "existir", "eu existo e existirei" e, portanto, muitas
vezes também é traduzido como "o Deus conosco". Deus conosco
em alemão é Gott mit uns: isso é o que estava escrito no cinto de
cada soldado do Terceiro Reich. Também antes disso era o lema dos cavaleiros teutônicos, os
monges guerreiros medievais.
Bem, eu acredito que
precisamos mudar completamente o paradigma e pensar que o verdadeiro nome
de Deus seja este outro: “o Deus com eles”. Olho para uma
árvore, uma estrela, um animal, um ser humano, um estrangeiro cuja língua e
pele são diferentes da minha, e penso: “Deus-com-eles”. É o verdadeiro nome
de Deus como ideia do bem e da justiça, e coincide com a quebra do
círculo identitário e repressivo do nós contra eles, em que os monoteísmos e as
ideologias políticas aprisionaram a mente e para a qual não devemos deixar-nos
arrastar novamente.
Fonte: Por Vito
Mancuso em La Stampa - tradução de Luisa Rabolini, em IHU
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